segunda-feira, 27 de junho de 2011

Minicurso Direito & literatura: a hermenêutica do vazio no "Safra", de Abguar Bastos

Agradeço aos alunos José Roberto (hoje em Brasília) e Bráulio Marques (meu monitor) pela gentileza e cuidado na transcrição e envio do texto a seguir, fruto do meu minicurso na X Semana Jurídica do Cesupa em 2010. Farei a publicação em duas postagens seguidas.
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Primeiro dia (18 de outubro de 2011)


Eu ouvi, durante todo esse período em que tinha planejado o minicurso, as suposições sobre do que ele trataria. Eu suponho que esse tenha sido um dos motivadores das inscrições, porque, na sala dos professores, ficavam as especulações, que iam do “aaaa você não vai aparecer” e “a cadeira estará vazia”, até “vamos ter que interpretar o que é um minicurso”, ou coisas mais imaginativas e criativas (risos).
Eu não sou realmente muito dado a esses golpes publicitários, mas o tema (“Hermenêutica do Vazio) acabou funcionando dessa maneira. Não vou guardar para o último dia (amanhã) para explicar do que se trata, porque a ideia não era trazê-los para cá e, como nos episódios de Lost, guardar para o último episódio a revelação do que exatamente trata o tema. Portanto, vou começar pela seguinte explicação, que é bastante singela (a ideia foi sugerida inclusive por outros professores, que talvez não saibam da responsabilidade que têm pelo nome do que o minicurso acabou tomando): estávamos numa reunião, eu, a professora Bárbara, a professora Luciana e a professora Lise, conversando sobre os minicursos da semana jurídica, e eu queria oferecer um (enfim, sobre o que nós iriamos oferecer?). Enfim, o tema da semana é “Direito ao Desenvolvimento e Inclusão Social na Amazônia”; então, a ideia é que o minicurso tivesse relaciona a isso também, o que acabou presidindo a decisão.
Ocorreu-me falar sobre um romance. Nessas semanas jurídicas, eu tenho sempre reservado um minicurso para aquele programa de direito e literatura, que eu venho desenvolvendo nesses Grupos de Estudo Temáticos (GETs) e também nesses minicursos das semanas jurídicas. No ano passado, alguns de vocês aqui talvez tenham feito, era um minicurso sobre a literatura russa no século XIX, Tolstói e Dostoiévski, a construção do romance russo etc. … dalí surgiu a ideia de um Grupo de Estudos sobre a desinstitucionalização [do Direito], que pudesse estudar um romance específico (Ressurreição, de Tolstói). E aqui trata-se de um romance também. Só que é um romance que tem, por vários motivos, não apenas um significado especial para essa semana jurídica [devido ao seu tema], mas um significado especial também para literatura nesse estado [o estado do Pará].
O romance é este aqui, o “Safra”, de um autor paraense, nascido em 1902, chamado Abguar Bastos Damaceno, de nome artístico simplesmente Abguar Bastos. Este romance está caindo num absoluto esquecimento e pertence hoje ao domínio de um círculo cada vez mais restrito de intelectuais que mencionam o romance quando falam de alguma maneira da literatura produzida na região amazônica. Mas, mesmo em abordagens dessa natureza, em regra o nome do Abguar Bastos fica obscurecido do lado de nomes do mesmo período que ele, como Dalcídio Jurandir e Bruno de Menezes. Era uma autor desse círculo, junto com outros autores do Amazonas daquele período: o autor de “Inferno Verde”, o de “O Paruára” etc. … uma série de romances que acabaram surgindo depois da semana de arte moderna de 1922, e que se incluem dentro do modernismo: mais especidficamente, aquilo que nós tivemos de modernismo na região amazônica.
O “Safra”, no entanto, tem alguns pontos de destaque – vários deles – quando comparados aos demais romances daquele período. E a história do autor também é interessante a esse respeito porquanto seria interessante inclusive saber porque, aos poucos, o Safra foi se tornando um romance esquecido.
Fala-se do Abguar Bastos, do Safra, e o som que se impõe é o som dos grilos. Quem já ouviu falar, quem já leu o romance? Ele se apagou completamente. Diferentemente do que se algum de nós mencionasse o nome do Dalcídio Jurandir (ou o “Chove nos campos de Cachoeira”, ou “Marajó” etc. ), ou o De Campos Ribeiro, ou “Os dias recurvos” (Ildefonso Guimarães), ou o “Batuque” (Bruno de Menezes). Estes romances todos são lidos, estudados: o ciclo de poemas do Bruno de Menezes, que foi estudado e recentimente homenageado na nossa feira pan-amazônica do livro (o homenagiado era o Bruno de Menezes). Mas, o Abguar Bastos completamente desaparecido: a última publicação deste romance aqui é este exemplar “recentíssimo” de 1958 (risos). A primeira edição está completamente desaparecida (a de 1934), esta aqui é a segunda.
Agora, por que o Abguar Bastos? Por que este romance? Por que relembrarmos dele? Para fazermos um trabalho de resgate histórico, ou uma homenagem a um autor que está sendo esquecido? Enfim: “associação dos amigos dos escritores amazônidas” (risos). É esta ideia do Grupo? Não. A intenção não é essa. Há um motivo específico – que está dentro do livro – para ele ter sido escolhido para esse minicurso.
O romance trata de uma história que, de alguma maneira, não é nova para nós: os ciclos econômicos pelos quais a Amazônia passou – desde as dogras do sertão, nos séculos XVII e XVIII; depois o conhecidíssimo ciclo da borracha e todos os legados que acabou deixando para a região, no séculos XIX e XX; e, logo depois desse ciclo da borracha, temos o ciclo do ouro negro ou da castanha: o “Safra” trata precisamente do ciclo da castanha, no rio Coarí – que fica no interior do Amazonas. Depois, até pessoalmente, o Abguar Bastos se estabeleceu durante alguns anos lá no estado do Amazônas, onde foi promotor. Anos depois, deputado federal. Ademais, foi embaixador brasileiro em Varsóvia durante um tempo; foi da aliança nacional; foi acessor do Barata aqui no estado do Pará, depois do movimento de 1930. Ou seja, ele tem toda uma história política bastante movimentada, bem interessante. Morreu em 1995. Não se falará propriamente da vida dele, mas sim do romance e, principalmente, o porquê de nós estarmos colocando como título desse minicurso, que trata desse romance, o nome Hermanêutica do Vazio.

Introdução:

Vamos começar por este último ponto: não se interpreta o vazio, não há uma Hermenêutica do vazio, ou do vácuo, propriamente. O que é possível interpretar são as representações sobre o vazio, e que, por serem justamente representações dele, já são alguma coisa.
A propósta com que o minicurso pretende trabalhar aqui é que, do ponto de vista literário, do ponto de vista de todos os instrumentos que cristalizam socialmente estas representações – aí entende-se que estamos falando da literatura, do direito enquanto literatura (as peças processuais, os autos de processo, os pareceres, as leis) –, todos estes elementos que servem para cristalizar valores e impressões históricas a Amazônia tem tradicionalmente figurado como este vazio.
Um vazio paradoxal, que, ao mesmo tempo, é constituido pela magnetude impressionante dos rios, de um clima incontestável que cerca e esmaga tudo, de uma imensidão de floresta e de verde; mas com tanta coisa e diante de elementos tão intensos, que provocam o horror – ao que o Alfred Russel Wallace (um dos inúmeros visitadores estrangeiros dessa região) se referiu, diante do horror que estes elementos, as suas intensidades, provocam; tem-se, do outro lado, um vazio humano, uma solidão extrema, que é, de alguma maneira, a representação de toda uma terra (literariamente falando) que está, de alguma maneira, fora do tempo e do espaço.
Hoje, conversava rapidamente sobre isso com a professora Bárbara, e ela lembrou do Euclides da Cunha, do “À margem da história”. Logo inicia e o Euclides fala da “terra sem história”.
A proposta aqui é analisar um pouco dessas representações e essa iconografia do vazio, e qual o significado dessa representação do vazio dentro do romance “Safra”.
Um destes vazios é também um vazio em referência ao futuro. Uma imagem que não aparece no romance é essa imagem do futuro: não há vínculos com o futuro. E isso fica muito claro no momento em que um dos outros vazios acaba explicando este vazio do futuro: nós não temos justiça na região (o Vazio da Justiça). O único local que representa a Justiça [instituição] dentro do romance é uma tapera velha, cheia de lacraias e morcegos, que balança com o vento e está próxima do momento de cair.
Esse lugar de desesperança que ele acaba construindo no romance é de um conjunto multiplo de vazios, que não são senão representações sobre esse vazio. Portanto sobre isso nós podemos tratar, porque tais representações são eloquêntes.
Este vazio literário, este vazio de valores, esta desesperança e esta solidão nos dizem algo. Dizem-nos muito, a ver da verdade: dizem-nos muito a respeito de como nós nos obeservamos, de como nos interpretamos e nos representamos e quais são as espectativas muitas vezes silenciadas sobre essa representação, aquilo que queremos a partir disso.
É sobre este tema que o miniurso tratará: não sobre o vazio, mas sobre as representações desse vazio, que falam muitas vezes mais do que inicialmente nós imaginamos.

Início da história:

Qual é a história, aqui, do romance? A história contada no “Safra” tem dois personagens principais, que são o Valentim e o Chico Polia. O Chico Polia é um soldado, cachaceiro – como todos eles são dentro do romance (o próprio Valentim é um cachaceiro). Ele guarda a cadeia da cidade, a única que existe nela, e onde está detido o Valentim. Este, por sua vez, é um trabalhador rural, tem um pequeno castanhal, o qual foi por ele conquistado a duras penas. Neste Castanhal, ele tenta lutar contra dois coronéis locais, que são o Dalvino e o major Leocádio. Estes sim são grandes donos de terras, dos grandes castanhais locais. Todas as pessoas alí, em regra, trabalham, ou para um, ou para outro. O coronal mais poderoso do local naquele momento é o Dalvino, que também é o prefeito. Mas o Leocádio, que também já foi prefeito, é um figura política importante do local e o único que tem forças para contrapor o Dalvino: são os dois únicos que têm lanchas no local e utilizam todas as práticas de coronelismo que são habituais nesses sertões (entendam-se aí “sertões” da forma como utiliza muito sabiamente o Abguar Bastos – sertão é todo deserto humano. Não importa que ele tenha muito água e muito chuva, ou seja, a palavra sertão não designa somente o sertão nordestino, dos galhos secos e do sol inclemente. Um sertão é um grande vazio demográfico: o ambiente que aqui é retratado).
A lógica é mais ou menos a seguinte: aqueles que estão do lado do Dalvino têm uma “costa larga” e utilizam de práticas como, por exemplo, fechar rios (em determinados períodos – a título de exemplificação – o Dalvino determina que um rio seja fechado: o homens ficam nos barcos, outras nas cabeceiras [é isto mesmo professor? Cabeceiras?]. Quem quiser passar pelo rio, só passa com pedágio, e só, também, quem eles quiseram). Essa é uma maneira de evitar que outras pessoas se embrenhem para a mata amazônica com o intuito de descobrir novos caminhos de castanheiras; ao mesmo tempo que aqueles pequenos proprietários que têm castanhas não consiguam retirar as castanhas dos rios e levar para a cidade, para a vila ou para os grandes barcos que ficam nas enseadas, os quais compram as castanhas. Então, é uma prática extorsiva mesmo, de maneira a assegurar o poder local dessas pessoas. Quem quer se defender disso passa, ou para o lado do Dalvino (e aí vai ter que pagar para ele), ou para o lado do Leocádio, o único que ainda consegue enfrentar o Dalvino: enfrentamentos estes a peso de bala, ou através de golpes políticos, ou de tentativa, por exemplo, em Manaus, de obter a nomeação de um promotor, de um delegado, que seja, evidentemente, do seu grupo. Enfim, práticas dessa natureza que são adotadas por esses coronéis, e aparecem aqui no livro.
O Valentim é um cara esmagado entre essas duas pressões. Ele acaba matando uma pessoa que ele chamou para dentro do seu terreno, para dentro do seu Castanhal, que era um “amigo”, o qual passava por uma situação delicada de pobreza e que tinha sido um regatão (regatões são aqueles sujeitos que fazem aviamento; são mascates que compram mercadorias, embarcam-nas e ficam nos seus barcos indo de localidade para localidade para vender a crédito, em regra, as mercadorias para os ribeirinhos. E muita gente acabou prosperando nisso: tinham muitos sírio-libaneses envolvidos nessa atividade de regatão aí pelos rios da Amazônia). Ele é o sujeito chamado Bento, e acabou sendo convidado pelo Valentim, porquanto estava neste momento de dificuldade, para ficar nas terras dele e abrir alguns caminhos de castanha. Pois este Bento, aos poucos, ao invés de aumentar a produção do Valentim, começou a diminuir a sua produção. Este vai desconfiando que o Bento está desviando castanhas para a vila diretamente, ou seja, roubando dele. Depois isto se confirma na vila: o Bento realmente estava desviando, mas não só, ele tinha cobertura do chefe Dalvino para isso, ou seja, está protegido de fato pelo Dalvino. Doravente, o Valentim procura o coronel Leocádio para se proteger, fazer uma reclamação. O Leocádio diz para ele falar com o delegado. O delegado, por sua vez, é da parte do Dalvino: ele faz nada. O promotor idem. O Leocádio acaba viajando para Manaus, e o Valentim fica sozinho, absolutamente sozinho diante daquela robalheira toda do Bento.
O que acontece um belo dia é que o Bento avisa para o Valentim que não irá sair das terras dele. Valentim o intima, com intensidade, a deixar as terras, porquanto já sabe que ele está envolvido em roubo etc. Mas Bento não apenas diz que vai ficar nas terras, diz também que, no dia seguinte, passará de barco na frente da casa do Valentim com um carregamento de castanha. E tanto ele anuncia, que assim é feito. Ademais ele manda outro recado ao Valentim, no dia anterior ao que suscederá, dizendo: “Amanhã de manhã estarei passando aí pela frente do seu terreno e vou acenar para você”. E a mulher do Valentim se revolta com isso, desafia o Valentim, pergunta o que ele vai fazer, se ele não é homem o suficiente para enfrentar o Bento, e fica naquela coisa todo … Valentim não consegue dormir, se enche de cachaça e, no dia seguinte, monta tocaia para o Bento: quando o Bento passa na canoa, com as castanhas carregadas, o Valentim já está com ele na mira da arma; quando o Bento percebe – e saca a arma para se defender –, o Valentim só dá um tiro, que estraçalha o peito do sujeito, o qual cai no rio imediantamente no rio. Ele estava com a sua amante, que, por sua vez, pega a arma do Bento e tenta, dando tiros a torto e a diteita, acertar o Valentim.
Nesse momento é que surge o filho do Valentim, outro personagem importante e interessante da história: ele não é bom da cabeça, tem algum tipo de deficiência mental, o que o torna um personagem completamente estranho aí na história toda. Ele conta toda uma história a parte, e esse filho dele pega a arma do Valentim e começa a atirar a esmo na direção da canoa, matando a mulher e ainda o cachorro. Enfim, a canoa vai descendo o rio, com aqueles corpos todos pregados alí, e logo se descobre quem os matou, que foi o Valentim, acabando este sendo preso.
A história começa com ele preso. O romance é montado de uma tal maneira que essa história vai se desfiando ao longo do livro, até que você descobre o que o Valentim efetivamente fez, o que aconteceu, quem era o Bento, o que determinou aí esses eventos, qual era a história do Manduca (o filho do Valentim), o que foi que ele fez, como ele o fez etc. O romance tem uma estrutura que, do ponto de vista narrativo, é absolutamente… inconsútil: é esse o termo. Como se ele fosse montado sem nenhuma costura, de ponta a ponta. Ela vai sendo desfianda com muita habilidade em capítulos, relativamente curtos, com cada um contendo início meio e fim. E você termina uma capítulo com uma parte da história, que leva imediatamente à uma outra parte da história, e à outra na sequência, e assim até o final do romance. É realmente um romance habilidosíssimo, diversos pontos de vista engrandessem efetivamente o modelo do romance modernista tal como vinha sendo discutido naquele momento.

O Contexto histórico:

Eu quero fazer um rápido comentário sobre o contexto em que o “Safra” aparece, que é o contexto do modernismo:
O “Safra” aparece em 1934, ou seja, depois da semana de arte moderna de 1922. Doze anos depois, portanto, da semana e também depois de já ter aparecido o “Macunaíma” e a “Paulisseia desvairada” (ambos do Mario de Andrade) – os quais são os grandes modelos literários do modernismo.
O Mario de Andrade, no manifesto da semana de arte moderna, já tinha anunciado nacionalmente ao mundo dos parâmetros e as premissas que eram defendidas pelos modernistas. Uma delas atinge diretamente o contexto em que o “Safra” é composto: Mario de Andrade vai dizer que repudia qualquer regionalismo. Os regionalismos são inadimissíveis: eu queria ler para vocês um dos elementos que eu trouxe, da “Paulisseia desvairada”:

“Regionalismo é mate aqui, borracha alí [mate, à que ele está se referindo, é a erva mate: a interpretação é que um dos regionalismos mais fortes no Brasil foi do Rio Grande do Sul, com o Simão Lopez Neto; o outro é o da borracha no norte do país]; pobreza sem humildade; caipirismo e saudosismo; comadrismo que não sai do beco: e, o pior, se contenta com o beco. Regionalismo, esse não adianta nada, nem para a consciência da nacionalidade. Antes, a conspurca e depalpera-lhe por demais o campo da manifestação e, por isso, a realidade. O regionalismo é uma praga anti-nacional: tão praga como imitar a música italiana ou ser influenciado pelo estilo português.” (“A paulisseia desvairada”, de Mario de Andrade)

Forte, portanto, o que ele diz: “O regionalismo é uma praga”! Qual é a lógica desse ataque ao regionalismo? Era que o movimento regionalista era um movimento que procurava valorizar fortemente elementos folclóricos – e que são, por natureza, por conceito, locais – e estipular uma série de personagens, fazer um teatro com os hábitos desse folclore local (com os personagens, os elementos, os ambientes desse folclóre local), além da linguagem local. E o é de tal maneira que não interessava ao regionalismo se comunicar com outros regionalismos; o regionalismo bastava a si próprio: esta é a ideia com que Mário de Andrade avança aqui. Então, um regionalismo como o paraense, ou o amazônida, não se comunica com outros regionalismos, com o nordestino, ou o gaúcho. E isso pelo fato de que não interessa a um regionalismo conhecer o outro. Os elementos e os ambientes (dizendo isso estamos falando de linguagem, de personagem e de ambiente, que são uma estrutura clássica do romance), no regionalismo, não se comunicam uns com os outros porquanto são completamente distintos: então, o gaúcho lerá o o gaúcho e o exaltará; o amazônida lerá o amazônida e o exaltará; o nordestino assim o fará também com ele próprio etc.
É uma “praga antinacional” porque, para ele, o regionalismo não é base para se construir uma literatura nacional. A base para se construir uma literatura nacional seria uma base que trabalhasse com temáticas que podessem contemplar elementos da realidade brasileira, mas que não os encalacrassem, ou compartimentalizassem, ou aprisinassem essa realidade brasileira como realidade parcial (como realidade parcial daquela cidade, daquela região), mas sim que fosse um elemento de convergência: um realidade nacional não pode ser uma realidade regional, ela teria que contemplar elementos de todas essas diversas realidades por uma realidade que a transcedesse. Então, eleger elemetos como elementos musicais que se comunicassem e intercambiassem entre as diferentes regiões. Ou eleger um herói nacional, como o Macunaíma, que não é um personagem folclórico, porque contêm diversos elementos de folclores absolutamente distintos, tornando-o elemento da cultura popular. Ou seja, o elemento da realidade nacional de Macunaíma é ser o anti-herói: ele é um sujeito que foge da luta ( a luta está num lugar; e ele, noutro); é um sujeito que é completamente o oposto do herói homérico ( aquele que enfrenta todos os defafios; é um sujeito robusto, que manipula com absoluta habilidade e destreza as armas, os movimentos do corpo, os quais são movimentos precisos, etc.); e esse seria um elemento no qual todos poderiamos nos identificar: é este o anti-herói do modernismo andradeano.
Então, não é regionalismo, é um elemento popular: essa seria uma realidade nacional. Quando entram elementos musicais, idem: quando entra o samba, ou o maxixe (novos ritmos musicais), que não são de regionalismos, mas que transcendem esses regionalismos, é disso que Mario de Andrade está querendo falar. Não é negar as realidades regionais, mas transcende-las, na perspectiva de encontrar personagens em ambientes que sejam nacionais. Então, para ele, é uma praga o regionalismo.
Quando nasce o “Safra”, esse é um elemento a ser discutido. Porquanto o “Safra” trata de um elemento regional, trata-se de um ciclo que é inegavelmente regional, um ciclo econômico de estrativismo em torno da castanha, que nasce da sequência de outros ciclos anteriores, os quais, por sua vez, geraram outras obras regionalistas. O “Inferno Verde”, por exemplo, é uma obra de 1908: ela trata dos seringeiros, do drama dos seringeiros, onde todos estes elementos estão lá – aparece a construção dos teatros, cria-se o modelo do grande coronel do seringal [que contempla alguns dos elementos da literatura universal, que estão presentes tanto no “Pai grandê” (do Balzac), como também no “Scrult” (do Charles Dickens) etc.] … estas, figuras recurvadas, absolutamente autoritárias, criando-se todo um modelo para isso. Mas, definitivamente, “Inferno Verde” é uma obra regional.
Quando o “Safra” surge, a proposta estética do Abguar Bastos é claramente uma porposta modernista: a maneira como ele escreve – sentenças curtas, parágrafos curtos, capítulos que tem uma história com início, meio e fim, mas que se ligam a uma história maior dentro da qual eles não poderm deixar de estar … então, os capítulos têm uma relação entre si que é uma relação necessária – se você retira um daqueles capítulos, a história não faz sentido. Então, há toda uma estética modernista com as propostas estéticas, inclusive, de tratamente elegante da linguagem: a maneira como o Abguar Bastos escreve é inegavelmente elegante (eliminando aquele excesso de frases de efeito, que é típico da literatura portuguesa, ou de sentenças muito longas com parágrafos também longos. Ele enxuga completamente isto … ): é um romance que você lê como se não tivesse indo uma frase além do que precisaria ter dito para que nós, leitores, entendêssemos a proposta estética dele; e ele não poderia ter nada aquém daquilo que ele disse também. É muito preciso. A descrição psicologica dos personagens é uma descrição econômica também – assim como era a proposta do modernismo, no sentido de estimular a compreensão e a imaginação da realidade também por parte do leitor: você fornece elementos de guia, de chave de leitura dos personagens, mas o que explica os personagens, também, é a sua interação com outros personagens e com o contexto em que ele está. Toda esta proposta estética está aqui. No entanto, ele está tratando de um ciclo econômico.
Na época (1934), não era o seu primeiro romance do Abguar: ele já tinha escrito outro, também nos moldes modernistas, que foi publicado dois anos antes, em 1932, chamado “Terra de Icamiaba” (o primeiro título não era este, o qual era da segunda edição; o primeiro era “A Amazônia que ninguém conhece”; nitidamente um péssimo título para um romance). Dito isto, é de se ressaltar que a crítica já o recebeu, com “Safra”, de outra maneira: ele já se tornou um escritor mais renomado localmente. Não foi um cara anônimo, passando longe disso, foi um escritor aplaudido, tornou-se conhecido nacionalmente pelos seus romances, escreveu sobre o modernismo, e teve um diálogo com o Mário de Andrade, muitas vezes um diálogo de confronto até. Ele liderava, juntamente com outros autores, um circulo de intelectuais, entre Belém e Manaus, dos quais fazia parte o Bruno de Menezes, alguns músicos também … havia uma revista literária em torno da qual estes intelectuais se reuniam. Então, vejam, nós tivemos esses movimentos todos aqui: chamava-se “Belém nova” o nome da revista, e esses intelectuais converguiam para essas revistas, escreviam, nos jornais locais, crônicas literárias, críticas literárias etc. Então, tinha um movimento relativamente dinâmico de renovação estética aqui. Abguar Bastos, portanto, não era anônimo aqui; mas sim conhecido. Agora, ele era conhecido pela crítica como um autor modernista.
Anos depois, aí já a crítica de 1970, uma crítica literária curta acerca do Abguar Bastos, o coloca efetivamente como um outro herói modernista.
Há uma tese, da UNICAMP, do Marco Aurélio Coelho de Paiva, que tem inclusive esse título “O outro herói modernista”: nas revisões sobre o movimento modernista, hoje se encontra um modernismo amazõnico. O que é o modernismo amazônico? Ele não é regionalismo, porque não se está falando de um drama regional, com elementos regionais, que só fazem sentido aqui; mas está se tratando de um drama urbano, o “Safra” trata de um drama urbano. Existe uma cidade alí, que é um vazio; existe uma terra, que é um vazio; a castanha é um elemento do enredo. Agora, o que se desenvolve em torno dela são lutas de poder, são confrontos pessoais, são desesperanças, angústias, que são compreensíveis em qualquer elemento, seja esse elemento ambiental a cidade, seja esse elemento ambiental o campo. Se nós estamos falando da guerra de poder entre dois grandes coronéis, e essa lógica não muda, e existem pessoas impotentes diante disso, que são esmagadas diante desse confronto, isso não é um elemento regional: se isto de dá em torno da castanha, ou em torno da seringa, ou da terra, ou do poder de um cargo da empresa etc., isto é outra coisa. O elemento regional apenas dá uma cor àquele ambiente, mas ele não define o enredo da história. Então, o elemento aqui é um elemento clássico: trata-se das fragilidades, das paixões humanas; trata das nossas fraquezas e das nossas virtudes, do drama de um ambiente que é tipicamente humano, que é o local onde nós vivemos: a Amazõnia, que é o local onde ele vive, e ele viverá os seus dramas lá. Isto não o transforma em um romance regionalista, mas num romance modernista, com os seus elementos estéticos modernistas. E isso ele defendia de maneira consciente.
Abguar Bastos escreveu também um manifesto estético junto esses autores da “Belém Nova” que se chamou “Laminasu” [não sei se é este o nome] – que, na língua tupí significa “grande chama”. Esse manifesto fala do ambiente amazônico e de umoutro ramo do modernismo que eles estão propondo. Havia uma briga entre eles, inclusive, aqui na região: o Bruno de Menezes defendia um outro viés do modernismo, segundo o qual nós deveriamos adotar os padrões estéticos dos autores do Rio Grande do Sul; e o Abguar Bastos acreditava, por outro lado, que não era essa a proposta: o que deveriamos fazer era suplantar o nosso regionalismo a partir dos nossos próprios elementos regionais. Então, ele foi também o intelectual, um esteta, alguém que pensava aquilo que fazia e os padrões estéticos que ele adotava. Não era simples importação e, porventura, adaptação de modelos, mas, do contrário, criação de modelos. Evidentemente, ele não era uma pessoa eu escrevia por escrever ou um aventureiro das palavras: veremos isso a seguir com a elegância atarvés da qual ele escrevia, através da qual ele formatava os parágrafos e as frases.
Ressalta-se – relembrando – que esse é um elemento para contextualizar o romance (como ele apareceu, como foi recebido etc.). E ele foi recebido efetivamente como poria. [não tenho certeza se está certo …]
Há um episódio que se conta sobre o Abguar Bastos, que foi um dos fundadores da União Brasileira de escritores: o Niconemus Sena, que é um autor paraense radicado em São Paulo, há muito tempo, contou, em um texto publicado em 2002, por ocasião do centenário do nascimento do Abguar Bastos (1902-1995 → nasceu em Belém, morreu em São Paulo, já quase completamente desconhecido, aliás, conhecido apenas por um circulo muito pequeno de pessoas, de autores e leitores), que ele, o Abguar Bastos, se encontrou, numa determinada ocasião, com o Mário de Andrade, isso anos depois de ter publicado o “Safra” … (há a necessidade de expor uma passagem em especial do livro para que se entenda o desfecho do encontro) há uma passagem do “Safra” em que, na cidade onde eles estão, aparece a rainha do café: anuncia-se que vai chegar de São Paulo a rainha do café, e ela vem com uma comitiva. Então, as autoridades da cidade são chamadas para receber a rainha do café. Vão delegado, promotor, prefeito, os vereadores. Aí, chega a rainha do café, que é o Abguar só denomina pelo sobrenome (“Penteado”), e ela vem acompanhada de um secretário, que é um escritor com uma fama grande naquele momento, e que se chamava Mário Delmanto. Ele chegou com um binóculo e uma Codak, e com umas maninas, que eram sobrinhas da rainha do café. Elas chegaram logo alí, com toda aquela pompa, aquela pose; ele, olhando no binóculo, tirando umas fotos (os habitantes nunca tinham visto uma maquina fotográfca na cidade); a “rainha” com um lorgão, uns óculos, que se colocam aqui sobre o nariz, segurando. E sairam dalí porque o Mário Dalmata, um grande escritor, renomado folclorista também, tinha prometido apresentar, para as meninas, o Mapinguarí, o Curupira, o Boto, a Cobra Grande, o Boi-tata, todos esses elementos folclóricos. E as maninas chegaram, logo olharam para a vila e foram perguntando para ele “cadê o boi-tata e o mapinguarí?”, “E não tem ninguém aqui, a gente não tá vendo...”. Elas não estavam interessadas no pessoal da pequena cidade. E o Mário vai com o binóculo tentando ver aquelas coisa … dessa forma, eles acabam se afastando da cidade, e esse cortejo é seguido por um conjunto de meninos (desses meninos barrigudos, verminosos, que vão ali cercando, os meninos, sem camisa, descabelados …). E o grupo começa a ficar um pouco nervoso com aquele secto estranho, até que as meninas acabam chegando a conclusão, já próximo ao navio, de que, aquelas pessoas que as cercavam, todos eles estranhos, esquisitos, com uma maneira estranha de falar etc., são – e elas realmente passam a acreditar nisso –, todas aquelas pessoas, Curupiras. Era mais ou menos essa a ideia … Esse texto é, naturalmente, uma sátira ao Mário de Andrade. Isso realmente existiu: o Mário de Andrade seguiu essa senhora, a “Olívia Guedes Penteado, que vinha aureolada como a Rainha do Café, junto com suas sobrinhas e o Mário do Andrade”. Só que a imprensa nacional divulgou o Mário de Andrade como secretário desta Olívia, a rainha do café, e o Abguar Bastos ficou absolutamente indignado com isso, ficou indignado pelo Mário de Andrade: um escritor da estatura intelectual do Mário de Andrade como secretério da rainha do café. Aí o que ele fez? Ele satiriza isso no romance, colocando o cara numa situação irônica, com o binóculo etc. – e os jornais descreviam que ele chegou com um binóculo e uma máquina Codak mesmo. No Rio de Janeiro e em São Paulo essa parte do romance do Abguar Bastos foi divulgado nos jornais como sendo uma ofensa ao Mário de Andrade. Aí, o Niconemus Sena relata um episódio em que, andando pela cinalândia, o Abguar Bastos foi chamado para tomas um café do Amarelinho ( um bar célebre da cinelândia). Estava nesse grupo, estavam também uns paraenses, mas estava também o Mário de Andrade. E quando ele é apresentado ao Abguar Bastos, ele se levanta, cumprimenta todos na mesa e se retira. Não aceitou ficar com a presença do Abguar alí nessa mesa.
Ou seja, era uma figura que se tornou efetivamente conhecido nacionalmente. Depois, eles fizeram as pazes, ele e Mário de Andrade, e houve até um tipo de diálogo entre os dois, mas este é um outro caminho do modernismo. O que eu queria sentuar, em termos de contexto, é que a obra dele realmente apresenta um outro caminho do modernismo aqui no Brasil.
Ela também tem um significado estético importante: esta obra é fundamental para entender essa outra via do modernismo brasileiro, e que se dá não como uma vertente regionalista, é um outro braço do movimento modenista no Brasil, e que se dá precisamente com a figura do Abgar Bastos.

Outros elementos (os Vazios representados na obra):

Desde os primeiros relatos dos estrangeiros sobre o Brasil (e o Senado Federal publica uma coleção chamada “Viagens dos estrangeiros”, que são relatos de viagens dos estrangeiros), a visão que os botânicos, os pesquisadores da fauna e flora e antropólogos foram construindo sobre a Amazônia nestas viagens, basicamente feitas no segundo império brasileiro, muitas delas com o apoio direto da coroa, de Dom Pedro II: estamos falando das viagens dos prusianos, das de Alfred Husserl Wallace, e, depois, do bahiano Alexandre Ferreira Rodrigues … Eu quero e concentrar um pouquinho na viagem do Alexandre Rodrigues.
Há um que é o relato da sua viagem pelo Amazônas, descrevendo sua população, sua fauna etc. O Alexandre era também antropólogo, portanto tinha um interesse antropológico grande, exatamente o que diferencia esse relato de outros, estes mais concentrados na fauna e flora (relatos de botânicos e pesquisadores ligados às ciências da natureza). Enfim, no relatos do Alexandre Ferreira há uma intensa preocupação com a descrição das populações que estão aqui, sobre as línguas, a interação, as formas de comer, os modos de viver, como eram as habitações etc. … era um relato grande. Tudo isto está publicado pelo Senado Federal.
Essa viagem foi no século XVIII, antes, portanto, do período do império brasileiro, e ainda sob a égide de um iluminismo pombalino, mesmo depois do fim do governo de Pombal (já foi no governo da Dona Maria I). E ele embarcou: era formado pela Universidade de Coimbra, teve os custos da bancados pela Universidade e fez essa longa viagem aqui. Um elemento essencial da descrição desse relato do Alexandre Ferreira, sobre a população, é que impressiona e foi uma das ideias de trabalhar o minicurso aqui:
Primeiro, ele estabelace a ideia de um enorme vazio demográfico (o primeiro vazio), o que nós temos aqui é um enorme vazio demográfico. O mundo de uma natureza imensa, esmagadora, sufocante – adjetivos comuns desses relatos: essas descrições todas acabam compondo o imaginários desses relatos, mas se viaja dias ou semanas sem encontrar viva alma, sem encontrar absolutamente alguém na beira dos rios. Seria necessário, em determinadas ocasiões, avançar para o interior na perspectiva de encontrar alguns desses aldeamentos. Só que ele aposta numa outra ideia, de que os aldeamentos que existem, efetivamente existem nas beiras dos rios e não tão para dentro, porquanto é do rio de onde vivem essas populações. Então, quando ele não vê essas aldeamentos na beira do rio, ou quando os indios não se assomam a beira dos rios para verem a expedição passar é porque efetivamente não há população alguma ali. Então, ele fala de enormes vazios demográficos, de uma população selvagem, que se comunica com grunidos e gritos, absolutamente crédula etc. etc. etc. Adaptam-se, essas pessoas, muito bem à vida na região, com todas as agruras e dificuldades que ele impõe, principalmente em função da ignorância – ignorância esta que seria também forma de reagir a esse meio ambiente, adaptando-se a ele com resignação (resignação deriva disso, da ignorância). Eles estão presos duplamente: por um clima, por uma geografia, por – de modo mais abrangente – forças naturais absolutamente titânicas; e também pela ignorância, que não permite essa libertação.
Outros elementos vão se adicionando a esses relatos de viagens: são elementos interessantes que aparecem também em outra figura, anterior um pouco ao Alexandre Ferreira, e que viveu durante bastante tempo aqui na região: esta figura foi o Padre Antônio Vieira. Nos relatos – ainda não de viagem, mas nos sermões – de Vieira, um elemento que é absolutamente reincidente e recorrente quando se fala da região amazônica é também o elemento do vazio, é o elemento da submissão ao clima e à natureza.
Só que aí, com outro foco, com outro aspecto. O problema todo é o desafio civilizatório diante de uma natureza tão poderosa e tão titânica que força os habitantes a irem para uma outra direção, completamente diferentes desta suposta direção civilizatória. Estou querendo dizer o seguinte (esse é o elemento recuperado tempos depois na literatura naturalista aqui na região, com o Inglês de Souza, por exemplo): o clima quente, as enormes distâncias e a sensação de abandono e de impotência diante dessas forças titânicas da natureza fazem com que nós tenhamos mais suscetibilidade a elementos instintivos. Nós acabamos nos dominando pelos instintos – instintos estes da natureza, que acaba soterrando todo mundo pela região amazônica. Então, os instintos prociativos, os instintos sexuais, a lacidão ( que é a preguiça) – no sentido empregado nos sermões do Vieira; Abguar Bastos utiliza, aqui no “Safra”, outro termo, mais regional: a morrinha.
A descrição da morrinha: O que é a morrinha? (Observem o que é a influência naturalista aqui …) “Morrinha é aquela vontade de espreguiçar-se, de bocejar, de olhar as paisagens sem o castigo dos detalhes. Não andar, ou andar mansamente. Descer, em vez de subir. Não chegar ao fim de coisa alguma. Não trabalhar. Não se aborecer. Não ligar as circunstâncias, nem os mínimos incidentes”. Quem está com morrinha, aqui, é o Valentim, que está preso. Agora, se nós destacarmos só esta descrição do que é a morrinha (a vontade de não trabalhar...), veremos que é a ausência de qualquer interesse artístico (vejam como essa é uma expressão artistica): “(...) olhar as paisagens [esse é o olhar do homem da região; não dos estrangeiros sobre a região] sem o castigo dos detalhes”. Um pesquisador que venha construir um relato sobre viagens não pode olhar a paisagem assim; ele tem que olhar as paisagens e se castigar com os detalhes. Ele tem que procurar registrar tudo o que há, nos seus detalhes, nas suas minudências (pormenores). Aqui a morrinha é uma outra coisa. É um vazio estético aqui também. Mas se nós destacarmos isso aqui simplesmente, pode somente ratificar alguma impressão sobre a hileia amazônica, sobre aquilo que lá os relatos dos sermões dos jesuitas chamavem de autérios (aquele mundo outro que é a Amazônia) – autério não é só a imagem sobre o Brasil, é a imagem sobre a Amazônia: o mundo outro. O autérios poderia até caber na descrição da morrinha: “o indio não quer trabalhar, ele não tem nenhuma perspectiva de cultura. O clima não convida a isso”. Mas aqui ele dá um outro tom para a morrinha: aqui ele descreve, e lá no final ele diz o seguinte:

“Hora de morrinha. Valentim queria saber se ela estava ali, no meio do povo cristão, afim de que, de noite, soltos dela, todos tivessem impressão de ter quebrado um encanto milenar para o reencontro com a vida. Estava cheio de calma, apenas desejava que aquela morrinha não acabasse mais, nunca mais. As mãos caiam das grades grossas, e Valentim dormiu, quieto, como um homem morto”.

A morrinha, para ele, aqui, era a forma, também, de ele sobreviver nessa prisão. E o único sonho a que ele se permitia era a ideia de que, acabada a morrinha, a noite, talvez ele – assim como o povo critão, como ele se refere à população do seu local – pudesse acreditar estar livre de alguma coisa, estar livre de um encanto milenar, um encanto que se abate sobre todos eles naquele local a uma determinada hora. Um encanto, um enfeitiçamento, o elemento místico que acaba se misturando com uma força da natureza. A natureza sendo descrita com algo de místico, com elementos de misticismos, e que se abatem sobre o desejo das pessoas, sobre a compreensão delas, que turva o pensamento, mas que, no entando, consegue também dar algum tipo de refrigério, dar algum tipo de consolo: Valentim consegue dormir numa cadeia podre, por causa da morrinha. Ele dorme de tarde, e não de noite. A noite é o horário dos morcegos e das lacraias. Portanto, ele dorme não de noite, mas na morrinha. Todos dormem na morrinha.
O desenho que há no final deste capítulo é um jacaré durmindo, confundido aí com um tronco: esse é um elemento que é trasformado esteticamente pelo Abguar Bastos, mas não é uma ideia original dele. A mistura do elemento natural que transcende para algum significado místico está aqui, na discrição da morrinha. A ideia de que essa precença imperiosa do clima determina os nossos horários e determina também os nossos sonhos, as nossas espectativas e os nosso desejos está presente aqui também na descrição da morrinha.
Há outros elementos do vazio que são necessários mencionar. Nós já falamos dessa questão do clima; agora, há outro, que é de uma interpretação mais geral, e que eu queria propor aqui como uma hipótese de trabalho: se nós podermos resumir qual é a dificuldade de Vieira ao falar profeticamente … aliás, falar um pouco de quem é este personagem se faz necessário nessa altura: Viera foi um personagem absolutamente fascinante. Ao mesmo tempo que foi um homem inegavelmente culto e refinado, ele era – não é um outro lado, mas algo que pertencia a ele também, e que é bem difícil de entender a não ser que você entenda a formação do Padre Vieira como um todo – um sujeito envolvido com profecias populares.
Nós estamos falando do Vieira das trovas do Bandarra (bandarra era um conjunto de trovas líricas que falavam sobre o fim do mundo). Elas levaram, inclusive, o seu autor (seu autor era o Bandarra, um sapateiro do interior de Portugal) a ser preso, condenado e morto pela inquisição. Vieira também, depois da sua decadência, foi preso pela inquisição e estava profundamente envolvido, nessa fase, com a escritura de profecias, que tinham por base o Bandarra – essas profecias de Vieira eram sobre o quinto império.
Só que o Bandarra estava, todo ele, girando em torno do sebastianismo (ou seja, em torno do retorno do Rei Dom Sebastião em Ourique), ao mesmo tempo que a ideia original da formação de Portugal, que era a Revelação de Ourique (Cristo teria falado com Dom Afonso Henriques no século XII, mas precisamente em 1179, na batalha pela libertação de Lisboa, do circulo de Lisboa, e Portugal conseguiu ser libertada com um pequeno exército cristão contra o exército dos mouros, que era cinco vezes maior). Dessa forma, atribui-se a fundação de Portugal um sentido místico grande, ate por que o Rei, Dom Afonso Henriques, morre um ano depois, ou seja, como se tivesse indo somente para libertar Lisboa dos Mouros, fundar o reino e morrer logo depois. Aí criou-se todo um misticismo ligado à política em Portugal, e que vai se reforçar também, mais a frente na história, de Dom Sebastião. O Bandarra é todo cheio dessas histórias, e essa componente místico entra também na formação do padre Vieira, que se torna profético na última fase de produção da sua obra, de seus “Sermões”, o que determina a prisão dele; ele que era um homem grande do império.
Agora, qual é o elemento de relação do “Safra” com o profetismo do Bandarra e do Padre Vieira? O grande desafio de Portugal em criar um quinto império estava em como resolver a questão desta terra fora do tempo e do espaço, que era a terra da floresta, da Amazônia. De alguma maneira, a criação do quinto império dependia da superação desse desafio, e era por isso que o Vieira estava aqui. No Brasil, a profética do Padre Vieira foi no Grão-Pará e no Maranhão, e o grande desafio para ele, na criação do quinto império, era como resgatar essa terra, que estava fora do tempo e do espaço. Você tem um enorme território, o qual, politicamente, representa algo muito importante: as riquezas estão escondidas nesse território, que tem um significado geopolítico, um significado de expansão, de presença na terra nova, mas tem um grande desafio aqui: como criar o quinto império a partir de uma população, absolutamente vazia, de um território inóspito e dominado por essas forças (que são não integrativas): um território de um clima sufocante, de uma população absolutamente dispersa e de pessoas sem nenhum tipo de perspectivas em relação ao local onde vivem, ao futuro, à civilização (coloquemos aqui como um desafio civilizatório).
Eu não estou querendo colocar palavras na boca do Padre Vieira e nem fazer uma interpretação que corre o risco de ser algo, aqui, anacrônico; mas, ao mencionar o quinto império, Vieira está, expressamente pensando no defafio civilizatório, de como integrar um lado do Brasil que é completamente diferente de todo o outro lado Brasileiro.
E isso aparece em vários momentos do “Safra” também como representação do Vazio, como maneira do Valentim enxergar o seu próprio povo e o seu próprio território. O território não é, aqui, um elemento de poder simplesmente. Ele representa um certo poder, o que se manifesta através das lutas de poder entre os coroneis. Poder este que é tão sufocante quanto o clima, é tão intenso e titânico quanto esse espaço (porque capaz de subjulgar completamente os pequenos); mas é também, ao mesmo tempo, ridículo porque essas lutas de poder se dão dentro de um espaço que é limitado para todo mundo, inclusive para esse coroneis.
O que é interessante de observar na descrição o “Safra” é que os coroneis são muito poderosos, são determinantes na vida dos pequenos (chamados por aqueles de “pés de Boi”) (amanhã vou ler o trecho sobre os pés de Boi aqui), mas esse coroneis são igualmente pequenos, são impotentes também: quando se coloca a questão dentro do território Amazônico, eles são ridículos, não podem nada contra a terra. A bem da verdade, sozinhos nem os castanhais eles teriam como consumir: os castanhais não se dão na ribeira dos rios, mas sim para dentro do território, na terra firme. E aí, portanto, os coroneis não entram, só os cabras, são os pés de Boi – dos quais dependem os coroneis para dominarem os castanhais. Quando há seca da maré, esses castanheiros pode ficar isolados sem conseguir retirar a castanha por seis meses. E as pessoas que ficam nessas colocações (como se chama essas taperazinhas lá para as brenhas do território) também ficam isoladas muitas vezes sem falar umas com as outras por mais de seis meses. É a mesma lógica que dominava os seringais: o cara ia para uma colocação (só que a colocação dos seringais começava a partir da ribeira; o castanha não, já que é bem mais para dentro da ribeira).
Esse elemento de poder não vale nada também dependendo do tipo de perspectiva que adotemos aqui. Se nós observarmos as pequenas relações dentro da vila, o coronel manda; mas se nós observarmos essas relações dentro da região – atentando para o contexto natureza e cultura, para o ambiente onde aquilo se encontra –, chega a ser ridículo. Ele (Abguar Bastos) não diz isso expressamente, é claro que não. Agora, há um episódio que isto é descrito com muita clareza: todos eles, os grandes chefes, só tem um divertimento naquela região. Há uma casa de comércio que é de um sírio, e este sírio tem o hábito de comandar a jigatina de poker, o qual reúne os dois chefes da região – o Leocádio e o Dalvino. Vem o promotor, vem o prefeito, o delegado; nunca vai o advogado, que é o Deutônio (outro personagem sobre o qual iremos falar), ele é o personagem com maior dignidade aqui. O sírio, particularmente, não gosta de poker, ele apenas joga e comanda as mesas. Ele vende todas as coisas e dá o crédito para os caras quando é necessário.
É interessante observar o seguinte: primeiro, a única coisa que esses caras fazem é sentar na mesa e jogar a noite inteira. Um dia vai um dos coroneis; noutro dia, outro. Eles não se encontram. Mas um episódio engraçadíssimo é quando um deles perde a conta, e os dois chegam quase ao mesmo tempo na casa para jogar: já estava um sentado na mesa, aí chegou o outro, e vai se fazer de conta que o dia era realmente do outro, mas quem é que vai ter coragem de subir lá com o outro coronel e pedir licença? O que eu sei é que acabam se reunindo todos numa mesma mesa e é essa a decrição que é engrançada mas ao mesmo tempo é também a descrição da grande miséria humana, mesmo entre esse grupo que, nos outros capítulos, é o grupo dos mandatários. É quando ele faz a descrição da pobreza extrema que envolve a todos ali, e que eles gostavam muito mais do jogo – e da cachaça – do que das suas respectivas mulheres. E começa a trabalhar isso ao longo do capítulo de maneira a dizer que, àquela mesa, a única alternativa que eles tinham diante da solidão de cada qual – que é a solidão do jogo e da cachaça – era, para manterem ambos, cachaça e jogo, sentarem juntos alí. E depois, diante dessa necessidade, todas as inimizades iriam se desfazer. E eles sentaram juntos, jugaram a noite inteira e, de dia, eles ficavam elogiando a dignidade de um e do outro.
É um episódio engraçado, até pela agonia do sírio, mas ele termina com um toque, que é o mesmo no final de todos esses capítulos, com uma tristeza, de um ambandono, da necessidade mesmo dos grandes inimigos de depender um do outro de poderem se dar algum mínimo de prazer que eles têm naquela região erma, de afundamento no meio do rio, onde de noite não tem luz, esta somente cultivada nas velas …
É, portanto, um livro que realiza alguns desses vazios que tradicionalemnte estão plasmados nos relatos dos viajantes – nas crônicas de viagens – e nos “Sermões” do Padre Vieira, o lado místico aí do inrrecuperável desse tempo e do espaço.
O desafio que isso pode nos sugerir é também aquele que nos coloca no ponto de partida do tema desse encontro: quando nós falamos em hermenêutica do vazio, eu disse que não dá para interpretar o vazio, mas sim as suas representações; assim também como não se interpreta algo fora do tempo e do espaço: essas representações fora do tempo e do espaço constituem uma hermeneutica impossível, inexequível, inviavel. Portanto, mesmo quando se coloca essa região fora do tempo e do espaço, isso, por si só, já constitui um elemento dentro do tempo e do espaço que se pode interpretar. Esse é o ponto de norte também para aquilo que vamos tentar fazer na análise do romance: por que isto é considerado desta maneira? qual o significado dessas interpretações – e a possibilidade de construção em cima dessas interpretações – que tem sido utilizados ao longo do tempo?
Eu classifico quatro espécies de elementos sobre o vazio que se permitem decifração no romance “Safra” – a hermenêutica é essencialmente a decifração desse signo (nós estamos fazendo a decifração do signo da representação do vazio):

a Amazônia como um vazio humano e um vazio civilizatório (esse é um primeiro grande vazio): na página 123 do “Safra” há uma descrição: “Major Leocádio dissera uma vez a Valentim que a Amazônia dava tudo e tinha tudo, mas não havia máquinas, não havia ajuda, o homem tinha que lutar sozinho, não adiantavam grandes roçados, não adiantava plantar; negócio era explorar o que a natureza dava, fosse madeira, borracha, ouro… fosse o perfume de cumaru, fosse remédio de copaíba ou de andiroba, fosse leite de maçaranduba, breu ou pluma de sumaúma. O negócio era este: levantar o braço e colher o fruto, a folha, a casca, a poupa, a resina. Era baixar o braço e colhar a raiz, o tubérculo… desde que isso desse dinheiro. Criar gado era bom; plantar mandioca, tinha alguém que a plantasse; mas o que se ganhava era só para enganar a vida. Naturalmente, dizia ainda o Major Leocádio, a cana de açúcar não era mal negócio, por que dava o açúcar, a rapadura, o mel, a cachaça e o álcool; porém, tudo isso não se ajustava áquelas funduras do rio solimões. O Major Leocádio apontava no mapa e ia dizendo o que sentia: o que importava se houvesse pérola no tocantins, cristal no rio branco, ou no araguaia, ou no iapoque, causoene, na ponta dos indios, ou no manori. Que que importava que da anhinga se tirasse matéria-prima para o papel; que a “cima” (cimeira) pudesse suber e substituir a “junta” indiana, ou que se tirassem inseticida do timbó. Tudo isto, segundo Major Leocádio, era bonito no papel ou no sonho; não na realidade, porque a realidade do Cuari era somente a castanha”. O que é curioso aqui, além de mencionar uma série de impressões que se reproduzem às duzias na literatura sobre a amazônia ( como “o homem tinha que lutar sozinho”, que “não adiantavam grandes roçados”, que “a questão não era plantar, era colher o que estava lá” [e que nem isso tinha muito sentido, porquanto, dependendo do período, apenas uma coisa era a realidade. Agora, no Cuari, a realidade era a castanha; antes, o seringal]). Ele chega a falar, com um certo tom de saudade, da época em que o seringal era a realidade da região. Ele tinha até uma expressão que dizia o seguinte: “nem parecia que o mato era mato; cheio de homens, e era tiro aqui e aculá, e era animal correndo, indio correndo; e a vida do indio era correr, e corria...” e começou a descrever aquela região toda movimentada. Esse aqui é um vazio: não adianta plantar, o trabalho do homem, a criação, é propriamente a plantação. Não adianta plantar, você está sempre sozinho ali para isso, você tem é que extrair.
Esse é um modelo, é um valor paradigmático aqui. E é interessante que ele fala isso numa contraposição àquilo que é um discurso quase que fundador sobre as terras do Brasil: “em se plantando tudo dá” (ainda que a interpretação desse frase seja problemática). Mas, esta frase, é um discurso fundador de algum valor de trabalho sobre uma terra colonizada, uma terra que deve ser industriável. Aqui no “Safra”, ele (Leocádio) não vai negar, aqui tudo dá, mas não adianta: não tem máquina, não tem ajuda; é melhor colher o que tem, e nem tudo que tem funciona, porque a realidade é absolutamente seletiva: a realidade é a castanha. No momento que isto dá, todo o resto perde o valor. E observem o que ele está falando aqui, ele dá uma série de exemplos: tem um determinado produto que pode substituir a matéria-prima do papel, uma fibra específica para fazer chapéus; ele fala de perfume… ele fala de uma série de elementos civilizatórios, elementos de uma cultura e de uma indústria do luxo: mas o que importa tudo isto, o que importa se é assim? O que importa é a castanha, é isso que se quer hoje (na tempo do romance), todo resto acabou, se estraga, depois a natureza recupera, vai se reproduzindo… não interessa, porque aqui não é civilização.
Esses elementos civilizatórios não têm a mesma linguagem aqui. Papel? Perfume? Fibra? Tudo isto que interessa para a industria não interessa para cá; aqui é a castanha. Aqui, ninguém planta a castanha, ela já está lá. Você só precisa do homem suficientemente corajoso (ou resignado) para avançar na brenha da floresta e depois rezar para que o período da colheita, da safra, coincida com a boa maré, a maré alta, por que senão você colhe e aquilo vai estragar porquanto você não tem por onde descer. Isso é um vazio.
O vazio das esperanças, aqui da página 134:

“Na vila desfinal os pés de boi [que são aqueles caras dominados pelos coroneis, aquelas quais não têm terra], uns a caminho da cadeia, uns a caminho dos sírios, para se individar no comércio local, outros passam para o cemitério, e ainda outros, já despozados, bebem cachaça e disparam murros sobre os balcões das tascas, enquanto as moscas zumbem e lhes emaranham os cabelos secos e duros. Todos vêm das guelas dos rios traiçoeiros. Todos suam na mescla ordinária a lama e o barro das estradas desertas. Todos, como Valentim, voltam angustiados e cansados para as suas casas, logo que a noite, como carangejeira, solta sobre as florestas seus pelos negros e luzidios”

Os caminhos determinam as esperanças que cada qual pode ter. Só existem fins muito precisamente delimitados aqui para os pés de boi: ou eles vão para a cadeia, ou eles vão se individar no comércio, ou eles vão para o cemitério, ou eles se acabam na cachaça, com a mesma sujeira que sempre caminha com eles até que a noite os envolta. Não tem mais nada para eles além disso aqui.

Obs.: Esse curso sera objeto de uma segunda postagem, relativa ao segundo dia em que se desenvolveu. Sou devedor da gentileza e entusiasmo dos meus alunos Jose Roberto e Braulio Marques, este meu monitor atualmente, pela transcricao e envio do texto, respectivamente.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

RONALD DWORKIN E A UNIDADE DE VALOR

Texto muito bem cuidado de autoria do Prof. Dr. Paulo Klautau Filho, do CESUPA, especialista na obra de R.Dworkin, que para além de uma apresentação crítica do novo livro de Dworkin, funciona como uma breve introdução ao horizonte de seu pensamento. Excelente leitura! Obrigado, Paulo, pela autorização para divulgação.
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I. INTRODUÇÃO

O mais recente livro de Ronald Dworkin, Justice for Hedgehogs, foi lançado em janeiro último, precedido por grande expectativa no meio acadêmico e jurídico. Antes mesmo da publicação, os manuscritos preliminares foram amplamente discutidos e criticados em aproximadamente trinta papers, apresentados em simpósio promovido pela Boston University Law School no primeiro semestre de 2010. Este material, acompanhado das respostas de Dworkin aos críticos, foi publicado em edição especial da Boston University Law Review 90, nº 2 (abril de 2010), intitulado Symposium: Justice for Hedgehogs: A Conference on Ronald Dworkin’s Forthcoming Book.[1]. Dworkin procurou incorporar as críticas e sugestões ao texto agora oficialmente publicado.
Tamanha expectativa e repercussão prévia atestam o reconhecimento da relevância da contribuição de Dworkin para a filosofia política, a filosofia moral, a filosofia do direito e a teoria da justiça contemporâneas. Em Justice for Hedgehogs, Dworkin propõe uma visão unificada de sua reflexão sobre esses campos do conhecimento ao longo de mais de quarenta anos.
Além disso, o lançamento dessa obra, juntamente com o último livro de Amartya Sen, The Idea of Justice, faz parte das efemérides comemorativas dos simbólicos quarenta anos da publicação, em 1971, da Teoria da Justiça, de John Rawls.
Nesse contexto, as discussões que antecederam à publicação de Justice for Hedgehogs (daqui por diante, Justice) marcam apenas o início de um profícuo debate em torno da questão da justiça distributiva, da “boa vida” e da natureza interpretativa dos conceitos morais, éticos, políticos e jurídicos, tal como abordados por Dworkin.
Na linha de trabalhos dedicados à filosofia do direito que venho propondo em meus artigos para A Leitura, gostaria de desenvolver um texto introdutório das teses apresentadas por Dworkin nesse seu último livro. Espero com isso contribuir para situar e iniciar os interessados na discussão que certamente se seguirá nos próximos anos.
II. RAPOSAS E OURIÇOS
Dworkin defende uma tese filosófica ampla e antiga: a da unidade do valor.
O termo hedgehogs do título corresponde à palavra em língua inglesa para ouriços (porcos-espinhos). Invoca uma frase do poeta grego antigo Arquilochus, tornada famosa pelo filósofo político britânico Isaiah Berlin: “a raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma coisa grande”.
Dworkin se pretende um ouriço. Para ele, o valor é uma única coisa grande. A verdade sobre como viver bem e  sobre como ser bom é não apenas coerente, mas mutuamente reforçada. Ele tenta ilustrar a unidade entre valores éticos (dizem respeito ao que devemos fazer para viver bem) e morais (dizem respeito ao que devemos uns aos outros), propondo uma teoria sobre o que é viver bem e sobre o que, se queremos viver bem, devemos fazer e não fazer para as demais pessoas. (DWORKIN, 2011, p.1)
Como se vê, o professor da New York University vai além dos horizontes da filosofia do direito e da teoria da justiça. A idéia de que valores morais e éticos dependem uns dos outros é apresentada como um credo, uma proposta de um modo de viver.
Trata-se, também, de uma ampla e complexa teoria filosófica exposta em cinco partes (subdivididas em 19 capítulos): “Independência”, “Interpretação”, “Ética”, “Moralidade” e “Política”.
O livro inicia por temas mais técnicos do mainstream da filosofia contemporânea – meta-ética, metafísica, conhecimento, hermenêutica e significado – até alcançar temas de moralidade política e justiça.
Mas, de acordo com sugestão do próprio Dworkin, na introdução ao livro e na fala de abertura do simpósio na Boston University, passo a expor a presente síntese a partir dos arranjos que o autor considera exigências da justiça, partindo, depois,  para as outras temáticas, sempre tentando relacioná-las entre si e com a idéia de unidade de valor, fio condutor de toda a obra.
III. JUSTIÇA
i) Igualdade.
Dentre as exigências do conceito mais amplo de justiça, Dworkin retoma, aqueles que considera como os dois princípios fundantes da legitimidade de qualquer governo, apresentados em Sovereign Virtue (2000), obra em que consolidou sua visão do liberalismo igualitário. Refiro-me aos princípios do igual cuidado (equal concern) e da responsabilidade especial (special responsibility).
O primeiro princípio implica que todo governo deve mostrar igual cuidado pelo destino de cada pessoa sob seu domínio. Pelo segundo princípio, o governo deve respeitar a responsabilidade e o direito de cada pessoa de fazer de sua própria vida algo de valor.
Dworkin examina, então, o impacto desses dois princípios sobre a questão da justiça distributiva, lembrando que não há distribuição politicamente neutra dos recursos de uma nação. Toda distribuição é, em grande parte, a conseqüência das leis e políticas públicas que o governo decide adotar. Desse modo, toda distribuição deverá ser justificada pela demonstração acerca de se e como ela se adéqua aos dois princípios legitimadores já explicitados.
Dworkin testa, primeiramente, a “tese do laissez-faire” (DWORKIN, 2011, pp. 352-354), segundo a qual a economia deve ser dominada por mercados sem restrições, nos quais as pessoas são livres para comprar e vender o seu trabalho como desejarem e puderem. Os adeptos dessa visão sustentam que a justiça traduz-se no fato das pessoas obterem para si o que conseguirem nessa livre disputa. Dworkin questiona se mercados irrestritos conseguem atender ao princípio do igual respeito por todos. Afirma que uma pessoa que perde no jogo do mercado e acaba na pobreza teria o direito de perguntar: “Já que outro conjunto de leis poderia me assegurar uma melhor situação, como posso defender leis que geram a atual distribuição? Como pode o governo afirmar que as leis vigentes me tratam com igual cuidado?”
Segundo Dworkin, não correto a um defensor do laissez-faire sustentar simplesmente que as pessoas são responsáveis pelos seus próprios destinos. Afinal, as pessoas não podem ser responsabilizadas por muito do que determina o sucesso ou insucesso nesse modelo econômico, já que não podem ser consideradas moralmente responsáveis por suas heranças genéticas e por seus talentos inatos (explícita influência da “loteria natural” de Rawls). Conclui que a maior ênfase no princípio da especial responsabilidade não legitima a adoção de um modelo que leve a grandes desigualdades, em detrimento do princípio do igual cuidado.
Examina, então, o outro extremo: um governo que tornasse obrigatória a igualdade de riqueza, não importando as escolhas feitas pelos indivíduos. Periodicamente, este governo recolheria toda a riqueza produzida na sociedade e a redistribuiria igualmente entre todos, sob a justificativa do princípio do igual cuidado. Tal programa de ação não respeitaria, contudo, a responsabilidade das pessoas por suas próprias vidas, porque suas escolhas acerca do que fazer – trabalho ou lazer, poupança ou investimento – não trariam conseqüências pessoais. Mas é parte de qualquer concepção de responsabilidade individual que se possa fazer escolhas com um senso de conseqüências. Em outros termos, as pessoas devem fazer suas escolhas, entre trabalho ou lazer, investimento ou poupança, atentas aos custos de tais escolhas para os demais. Se alguém opta por se dedicar exclusivamente ao lazer ou a um trabalho que não produza o que as demais pessoas precisam ou desejam (como estudar e escrever sobre filosofia...), deve assumir plena responsabilidade pelos custos que a escolha impõe, inclusive a conseqüência de obter menores recompensas no jogo do mercado.
 Ante os limites dos dois modelos discutidos, Dworkin aponta que a questão da justiça distributiva deverá ser colocada como a busca de uma solução que respeite simultaneamente os princípios do igual cuidado e da responsabilidade especial. Ele procura fazer isso no Capítulo 16 do livro, retomando o conceito de igualdade de recursos desenvolvido em Sovereign Virtue (DWORKIN, 2000, pp. 65-120), mas, agora, de modo integrado à sua teoria sobre a unidade de valor.
Além disso, Dworkin enfatiza que seu modelo de justiça distributiva é apenas um primeiro passo para uma teoria da justiça mais geral. É preciso, ainda, considerar outras exigências, como as que envolvem os conceitos de liberdade, democracia e direito.
ii) Liberdade.
A justiça requer uma teoria da liberdade tanto quanto uma teoria sobre a igualdade de recursos. Dworkin alerta para os riscos de que tal teoria da liberdade entre em conflito com a teoria igualitária de justiça distributiva por ele defendida (tal como ocorre na visão libertária do laisse-faire)   No Capítulo 17, ele argumenta em favor de uma teoria de liberdade que procura eliminar tal perigo.
Inicialmente, distingue entre duas modalidades de liberdade com base em duas palavras distintas em língua inglesa: freedom e liberty. A primeira consiste na ampla faculdade de se fazer o que se quiser sem qualquer restrição governamental; a segunda diz respeito àquela parte precisa da liberdade-freedom que o governo estaria errado em restringir. Desse modo, Dworkin não aceita um direito geral de liberdade (freedom). Em vez disso, defende um direito de liberdade (liberty) relacionado de maneira complexa com as outras demandas da justiça.
Ele destaca três tipos de argumentos para justificar a liberdade. Primeiramente, precisamos de liberdades, particularmente a liberdade de expressão, porque elas são necessárias para um sistema de governo democrático eficiente e justo. Nessa linha, cabe, também, notar que as pessoas têm direitos de liberdade, como à propriedade e ao devido processo legal, que decorrem do princípio do igual cuidado. Em segundo lugar, temos um direito ao que Dworkin chama de independência ética, a qual decorre do já referido princípio da especial responsabilidade. Alega que temos um direito de fazer escolhas fundamentais sobre o significado e a importância da vida humana. Ele diria, por exemplo, que esse direito foi utilizado pelo Supremo Tribunal Federal no Brasil como fundamento último para admitir a constitucionalidade da lei que regula pesquisas com células-tronco. Em terceiro lugar, diz que temos um direito, também fulcrado na independência ética, de não ter negada nenhuma liberdade quando a justificativa governamental se basear apenas na popularidade ou na alegada superioridade de alguma concepção sobre a melhor maneira de viver. Pense-se na recente decisão do Supremo Tribunal Federal reconhecendo a união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Para Dworkin, esse modelo da liberdade afasta a possibilidade de conflito com sua concepção de igualdade de recursos, porque as duas concepções seriam plenamente integradas: cada uma delas depende da mesma solução para a equação entre o igual cuidado e a especial responsabilidade. Não se pode determinar o que a liberdade demanda sem também decidir qual distribuição de propriedade e de oportunidades melhor atende ao princípio do igual cuidado. Por isso, nessa abordagem, a visão muito popular de que a tributação invade a liberdade é falsa, desde que aquilo que o governo exige do contribuinte possa ser justificado em bases morais.
Conclui, parcialmente, que uma teoria da liberdade deve ser fundada em uma moralidade política mais ampla, devendo ser coerente e integrada a outros aspectos dessa teoria.
iii) Democracia.
Há outro suposto conflito, segundo Dworkin, entre dois tipos de liberdade: positiva e negativa. A liberdade negativa é a liberdade de interferências do governo; a liberdade positiva é a liberdade de governarmos a nós mesmos participando do governo. Para nós, modernos, a liberdade positiva significa democracia, de maneira que precisamos confrontar a sugestão familiar de que a democracia genuína talvez afronte a justiça ou a igualdade, na medida em que uma maioria pode não respeitar os direitos de indivíduos ou de minorias. É o que ocorre, por exemplo, quando uma maioria vota pela incidência de tributação injusta ou pela restrição a liberdades fundamentais.
Dworkin responde a essa sugestão distinguindo especialmente duas, dentre várias concepções de democracia: a concepção majoritária ou estatística e a “concepção da parceria” (partnership conception). Esta última, defendida por ele, sustenta que numa sociedade genuinamente democrática, cada cidadão participa como um parceiro em igual, o que significa mais do que possuir o poder do voto. Significa ter uma voz igual e um interesse igual nos resultados. Nessa concepção, a própria democracia requer a proteção dos direitos individuais de justiça e liberdade que alguns dizem ameaçados pela democracia.
iv) Direito.
No Capítulo 19, Dworkin discute o direito como parte essencial de seu arranjo político. Lembra que desde os primeiros dias da faculdade somos alertados para o potencial conflito entre direito e justiça. Segundo essa visão, nada garante que as leis são justas; e quando elas forem injustas, as autoridades e os cidadãos deverão, em virtude do Estado de Direito (rule of law), respeitá-las, comprometendo o ideal de justiça.
Por sua vez, na proposta de Dworkin, complementar à visão apresentada em Law’s Empire (1986), o direito é descrito não como algo apartado, paralelo ou mesmo potencialmente conflituoso com moral, mas como um ramo da moralidade.
Enfatiza a importância da chamada justiça procedimental (DWORKIN, 2011, pp. 413-415), destacando a moralidade da forma e da justa governança tanto quanto dos justos resultados. Trabalha com a idéia de que é preciso entender a moralidade em geral como a estrutura de uma árvore: o direito consistiria em um ramo (dotado de executoriedade própria mediante instituições adjudicativas e coercitivas que independem de posterior legislação) da moralidade política, a qual, por sua vez, seria um ramo da moralidade em geral, que também se integraria a uma teoria geral sobre o que é viver bem. Em síntese parcial, para Dworkin, o direito nada mais é do que parte de nossa resposta atual e possível à questão sobre como viver bem.
Até aqui, esboçamos como Dworkin apresenta suas concepções das virtudes políticas, tentando adequá-las umas às outras. De fato, ao longo da obra ele defende que, no âmbito da moralidade política, a integração é uma condição necessária de verdade. Em outros termos, sustenta que devemos nos esforçar para demonstrar que nossas concepções políticas são compatíveis, e que, após detida reflexão, sustentam-se como convicções. Daí, a necessidade de se indagar rigorosamente sobre como demonstrar que uma concepção de igualdade ou de liberdade ou de democracia é correta e as demais são erradas. Como demonstrar e o que significa dizer que um conceito de moralidade política é verdadeiro?  Esse, o desafio que Dworkin se dedica enfrentar na Parte Dois do livro: Interpretação.

IV. INTERPRETAÇÃO
Dworkin considera necessário pensar sobre conceitos, para que se possa distingui acerca dos tipos de conceitos que usamos. Entende que partilhamos alguns conceitos, porque partilhamos critérios para sua aplicação. Quando não partilhamos critérios em casos limítrofes, nossa discordância não é real. Exemplifica: em geral concordaremos sobre quantos livros há sobre uma mesa, porque partilhamos o mesmo conceito de livro. Nossa discordância acerca de quantos livros há sobre uma mesa pode ser meramente vocabular. Uma pessoa pode entender que um panfleto é um livro e outra não. Mas elas não discordarão sobre quantos “objetos destinados à leitura” há sobre a mesa. Tal discordância será ilusória.
Mas justiça, liberdade, igualdade, democracia e outros conceitos políticos são diferentes. Certamente, estão entre os conceitos mais importantes que partilhamos, apesar de não partilharmos critérios exatos para sua aplicação. Dworkin sustenta que partilhamos esses conceitos políticos, e outros, de um modo diferente. Eles funcionam para nós como conceitos interpretativos. (o Capítulo 8 é dedicado à definição dessa tipo de conceito).
Partilhamos tais conceitos, porque partilhamos práticas e experiências, nas quais são necessariamente aplicados. Entendemos que os conceitos descrevem valores, mas discordamos, em certo grau, e em alguns casos intensamente, sobre como aquele valor deve ser expresso e sobre o que é aquele valor.
Isso explicaria por que teorias radicalmente distintas de justiça são apresentadas como fundamento para responder o que torna uma instituição justa ou injusta. Essas são discordâncias genuínas, de modo diverso à discordância referida sobre os livros. São discordâncias sobre qual descrição de valores fundamentais em discussão sobre a justiça é a melhor.
 E, aqui, já se pode adiantar a resposta de Dworkin a uma das questões que apresentou, “o que é ter uma teoria da igualdade, da liberdade ou do direito?”: temos uma teoria sobre um conceito político quando podemos mostrar quais são os valores a serem realizados nas aplicações daquele conceito. As teorias de justiça utilitaristas dirão, por exemplo, que o valor em jogo é o da felicidade agregada. Outros (com inspiração em Rawls) dirão que são os valores do fair play e da imparcialidade (fairness).
Qual dessas visões, a partir de valores, oferece a melhor compreensão e justificação das práticas ligadas ao conceito de justiça? Qual oferece a melhor justificação de paradigmas de injustiça sobre os quais todos concordamos, como, por exemplo, a condenação de um inocente?
Além disso, cada teoria promove questões ulteriores: o que é felicidade? O que é imparcialidade (fairness)? Provavelmente, pessoas que partilham da mesma teoria discordarão acerca do significado da melhor definição dos seus valores fundamentais. Para argumentar em favor de uma determinada concepção de felicidade ou de imparcialidade, é preciso recorrer a valores ulteriores. E assim por diante. Para Dworkin, compreendemos cada um de nossos valores através da visão de seu lugar numa ampla rede que inclua todos esses valores. Esse fato, afirma, é um argumento importante a favor da sua tese da unidade de valor.
V. VERDADE E VALOR
Dworkin sustenta, expressamente, que há verdades objetivas sobre valor. Ele acredita que algumas instituições são realmente injustas e alguns atos são realmente errados, não importando quantas pessoas acreditem que eles não sejam (invoca o exemplo da tortura de bebês). Pressupõe, portanto, que assertivas sobre valores podem ser verdadeiras ou falsas.
É preciso, então, indagar se esta presunção está correta. Ou as afirmações de valores devem ser compreendidas como expressões de nossas emoções ou construções de nossa personalidade? Ou devemos supor que são compromissos, propostas sobre como pretendemos viver e sobre como sugerimos aos outros que vivam? Para Dworkin, se alguma dessas descrições alternativas for melhor, então seria tolice pensar que afirmações sobre e de valores podem ser falsas ou verdadeiras.
Tais questões são cruciais na discussão de conceitos políticos. Os filósofos que negam que juízos morais ou políticos possam ser verdadeiros, oferecendo aquelas compreensões alternativas sobre seu papel ou função, têm em mente, diz Dworkin, nossas vidas privadas. Afirmam que o melhor é tratar os juízos morais apenas como expressões de atitude ou algo do tipo. Além de não concordar com essa posição acerca de nossas vidas privadas (no Capítulo 9, defende a ideia de que nossa dignidade implica no reconhecimento de que o viver bem não é apenas uma questão de achar individualmente que se vive bem), Dworkin afirma que esse raciocínio é mais grave ainda no âmbito político. A política envolve questões de vida e morte. Por isso, não podemos exercer nossa responsabilidade como governantes ou cidadãos, a não ser que possamos ir além de dizer confortavelmente que: “esta visão sobre o que a igualdade requer me agrada ou expressa minhas atitudes ou estado de espírito acerca de como planejo viver”. Para Dworkin, precisamos ser capazes de dizer: “Isto é verdade”. È certo que outras pessoas discordarão. Mas aqueles que exercem o poder devem, pelo menos, acreditar no que dizem. E isso significa que a velha questão, “a moralidade pode ser verdadeira?”, alcança sua maior importância na moralidade política.
VI. RESPONSABILIDADE
A concordância sobre a possibilidade de veracidade/falsidade de juízos morais e políticos não dispensa reconhecer que discussões sobre o que é falso e verdadeiro não são facilmente resolvidas. Aqueles que discordam a respeito, por exemplo, da justiça de um determinado sistema tributário ou de determinado sistema público universal de saúde, fundados em diferentes teorias da justiça, provavelmente não conseguirão persuadir uns aos outros. Pelo contrário, se a natureza dessas discordâncias sobre moralidade política for tal como sugere Dworkin, elas continuarão se expandindo para outras áreas da teoria moral e ética. As pessoas continuarão a discordar e a discordância se tornará cada vez mais profunda.
 Dworkin aponta, então, para outra importante virtude moral: a responsabilidade. Se não podemos exigir concordância de nossos concidadãos, podemos exigir responsabilidade.  E precisamos desenvolver uma teoria da responsabilidade moral suficientemente detalhada, de modo que possamos dizer a algumas pessoas: “discordo de você, mas reconheço a integridade de seu argumento. Reconheço a sua responsabilidade.” Ou: “concordo, mas você ‘tirou cara ou coroa’, ou baseou-se apenas no ‘Jornal Nacional’; logo, você formou sua opinião de maneira irresponsável”.
Dworkin chama sua teoria da responsabilidade moral de “epistemologia moral”. Apesar de podermos “tocar a verdade moral”, podemos argumentar bem ou mal acerca de questões morais. Sua teoria da responsabilidade moral é parte de sua teoria mais ampla sobre a interpretação. A argumentação moral, para Dworkin, é uma forma de raciocínio interpretativo. Os juízos morais são interpretações de conceitos morais básicos. Testamos essas interpretações verificando sua adequação a uma rede mais ampla de valores. A moralidade como um todo, e não apenas a moralidade política, caracteriza uma empreitada interpretativa.
Para ilustrar sua posição, ao final do Capítulo 8, Dworkin propõe uma leitura das filosofias (ética, moral e política) de Platão e Aristóteles como paradigmas clássicos da abordagem interpretativa.
VII. ÉTICA e MORALIDADE
Na Parte Três (Capítulos 9 e 10), Dworkin argumenta que cada um de nós tem uma responsabilidade ética de fazer de nossas vidas algo de valor (essa, em síntese, sua definição do campo ético). Na Parte Quatro (Capítulos 11, 12, 13 e 14), sustenta que nossas várias responsabilidades e obrigações para com as outras pessoas (campo da moralidade) decorrem de nossa responsabilidade por nossas próprias vidas. Mas somente em alguns papéis e circunstâncias especiais – principalmente na política – essas responsabilidades para com os outros incluem alguma exigência de imparcialidade entre eles e nós mesmos.
Para reunir coerentemente as várias partes do livro, integrando os valores cuja unidade ele reivindica, Dworkin encontra-se diante da tarefa de conectar ética, moralidade e moralidade política. Para tanto, ele se apóia fortemente em dois princípios éticos (princípios sobre como devemos viver nossas próprias vidas) que se emparelham aos dois princípios cardeais do governo legítimo, inicialmente aqui referidos (igual cuidado e especial responsabilidade).
O primeiro princípio ético é o auto-respeito (integrado ao princípio político do igual cuidado). Decorre da responsabilidade de cada um de nós em levar sua própria vida a sério – pensar que importa como se vive – não se e por que acontece de querermos viver bem, mas porque reconhecemos que essa é nossa responsabilidade. Devemos tentar dar valor às nossas vidas. Dworkin fala em valor adverbial: importa mais como se vive, não o que se deixa para trás. Certamente, algumas pessoas deixam grandes obras e tesouros: grandes poemas, grandes livros e descobertas...
A maioria de nós almeja vivem bem em sentido diverso. Queremos viver bem, diz Dworkin em momento de inspiração aristotélica, do modo como se toca bem uma peça musical ou do modo como se pratica bem um esporte. Isso é suficiente, mais do que suficiente, ele complementa: “é maravilhoso” (DWORKIN, 2011, p. 13).
O segundo princípio ético emparelha-se ao outro princípio soberano da moralidade política (igual responsabilidade). Devemos aceitar a responsabilidade de identificar o que conta como viver bem. Devemos, nós mesmos, fazer isso, sem delegações ou subordinações a terceiros.
Esses dois princípios são substantivos. Eles não são verdadeiros por definição, nem seguem alguma lei imutável da natureza humana. A rigor, eles têm sido, historicamente, mais negados do que afirmados. Apesar disso, Dworkin os oferece como verdadeiros. Ele pretende mostrar, agora em modo kantiano, que muitos de nós já aceitamos esses princípios no modo como vivemos.
Dworkin remete a Kant, para dizer que devemos aceitar que o que torna esses princípios verdadeiros é nossa humanidade.  Isso é algo que partilhamos com todos os outros seres humanos. Tal dimensão da moralidade pessoal decorre da ética mais ampla desses princípios. E dessa moralidade pessoal decorre a moralidade política referida inicialmente.
Mas ele alerta que há uma grande diferença entre a moralidade pessoal e a moralidade política: nós, como governantes, em nosso papel político, devemos tratar todos e cada um com igual cuidado; mas, como indivíduos, não temos essa mesma responsabilidade, acredita, Dworkin.
Justifica tal diferença pelo fato da política ser coercitiva. Nela, estamos todos em posição de causar danos aos outros de uma forma que não seria admissível na dimensão da moralidade pessoal. Estamos nessa posição, porque somos parte de uma comunidade, de uma união política.
Numa democracia, todos estamos em posição de causar danos aos demais. Corremos sempre o risco de tiranizar a dignidade dos outros. É preciso, defende Dworkin, encontrar um modo de conciliar esse fato inescapável da política com nossa moralidade pessoal. Ele entende que não é possível fazer isso através de um contrato social: não podemos fazer isso pressupondo um consenso unânime. Podemos e devemos fazê-lo pela aceitação de que essa situação somente poderá ser legítima se todos puderem participar em igualmente em três dimensões: igualdade de voto, igualdade de voz e igualdade de interesse. Igualdade de interesse significa que quando agimos juntos na política, devemos tratar a todos os indivíduos com igual cuidado.
VIII. CONCLUSÃO
A tese filosófica defendida por Dworkin é complexa e bastante abrangente, mas é de leitura acessível. Dworkin escreve com a clareza e elegância que marcam sua forma de raciocínio, além de oferecer, ao longo da obra, vários resumos de argumentos favoráveis e contrários às suas posições.
Suas posições filosóficas apresentam importantes repercussões na forma de ver e pensar o Direito. É, particularmente, inspiradora, provocativa e instigante a idéia de que o Direito é parte de uma teoria geral sobre viver bem.
Como vem fazendo há mais de quarenta anos, Dworkin convoca a nós, profissionais do campo jurídico, para ocuparmos um posto de observação e de reflexão sobre nossas práticas e instituições que nos permita um distanciamento do automatismo e tecnicismo das metas em que nos vemos cotidianamente inseridos. Trata-se também de nossa responsabilidade em praticar bem o bom direito.
Se não pode nos oferecer todas as respostas (o que seria descabido no contexto de uma teoria de argumentação interpretativa), Dworkin é certamente um interlocutor único na construção de nossas próprias convicções.
Espero que o leitor descubra em breve o prazer dessa conversa um dos  intelectuais ligados ao universo jurídico mais estimulante de nosso tempo.



[1] Acessível em:  http://www.concurringopinions.com/archives/2010/05/boston-university-law-review-902-april-2010.html.