segunda-feira, 9 de abril de 2012

Virtudes cívicas e a tensão entre autonomia e heteronomia: uma leitura da aliança hebraica

O objetivo da aula de hoje é entender que a Diké propõe problemas desta natureza, propõe problemas de como essa sociedade se organiza, com que critérios esta sociedade se organiza, para distribuir estes bens. E a definição destes critérios através de ideias que irão estabelecer, é essencial para a manutenção de uma coesão social mínima, que permita a sobrevivência desse processo de sedentarização (um processo mais avançado de sedentarização). Porque se nós não acreditarmos que estas instituições são capazes de realizar isso, nós nos afastamos do convívio social, as sociedades se esvaziam.
A ideia da aula de hoje, é mostrar como isto se forma num processo mais avançado de sedentarização, chamamos isso de virtudes cívicas. A Diké e a Aidos permitem um processo superior, um processo avançado de sedentarização desta sociedade. Estamos diante de uma sociedade que apresenta diferenças, sendo estas hierárquicas, riqueza, de mérito e que precisam ser resolvidas de maneira que todos possamos entender essa resolução. Possamos entender como distribuímos os bens entre pessoas diferentes, classes diferentes, propriedades diferentes, riquezas diferentes, méritos diferentes, e possamos aceitar isso como alguma coisa tolerável em um ponto de vista social. Essa idéia de justiça associada ao respeito é que permite que esse grupo continue reproduzindo essas diferenças sem que essa sociedade se fragmente, que ela se rompa. Pela aceleração deste processo de divisão social. Se não houvesse algum critério institucional, algum discurso aceitável no imaginário social, o Direito funciona para isso também, a própria aceleração da divisão social provocada pela sedentarização, provocaria o rompimento desse agrupamento social, mas isto não acontece. O que acontece é que nós continuamos dividindo os trabalhos socialmente, continuamos perpetuando e inovando nas diferenças sociais (riquezas, méritos, etc.), mas a sociedade não se rompe. Com algum mecanismo compensatório dessa diferença é capaz de manter a coesão dessa sociedade, na pista desse mecanismo de estabilização que nós estamos agora, na História do Direito e do pensamento jurídico.
O que se propõe aqui com essas virtudes cívicas é um problema que demanda solução. É o problema da tensão entre a heteronomia e a autonomia, que em algum momento se torna consciente nessas sociedades sedentárias, ainda estamos falando de sociedades anteriores a antiguidade clássica (Grécia e Roma). O que é a tensão entre a heteronomia e a autonomia? Heteronomia é a norma externa, é a norma que vem de fora, a norma que se origina fora do sujeito (heterônomos) e a autonomia é o antônimo, é a norma própria, é a norma do sujeito, que se origina no sujeito. Não há problema algum quando nós perguntamos porque que um sujeito deve obedecer a uma norma autônoma? Esse problema não é razoável, e isso está em Kant (Os Fundamentos da Meta Física dos Costumes) é porque nós não podemos desobedecer a nossa própria vontade. Não temos como desobedecer algo que se origina algo da nossa própria vontade, nossa autonomia. Nós sempre obedecemos a nossa vontade. Se eu me proponho a alguma regra, e eu obedeço essa regra, eu a obedeço porque ela é minha. E se eu a desobedeço eu também estou obedecendo a minha própria vontade de desobedecer a própria regra.
Agora com a heteronomia é outro problema, com a norma heterônoma é outro problema. Por que eu devo obedecer a SUA regra? Porque eu devo obedecer a regra do tirano desta cidade? A regra do rei dessa cidade? Porque obedecer a regra do pontífice dessa cidade? Se não são as minhas regras, porque eu devo obedecer as regras de um magistrado? E essa é a tensão entre heteronomia e a autonomia.
A Diké e a Aidos são as virtudes, são as ideias cívicas que nos permitem entender os termos em que esses problemas estão sendo propostos e nos forçam para resolver esta tensão a avançar para outras idéias. Primeiro a Aidos e Diké nos permitem entender os termos em que esse problema é proposto, porque nós somos levados a viver em sociedade conscientemente, somos conscientes dos Direitos que outras pessoas têm, além de nós, somos conscientes de que em algum limite devemos respeitar esses direitos. Somos conscientes de que uma vida em sociedade provoca a necessidade de algum grau de limitação. Somos conscientes disso, pela Diké e pela Aidos, por estas ideias e virtudes. Mas elas não bastam para resolver o problema. Para resolver o problema nós avançamos para um outro conjunto de conceitos e ideias. Vamos falar da pré-compreensão e vamos falar da adesão. Estas duas palavras que aparecem no “No Começo Era a Lei” Capítulo 1 do Livro Contar a Lei de François Ost. Pré-compreensão e adesão significam o quê? A pré-compreensão é o conjunto das condições culturais, emocionais e as expectativas que nos permitem subjetivamente entender algo que nos é proposto, algo que está diante de nós. Seria uma espécie de capacidade prévia de decodificação de um signo, de um símbolo, de uma mensagem. E esta capacidade, observem, não é uma capacidade objetiva, ela não é uma capacidade fisiológica, neurológica, intelectual. É uma capacidade evidentemente cultural. Eu não tenho a capacidade de entender a dimensão de uma promessa se eu não conheço a história de transmissão desta promessa de um determinado povo. Quero dizer, os egípcios não tem a capacidade de entender a promessa feita por Deus a Abraão. Mas os Judeus tem a capacidade de entender esta promessa, porque ela é transmitida pela tradição oral ao longo de várias gerações de antepassados de Moisés. Quando ele se refere a promessa da terra, ele não precisa explica-la aos hebreus, porque eles conhecem esta promessa, oriunda de uma história antiga e que não pertence aos egípcios, não pertence aos babilônicos. Ela pertence aos Judeus, feita pelo SEU Deus, feita a um antepassado comum a aquele povo. E é essa promessa que une as sucessivas descendências desse povo até Moisés. Observem e reflitam comigo sobre o que significa a palavra povo. Quando nós olhamos uns aos outros nós não vemos fisicamente em nós um povo, não há nada na nossa pele, não há nada nos nossos olhos, que nos forneça um critério seguro ou defensável e isso hoje nós sabemos de maneira definitiva com a explosão, ou implosão, do conceito de raça, não há nenhum critério que seja objetivo e físico que nos permita identificar um outro como pertencente a um povo. Mas temos outros critérios que não são físicos que nos ajudam a criar essa identidade. Exemplo: uma mesma língua, uma mesma história, rostos semelhantes em função de uma história, um folclore semelhante. Que se traveste às vezes em uma culinária, uma música comum. É como nós definimos a nossa “Brasilianidade”, é através disso. O brasileiro é um povo alegre, nos referimos a nossas cores, a nossa maneira de falar, a música brasileira, a mistura de raças. Esse conjunto de elementos, que são elementos culturais, e que nos ajudam a compreender, que por mais que tenhamos um tamanho diferente, nós pertencemos a um mesmo povo. Esses são os elementos a que o Murilo de Carvalho se refere como elementos da formação das almas. Os nossos feriados comuns, um hino, que é um símbolo, que se cantado para nós, independente da relação que tenhamos com o país, uns mais apaixonados outros menos. Mas o hino faz sentido para todos nós e ele não indiferente para o brasileiro, ele não é estranho. Nas copas do mundo, nós temos uma ligeira experiência dessa identidade com símbolos nacionais, porque os hinos começam a ser cantados dos outros países com legendas. Se você observar o hino da Alemanha, bonito, música maravilhosa. Agora a letra do hino é estranha para nós, a maior parte dos hinos europeus fala praticamente das mesmas coisas. “Tá todo mundo derramado no sangue e levanta a arma e morre novamente”, “ao lado dos seus irmãos pisando nesse sangue comum.”. Não há nada disso na letra do nosso hino, a bem da verdade, quase não há referências a pessoas no nosso hino. O que se explica historicamente também. O nosso hino foi composto sem antes de fazermos ideia se éramos oriundos dos negros, dos índios ou da mistura das raças. Referência muito simbólica, “se erguer algo contra este país, nós vamos erguer a clava forte”, “nós somos bravos!”. Fomos bravos onde? No Paraguai?
Não tínhamos essa história, mas você precisa criar essa identidade. Foi bem sucedida a tentativa do hino? É claro que foi. Nós nos identificamos com os elementos do nosso hino, de uma tal maneira, que descrevemos o nosso país a partir de elementos comuns com ele. “A imensidão das florestas”, “ O cruzeiro do sul” e quando vamos falando disso os olhos começam a marejar e se ganhar algum título, uma copa do mundo, todo mundo esse esbalda e berra. Não foi para aquele time, foi para o país a vitória! Nós não vamos a ganhar o mesmo dinheiro que um jogador da seleção, mas vamos nos empolgar tanto quanto ou mais! Como se estivéssemos lá.
Observem e volto ao tema em que eu comecei essa aula, nada disso apresenta qualquer tipo de elo físico. Estes elos são anímicos, são culturais, essas cadeias que nos unem e que nos permitem a formação de uma identidade comum são cadeias movidas e constituídas por ideias, por espelhos de representação, que é onde nós nos formamos enquanto homens, enquanto povo. A história dos hebreus é absolutamente representativa disso, porque é um dos exemplos mais claros e documentados historicamente (antiguidade pré-clássica), ter um grupo que por mais que vivesse por tempos sucessivos sobre escravidão, subjugados por povos diferentes e vivendo em terras estranhas. Conseguiam olhar um nos outros uma identidade. Não estava ligado a algum tipo de identidade física, estava ligado a uma identidade cultural, a um Deus comum. “Há uma promessa comum que faz sentido para nós e não faz sentido para ninguém mais” Quando Moisés se refere a isso, a promessa é a pré-compreensão. Esse é o grande exemplo de pré-compreensão[1] que nós temos a dar nesse momento. É a promessa ela faz sentido a um determinado grupo, porque culturalmente ela está misturada com a história cultural, com a história da língua daquele grupo. Seria muito complicado para o faraó entender isso. Afinal a religião egípcia é politeísta, a devoção a um Deus só é estranho. É estranho, mas não é incompreensível. Entretanto, havia algo na religião hebraica que era incompreensível para todos aqueles povos dali, não era o monoteísmo, mas sim o aspecto ético do monoteísmo. O Deus hebreu, Javé, não é apenas uma entidade longínqua, distante. É a quem se presta sacrifícios, é alguém que exige gratidão do seu povo e essa gratidão é expressa através de comportamentos, de expectativas de comportamentos que eles devem ter com esse Deus e uns com os outros. O monoteísmo ético é a primeira experiência religiosa na história da humanidade em que a figura de Deus é uma figura que separa o certo do errado. Observem a mitologia grega, que é um exemplo mais conhecido por nós do que a mitologia dos egípcios, o que é certo e errado a partir do comportamento de Zeus? Zeus não é referencia nenhuma para isso. A bem da verdade, se fôssemos levar a sério o comportamento de Zeus como um espelho do comportamento humano, o homem era um devasso! Ele se disfarça de animais ou de outras pessoas para ter caso com mulheres no mundo, ele desce para a festa; a esposa persegue os filhos bastardos que ele tem nestes casos extraconjugais. Atena a mesma coisa! Os deuses não tem uma relação com os humanos, primeiro na qual os humanos possam se espelhar, ou seja, a algo aí neste comportamento que seja possível de identidade conosco. Não há proximidade porque estes deuses não se importam, manipulam os humanos, mas não se importam, não há uma relação estável, que gere expectativas. E é diferente disso que o Deus dos hebreus, a própria vontade de premiar ou a ira, significa uma relação de expectativa quando favorece ou pune. É a relação do pai com o filho. Não é essa relação dos deuses politeístas com a humanidade.
Esse elemento cultural era ininteligível ao faraó. Que espécie de Deus é esse? O respeito do faraó vai ser obtido não através dessa história, mas simplesmente através da demonstração de poder. E que ele vai entender como magia que era a maneira como os egípcios tinham de entender isso tudo. Eu falei sobre isso na nossa primeira aula, nós não temos capacidade de entender, se é que isso existe, as coisas tal como elas são, nós só podemos entender tal como ela nos parecem. É dizer de outra maneira o óbvio, o óbvio em regra é o que vemos menos, que vemos com mais dificuldade. Nós só podemos enxergar o mundo através dos nossos próprios olhos, isso não significa que devamos fechar a nossa própria visão, nós podemos e devemos mesmo, procurar ampliar essa visão o máximo possível para nos aproximar de outros pontos de vistas admissíveis, mas só continuaremos os entendendo a partir de nós próprios. Jamais conseguiremos enxergar o mundo através dos olhos de outra pessoa, podemos tentar imaginar como é que o outro enxerga, mas somos nós criando expectativas, sobre as expectativas dos outros. Por isso que erramos tanto nessa empresa de entender o outro. “Eu acho que de acordo com o fulano”, aí estou imaginando como o fulano quis que eu entendesse isso.
Prosseguindo, espero que esteja clara a questão sobre pré-compreensão. E a adesão. Nós entendemos que a pré-compreensão implica em uma adesão, mas implicar em uma adesão não significar ser a adesão. A adesão é quando nós admitimos os termos de uma ideia, de uma proposta, de um pacto que nos é sugerido. Nós estamos nos referindo no exemplo narrativo, no exemplo lítero-histórico dos hebreus: a aliança. O pacto formado entre Javé e os hebreus e que se expressa nos termos dos dez mandamentos. Aí eu quero retornar a aquela tensão que foi já exposta a partir dos termos da Diké e da Aikos. Como nós podemos solucionar essa tensão? O pacto a aliança é a resposta. É a primeira resposta jurídica que já nasce de uma claríssima intuição jurídica, de uma ideia especifica do que seja o justo. E uma ideia muito mais elaborada, uma ideia muito mais complexa e que corresponde a uma sociedade mais complexa do que aquela proposta pelo talião. Como é que a aliança pode consistir em uma solução para a tensão entre heteronomia e autonomia. Quando nós pactuamos, existe a convergência de vontades distintas para a constituição de uma norma que, a despeito de nascer a partir da nossa própria vontade, depois constitui uma vontade independente que aquela. Quando nós fazemos um contrato, os romanos vão dizer depois “os contratos fazem Lex inter partes” e eles são “pacta sunt servanda”. Eles submetem aqueles que contrataram, dizer que a minha vontade está presente no contrato mas agora eu me submeto a vontade de ter contratado. Ainda que haja coisas neste contrato que não seja de ponta a ponta a minha vontade, nós contratamos um aluguel. A minha vontade enquanto locador é alugar e receber o preço. E a vontade do locatário é contratar o aluguel e lá morar. E claro que sempre existiram coisas desse contrato que não são própria de cada um deles. Se um locador pudesse receber o dinheiro sem ter um estranho morando lá dentro de sua casa é melhor. Mas não dá. Se o locatário pudesse simplesmente morar no local sem pagar, melhor para ele. Mas não pode. Tem que pagar. Pagar corresponde a vontade do outro, imediata do outro, mas  corresponde também no contrato a minha vontade mediata. Imediato é sem mediação, mediato é com mediação. Porque que corresponde a minha vontade imediata também? Ora eu não concordei em pagar? Eu podia até não querer lá no fundo, mas eu não concordei em pagar? Então por ser a minha vontade, tenho que me submeter a ela. Por ser a minha vontade, mesmo que depois eu resolva mudar de ideia, a minha vontade é juridicamente válida e exigível contra mim. Eu contratei e depois eu me arrependi, mas já está lá, está assinado, é válido, eu posso ser executado, posso ser demandado, posso ser processado por aquilo e não dá pra dizer que é apenas heterônomo. É um equilíbrio entre o que seja heterônomo e autônomo, está ali no pacto. É heterônomo porque não depende mais de mim e é autônomo porque a minha vontade está ali na base tanto mediata como imediata. Os dez mandamentos, o exemplo hebraico, que está no livro do Êxodo que é tratado pelo François Ost. Os dez mandamentos não são heterônomos apenas, é isso que nós queremos dizer, porque não são apenas heterônomos? Porque no momento em que Moisés dialoga com Javé para obter os dez mandamentos, que não vem em uma versão apenas. As tábuas dos dez mandamentos são negociadas, elas têm duas, três versões. E é a terceira que se estabiliza. E é a isso que Ost chama de lei dialógica. Obtendo por parte do povo essa uma negociação também. Porque Moisés procura Javé depois de convencer o povo de que é necessário que aceitem a lei, é necessário na linguagem de Moisés como uma mensagem de gratidão por aquele que os libertou. Mas vamos ler isso no ponto de vista dessa hermenêutica jurídica, dessa interpretação dos conceitos, dessa história do pensamento, o que historicamente nos interessa aí é a consciência que já está no narrador do antigo testamento, não me interessa nesse momento se estas coisas aconteceram ou não, no ponto de vista fático, interessa que essas ideias aconteceram no ponto de vista da linguagem, da consciência daquele povo. Isso que é o dado histórico, se Javé existe ou não, se foi Moisés que escreveu. Não vou entrar nessas discussões, elas historicamente não nos interessam, isso é um elemento de fé e, portanto, é de cada qual de nós. Não depende de demonstração histórica, o que depende de demonstração histórica e está historicamente demonstrado é que está lá o livro e estas ideias estão no Êxodo. Então elas são ideias conscientes já de um povo na antiguidade pré-clássica. A discussão aqui e que Ost procura mostrar é que para a narrativa do Êxodo o aparecimento da lei se dá no momento posterior a tomada de consciência de que a lei é necessária. E de que ela corresponde de uma necessidade de organizar aquela sociedade na base da Diké, nas bases da justiça. Observem os passos a que Ost se refere. Primeiro esse povo deve ser libertado, os dez mandamentos não vão aparecer enquanto eles estão escravos, por quê? Porque é necessário para contratar que sejamos livres. Os escravos não contratam, os loucos não tem capacidade de contratar, os menores não tem capacidade de contratar. Aqueles que estão sob ameaça, sob coerção irresistível ou enganados por uma fraude não podem validar os seus contratos. A sua vontade é uma vontade nula ou anulável nos contratos. Essa é uma consciência jurídica que está conosco até hoje! E é visível no Êxodo, primeiro ao Êxodo, a libertação dos hebreus do julgo egípcio, depois o contrato. E contrato na forma negocial, na forma dialogada.
Não foi a primeira proposta que vingou, foi uma proposta negociada entre o povo, que tinha Moisés como seu porta-voz e Deus. Em que Moisés se dirige varias vezes ao povo para demonstrar a necessidade do pacto, a necessidade daquela sujeição que, no entanto, não pode ser entendida como submissão. Não é submissão, primeiro porque se trata de um pacto livremente composto, livremente aceito. Segundo, porque este pacto é a própria condição de liberdade do próprio povo. E aí tem uma lição jurídica que caminha conosco até hoje, é o paradoxo entre a heteronomia e a autonomia. Nós só podemos ser verdadeiramente livres se estivermos vinculados a algo. Nós só podemos ser verdadeiramente livres se estivermos limitados. Não há uma liberdade sem finalidade, não há uma liberdade para tudo, não há uma liberdade sem limite.
Essa concepção de liberdade, não pode pelo menos ser uma concepção social de liberdade, porque eu não tenho liberdade para matar alguém. Isso não pode ser considerado legitimo. Não tenho liberdade para romper com estes laços sociais que nos unem. Pelo menos o Direito não pode legitimar a quebra destes laços, então ele limita essa liberdade e ele dá um significado dessa liberdade. Portanto Ost nos demonstra e essa história nos demonstra que essa liberdade é sempre liberdade para algo. Sempre uma liberdade como um fim, outro que não é ela mesma. Seja liberdade para a felicidade humana, seja a liberdade para a ação justa do homem. Mas não é liberdade para liberdade, não é uma liberdade vazia de sentido, o sentido dela é dado pela sua finalidade O contrato, a aliança estabelece a finalidade, os limites que essa liberdade se dará e permite que ela seja uma liberdade socialmente significante. Eles estão livres do julgo egípcio, eles são vistos como livres perante Javé. Eles são livres perante os outros povos e a si mesmos.
Mas é sempre uma liberdade para alguma coisa, com uma semântica própria, não é uma liberdade pela liberdade.  Por isso que há regras, por isso que são definidos os limites, repito insistentemente, para que eu possa ver o outro como igualmente livre, eu preciso saber que não é permitido a ele fazer o que bem entender de mim, assim como não é permitido a mim fazer o que bem entender a ele. Javé tem direitos mas tem deveres em relação ao seu povo. Ele não deve abandoná-los, se o povo for grato, se o povo lhe adorar, se cumprir as suas regras, Javé também cumprirá as suas. Mas se o povo romper o contrato com o outro lado, dá a outra parte o direito de romper. “Exceptio non Adimpleti Contratus”, é uma regra que está conosco até aos dias de hoje, se alguém unilateralmente descumpre uma regra do contrato, você não é obrigado a cumprir a sua. A adesão advém da pré-compreensão e a união das duas forma o conceito de aliança. Aqui uma citação de Ost., a questão da aliança, o momento a que ele se refere aqui é a aliança. “Esse momento da aliança é o da suspensão da ordem das coisas, ao mesmo tempo que o do pressentimento do direito(...)” já há uma consciência mais elaborada da regra jurídica, muito mais elaborada que a regra taliônica.
Que já vão começando a se referir de uma sociedade que não cabe mais nos moldes estreitos de uma classificação como a das sociedades segmentárias. “(...) Israel rompe seus laços para marchar através de uma voz do deserto, uma voz que vem de uma promessa muito antiga feita aos filhos de Abraão, suficiente para que o povo se lance e atravesse o mar vermelho, há nesse gesto de ruptura e de transgressão como a antecipação de uma outra aliança. A primeira uma aliança com Abraão mas aqui era uma outra aliança. A sujeição da escravidão poderia dar lugar aos vínculos livremente assumido da aliança mas para isso é necessário um salto. A sponsio ou o engajamento prévio e ainda cego daquele que, chamado ao deserto, deixa as suas cadeias e põe-se em marcha; A sponsio, ou o primeiro passo da responsabilidade, o primeiro ato jurídico também; situado aquém-da-lei e do contrato; a montante da escrita e do ritual”.  Ost está dizendo aqui que um dos conceitos jurídicos mais relevantes para nós e que é a base de todo o direito privado, então das primeiras elaborações jurídicas, que é o conceito de responsabilidade.
Não é um conceito oriundo do direito romano, sequer é um conceito oriundo a lei. Ele é anterior a lei, é anterior ao contrato. Ele é derivado da sponsio, ele deriva da adesão. Então Ost. inverte a ordem das coisas, a responsabilidade não deriva da lei, ela é uma pré-condição da lei. Aqui o positivismo jurídico cai, perde o chão. Porque Ost. vai defender que a lei não nasce no vácuo. Ela não nasce no espaço vazio, “nasceu e daí vem todo o direito”, Ost. vai dizer e demonstrar isso na história hebraica que a consciência de conceitos de ideias que são inequivocamente jurídicas como a responsabilidade não apenas precede a lei, mas é pré-condição dela. É o que está sendo dito aqui. A história do Direito não depende da escritura, não depende dos procedimentos processuais, do surgimento da justiça e daí o conceito de responsabilidade vem. Ao contrário ele é anterior e pré-condição. É nesse conceito portanto de pré-compreensão e adesão que nós somos capazes de equilibrar a tensão entre autonomia e heteronomia cujos os termos do problema foram definidos pelos conceitos das virtudes cívicas da Diké e da Aidos.



[1] A pré-compreensão pode ser entendida como a dilação da compreensão, fenômeno da linguagem que não se dá num momento instantâneo, mas sim processualmente, multifatorialmente. Em regra, apenas não percebemos. Porém, numa frase simples como “parece que estou falando grego!”, algo como uma queixa à dificuldade de se fazer entender, a compreensão da frase demanda transcender a sua literalidade, caso contrário ninguém interpretará como queixa ou insatisfação. Exige-se ANTES DA COMPREENSÃO, como um seu pressuposto, a inserção do ouvinte na mesma comunidade linguística do enunciante, uma pertença comum, a qual permita a ambos –enunciante e ouvinte- suporem que podem entender-se a partir do que foi dito. Isso antecede a própria enunciação e envolve a partilha do horizonte cultural comum, onde se dá a pré-compreensão.


[1] A pré-compreensão pode ser entendida como a dilação da compreensão, fenômeno da linguagem que não se dá num momento instantâneo, mas sim processualmente, multifatorialmente. Em regra, apenas não percebemos. Porém, numa frase simples como “parece que estou falando grego!”, algo como uma queixa à dificuldade de se fazer entender, a compreensão da frase demanda transcender a sua literalidade, caso contrário ninguém interpretará como queixa ou insatisfação. Exige-se ANTES DA COMPREENSÃO, como um seu pressuposto, a inserção do ouvinte na mesma comunidade linguística do enunciante, uma pertença comum, a qual permita a ambos –enunciante e ouvinte- suporem que podem entender-se a partir do que foi dito. Isso antecede a própria enunciação e envolve a partilha do horizonte cultural comum, onde se dá a pré-compreensão.