quinta-feira, 31 de maio de 2012

A formação do Direito comum europeu (baixa idade média)


Paolo Cappellini*

1 Diritto comune (ius commune), traduzido da língua italiana por Ricardo Sontag. Revisão: Arno Dal Ri Jr.

* Professor catedrático de História do Direito Medieval e Moderno na Università degli studi di Firenze, Itália

Publicado em Espaço Jurídico, Joaçaba, v. 9, n. 1, p. 79-82, jan./jun. 2008
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A expressão direito comum é corrente mesmo no direito moderno quando se fala de direito comum em oposição a um direito singular, ou seja, quando há uma soma de normas jurídicas que têm aplicabilidade para todos os sujeitos do ordenamento jurídico de um Estado (ou mesmo vigentes, no que se refere a uma ou mais matérias, sobre o território do Estado considerado como um todo, em contraposição a um direito local ou particular), em que o outro, ao contrário, vale somente para certas pessoas, ou para casos particulares, ou referindo-se, ainda, a matérias determinadas.

Mas uma determinação desse tipo (entre outras coisas, não-unívocas, já que ganha precisão somente mediante seu contraposto) do conceito de direito comum no direito moderno assim como outras conceitualizações modernas (sistema legislativo ou hierarquia das fontes, por exemplo) não são adequadas para a compreensão do conceito de direito comum no direito intermédio, isto é, na experiência jurídica medieval.
Mais do que isso, revelam-se deformadoras porque fazem com que se desconheça um dos seus elementos fundamentais, isto é, o pluralismo jurídico. A premissa necessária para a sua compreensão é liberar-se de “todo estatalismo latente”, depurar-se de qualquer traço dos resíduos dogmáticos positivistas, reconhecer que se trata fundamentalmente de um “direito sem Estado”, “um direito que vive e opera (ou melhor, que pode viver e operar) para além dos poderes políticos e das suas coações” (GROSSI).

Assim, é preciso, certamente, excluir qualquer concepção, ainda corrente em parte da doutrina romanista, que pretenda identificar as bases do direito comum em uma espécie de desenvolvimento espontâneo que deriva continuamente do direito romano justinianeu. Excluir, portanto, a equação direito romano = direito comum. Não será considerada convincente nem mesmo a tese que vê no direito comum uma espécie de fusão de toda uma série de “elementos constitutivos”, ora de caráter normativo, ora de caráter científico (direito romano, direito longobardo-franco, direito feudal, costumes, direito canônico, elaboração doutrinal).

Então, será necessário partir, talvez, ainda que, para depois chegar a resultados parcialmente diferentes, de uma feliz formulação de Francesco Calasso que falava do “direito comum como fato espiritual”, ou seja, um direito [...] como sistema vivo de vida própria, animado por um espírito próprio, rico de originalidade tal qual a época da qual foi uma das maiores expressões, e não um vago e desfiado apêndice da história do direito romano, mas mediação histórica (o que é algo muito diferente) entre o antigo mundo do direito e o nosso.

Esse fato espiritual – como assinalam duas expressões que o exprimem fazendo emergir a sua complexidade, utrumque ius e unum ius – constitui-se sobre o pano de fundo da experiência religiosa e político-jurídica medieval que aponta, necessária e indissoluvelmente, a uma aspiração universalista, que se concretiza, todavia, no insuprimível pluralismo que caracteriza a respublica christiana. Império (o Sacrum Imperium para cuja renovação contribuem, a partir dos séculos IX e X, os Carolíngios, primeiro, e depois os Otônios e os Suevos) e Papado são as instituições políticas e religiosas de referência. E, já se observou oportunamente como: [...] a lenda irneriana que atribuía a Lotário II a ordem dada à Irnério e à escola de estudar o direito a partir dos livros justinianeus e aos juízes Imperiais de seguir essas normas nos seus julgamentos, e ainda a notícia referida por Burcardo de Ursperga segundo a qual Irnério teria renovado, em Bolonha, o estudo dos livros legais ‘ad petitionem Mathildae comitissae’, exprimem bem, de verdadeiro, tanto uma como a outra, o grande interesse que império e papado deviam sentir por uma vigorosa retomada dos estudos romanistas, a ponto de tomar dos textos da compilação de Justiniano o direito universal das suas monarquias. A elegante suposição de Fournier segundo a qual a exumação da “litera Pisana” das Pandectas teria sido obra de clérigos e monges encarregados, ou pelo menos encorajados, por Gregório VII de procurar nas bibliotecas os autênticos textos das leis a fim de renovar o direito, e também as memórias do precioso manuscrito que Zdekauer acreditou ter sido encontrado nos monastérios dos territórios da Emilia-toscana no século XI, chamam bastante a atenção para o mérito de que aquele reflorir do direito romano deve ser atribuído à fiel depositária da cultura jurídica de Roma que foi, por séculos, a Igreja (ERMINI).

Assim, invocando um anônimo poeta do século XI, pode-se sintetizar a aspiração daquela época em realizar “um mundo equânime pelas chaves de Pedro, honesto pelas virtudes da fé e disciplinado totalmente pelas antigas leis de Roma” (“Sic fiet mundus sub Petri clavibus aequus/ et virus fidei supprimet arma doli/ Legibus antiquis totus reparatibur orbis”). Então, será não somente simbólico, mas testemunho real de uma interpenetração, exemplificada pela relação humana e teológica entre corpo e alma e, agostiniamente, entre cidades de Deus e civitas terrena, expressa no sintagma do “direito comum” como direito romano-canônico (utrumque ius, justamente), o paralelismo igualmente temporal, no século XII e sempre em Bolonha, entre a obra decisiva do monge camaldolense Graciano e a de Irnério, “fundador” da escola dos Glosadores.

O estudo bolonhês do direito, por um lado, com o magister das artes liberais Irnério (falecido, talvez depois de 1125) e os “Quatro Doutores” (Martino, Bulgaro, Jacopo e Ugo), e depois a maturidade da chamada escola dos glosadores até a Glosa Magna de Accursio (1182-1259), consegue, então, sancionar a autonomia da ciência jurídica naquela transferência que deveria representar um momento essencial da história do direito europeu, oferecendo, igualmente, forte autonomia à casta dos juristas que dará novo perfil às instituições políticas e à sociedade.
Um “milagre”, segundo Savigny, da transferência completa da crítica metódica e das técnicas de “leitura” interpretativa (a interpretatio) ao Digesto, entendido, porém, não modernamente como um complexo de normas fechadas em um código, como um complexo de problemas quase inexauríveis, como oportunidade para o exercício da força criativa da nova casta.

Obra de modernização e repensamento completamente dentro da sua época, como se testemunha também por intermédio das ressistematizações medievais de edições glosadas que será, depois, conhecida como Corpus iuris civilis (1. Digestum vetus = livro 1-24, tit. 2 dos Digesta [ou Pandectas]; 2. Infortiatum = livro 24, tit. 3 – livro 38 [a parte final que inicia na metade em D.35.2.82 e se chama Três Partes]; 3. Digestum novum = livros 39-50; 4. o Codex [que no uso lingüístico medieval indica os primeiros nove livros do código]; 5. o Volumen [parvum] = os últimos três livros do código [três livros], as Novelas glosadas e as Instituições), que estará, sucessivamente, também, na base do trabalho da escola dos Comentadores, de Cino de Pistóia (1270-1336) a Bártolo de Saxoferrato (1314-1357) e Baldo de Ubaldi (1327-1400) e, ainda, o epílogo com Paulo de Castro (morto em 1441), ressistematização produzida com o tempo e que, por força das suas exigências específicas, chega ao ponto de inserir o “tesouro” do direito consuetudinário feudal (o chamado Libri feudorum) em apêndice ao próprio Corpus iuris civilis como matéria digna do estudo científico.

Por outro lado, quase contemporaneamente, como mencionado, começaram a ser dadas as lições de direito canônico, fundando-se praticamente na mesma estrutura organizacional. Toma-se, inicialmente, como fonte, a coletânea privada organizada pelo monge Graciano em Bolonha, em torno de 1140 que, metodicamente, procedia por “princípios, fatispécies e pontos de vista problemáticos” (“distinctiones, causae, quaestiones”), no passo dos Pais da igreja e coletâneas precedentes de atos normativos da Igreja (cânones) e que levava o título icástico de Concordantia discordantium canonum (praticamente assinalando a necessidade, para além da aparente contradição entre os textos, da intervenção dos juristas, dominando-os, coordenando-os e resolvendo-os com o uso do método escolástico). Essa obra, que se tornou célebre como Decretum Gratiani, torna-se a base da ciência canonística, paralela a do ius civile dos glosadores e comentadores, e ainda constitui aquilo que, junto com três outras coletâneas de decretos papais que lhe sucederam (o Liber extra de 1234, o Liber sextus de 1298 e as Clementinae de 1314 à 1317), dessa vez oficiais, será chamado oficialmente de Corpus iuris canonici.

Contudo, chegando nesse ponto, seria errôneo supor que o direito comum constitui no seu momento de validade formal (as leges romanas revitalizadas e restituídas a uma nova “validade” em função do seu vínculo com o Império e com a vontade do Imperador ou com os atos normativos papais), e que a obra dos juristas se reduz a uma espécie de mera exegese dessas normas. A insistência calassiana em considerar o direito comum como um “sistema legislativo”, falar do seu caráter essencialmente “legislativo”, podendo ser compreendido quase como um complexo de “leis”, corre o risco de ser deformadora (GROSSI) porque, baseado em teorias jurídicas modernas, estranhas à civilização medieval da qual ele é, talvez, o maior fenômeno, absolutizando o momento normativo da validade, perde de vista o momento essencial que o tipifica: o papel e a atividade incessante da ciência jurídica, a centralidade da communis opinio doctorum. Papel dinâmico e central, exatamente. Em uma distante polêmica, esse fato já fora auroralmente evidenciado, em que se sustentava que “[...] se nós indagamos o que haveria, verdadeiramente, de comum na vida do direito no trabalho e fatigante curso dos séculos durante a Idade Média, nós veremos imediatamente que foi a unidade do pensamento científico [...]”, e chegava-se a arriscar até mesmo a seguinte consideração: “Nós, por isso, que julgamos um fenômeno quando ele terminou completamente de manifestar-se, podemos definir como ius commune ‘o conjunto dos princípios, construções jurídicas e resoluções práticas, respectivamente formuladas, criadas ou cogitadas pela doutrina’.” (BUSSI).
Mais recentemente, aprofundando sobre bases mais sólidas o papel fundamental que assume para o pensamento jurídico medieval a idéia de ordem (ordo), essa intuição resulta corroborada e é possível argumentá-la, desenvolvendo-a em toda a amplitude do seu significado.

O direito comum se encarna e se identifica na interpretatio. O que quer dizer duas coisas: que tem uma dimensão essencialmente científica, é produto da ciência; que a ciência, enquanto interpretatio, não o produz sozinha, fantasiando, mas elabora a partir dos fundamentos e presa a um texto de autoridade. O direito comum se escande e combina-se sempre em dois momentos incindíveis, o momento de validade representado pelo Corpus iuris civilis e pelo Corpus iuris canonici, e o momento de efetividade, representado pela construção doutrinal (e somente secundariamente judicial e notarial). A ciência jurídica em questão não é pensável sem o texto a interpretar, mas o texto não pode ser considerado senão como uma insubstituível referência formal. Não esqueçamos que a interpretatio é declaração, mas também integração, correção, modificação do texto, e que ela tem dois objetos diante de si: formalmente o texto, substancialmente os fatos. Ela é, portanto, mediadora entre os dois. Nestas vestes, é criativa e construtora de direito (GROSSI).

Uma criatividade que, alguns glosadores do século XII galgam mais de um lampejo da concepção (“communitas et unum quase corpus humanitatis”), que representa “[...] um dos maiores e mais originais traços do medievo, a unidade espiritual do gênero humano [...]”, especialmente nas reflexões sobre a Ecclesia e o Imperium como duas qualificações, dois perfis de uma mesma idéia. Concepção de uma universitas do humanum genus que encontrará, depois, em Bártolo a sua formulação madura: o próprio mundo como “universitas” (quia mundus est universitas quaedam) (CALASSO). Criatividade permeada de repensamentos originais e desenvolvimentos paulinos e cristãos das teses corporativas romanas que contribuíram, provavelmente, para transmitir ao mundo moderno, mediante a alegoria do corpo e da alma, [...] um princípio que ainda hoje em muitas sociedades não se concretizou plenamente, o da normatividade do direito. O direito era a alma, porque era a norma recte vivendi, a norma da vida justa. O direito, como alma, governava a instância corporativa, governava o corpo, fosse ele a Igreja ou um reino, um império e, de fato, esta concepção medieval demonstraria que na alma, entendida nesse sentido alegórico, poder-se-ia ver o precedente medieval da idéia de Rechtsstaat, da supremacia do direito, da normatividade do direito. (ULLMANN). Isso também graças a uma interpretação iurisconsulti authoritate.Em uma época, na qual o direito comum já se encontrava na direção da aparentemente definitiva ruína a qual o destinava a ascensão dos Estados soberanos modernos e da codificação, depois que a antiga visão de uma relação entre direito comum e direitos particulares, vinculada àquela idéia de unidade já em vias de dissolução, era substituída por aquela entre direito natural e vários direitos civis, podendo o primeiro ser aplicado somente como ratio scripta, R. J. Pothier se referia, talvez àquele legado espiritual quando, todavia, avistava uma “communis gentium omnium in Romanorum iura conspirato.”




quarta-feira, 16 de maio de 2012

VII Congresso da Associação Brasileiro de Ensino do Direito-ABEDI (FGV-RJ)

Programação
>> 17 de maio
9h30: Solenidade de abertura:
Evandro Menezes de Carvalho (Presidente da ABEDi)
10h: Conferência de abertura
Que educação jurídica para qual país?
Joaquim Falcão (FGV Direito)
10h45: Conferência
Educação Jurídica: entre o foro e a academia
Conferencista: Torquato Castro Júnior (UFPE)
14h: Mesa de debate
A internacionalização do direito e do ensino jurídico: novos temas, novos desafios.
Presidente de mesa: Eduardo Val (UFF)
Deisy Ventura (IRI/USP), Fernando Fontainha (FGV Direito Rio) e Jania Saldanha (Unisinos).
15h30: Coquetel de Lançamento do livro comemorativo dos 10 anos da ABEDi
16h-19h :
1º Encontro Brasileiro de Blogueiros do Direito
Oficina “Profissionalização da Carreira Docente”
Oficina “Direito e arte”
Oficina “Gestão acadêmica, concorrência e qualidade”
Oficina “Metodologia de ensino para novos e velhos saberes”
>> 18 de maio
9h: Mesa de debates
O Brasil da classe C e a educação superior em direito.
Presidente de mesa: Solange Ferreira de Moura (Diretora Nacional do Centro de Ciências Jurídicas da Estácio).
Jorge Abrahão (Diretor de Estudos e Políticas Sociais – IPEA), José Garcez Ghirardi (Direito GV), Rosângela Cavallazzi (UFRJ e PUC-RJ) e Vitor Chaves (FGV Direito Rio).
10h30: Mesa de debates
Poder e apatia nos cursos jurídicos: crise da docência no direito, regime de trabalho e carreira docente
Presidente de mesa: Alexandre Veronese (Diretor da ABEDi – UFF)
Cláudia Roesler (UnB, CTC-CAPES), Frederico de Almeida (Direito FGV) e João Virgílio Tagliavini (UFSCar).
14h30: Mesa de debates
Democracia, tecnologia e educação
Presidente de mesa: Thiago Bottino (FGV Direito Rio)
Bruno Lewicki (Ibmec) e Carlos Affonso (FGV Direito Rio)
15h30: Coffee break
16h: Conferência de encerramento
Que direito para qual Justiça?
Paulo Abrão (Secretário Nacional de Justiça)
17h: Plenária final da ABEDi

O direito em Roma: considerações iniciais

Degravação da aula do dia 19-09-2011, que introduz a história do Direito Romano. A transcrição foi feita pelo monitor Diego Siqueira Rebelo Vale.

Hoje começamos então o direito em Roma e procurarei concentrar essa unidade de maneira um pouco mais objetiva, de modo que possamos reduzi-la a informações essenciais para termos tempo para a análise do Medievo e da formação da codificação que são os itens que virão depois no segundo bimestre. Não se trata, portanto, de fazermos aqui um estudo sobre Direito Romano. A disciplina tem uma finalidade bem diferente da finalidade do estudo do Direito Romano.
O estudo do Direito Romano é essencialmente o estudo das suas instituições, seja como fontes do Direito que temos – instituições cuja lógica, cujo desenvolvimento ou cuja origem ainda marca a natureza de institutos presentes até hoje entre nós – ou o estudo do desenvolvimento e formação do direito privado – essencialmente o direito privado em Roma como o primeiro exercício de direito privado -  ou como composição de teses que terão influência grande no direito medieval e no direito moderno na perspectiva de constituir uma espécie de estudo dos antecedentes – um estudo histórico, causal, exemplar. O estudo do Direito Romano tem essas duas vertentes: compreender a natureza e o desenvolvimento de coisas que ainda estão conosco ou dos seus antecedentes de fontes e institutos e como eles funcionaram.
Não é essa a nossa pretensão. A História do Direito é bem diferente do Direito Romano. Nela nos importa entender como o Direito evoluiu na sociedade romana, quais foram as suas inovações, seus legados e a lógica de complexidade a partir da qual este Direito se formou e se desenvolveu – nos mesmos parâmetros e molduras que vimos nas últimas aulas sobre a Grécia, a Antiguidade pré-clássica -, isto é, relacionando o Direito Romano com a cidade, com a sua pretensão civilizatória e com o seu funcionamento - como ele funciona em relação à estabilização de expectativas nessa sociedade. Qual é a sua funcionalidade na sociedade romana em seus diferentes momentos. Não se trata, portanto, de focar o estudo dos institutos, mas de entender sempre a lógica do desenvolvimento do Direito num ambiente complexo. É essa a finalidade dos nossos estudos. Então, para aqueles que desejarem um aprofundamento no Direito Romano eu indico as fontes bibliográficas – são outros estudos. Aqui nós, naturalmente, abordaremos alguns destes institutos (aqueles que eu creio que sirvam melhor a nossas intenções), mas não será efetivamente um estudo do Direito Romano e sim da História do Direito Romano como uma fase da História do Direito – uma fase importantíssima, sem dúvida alguma.
Nós vamos seguir uma classificação ou divisão clássica do século XVIII ainda (de Leibniz) que é parte do estudo da História Romana em uma história externa e história interna. A história externa diz respeito ao estudo da sociedade romana, da sua evolução política, da economia, das relações de trabalho. A história interna é a história do desenvolvimento das fontes do direito. Estas externalidade e interioridade, é claro, prestam-se – e é com essa intenção que eu as utilizo – a fins didáticos. Levadas às últimas consequências, uma divisão desta natureza não se sustenta, estou convencido disto, porque é como se tivessemos separando o que é inseparável – o desenvolvimento da sociedade e o desenvolvimento de seu direito -, mas há uma pretensão justificável na separação na medida em que ela nos permita, pelo menos, expor de maneira mais clara a autonomia que existe entre cada uma destas histórias, pois não há um determinismo entre elas e didaticamente é mais recomendável, e assim tem sido no nosso uso corrente [do ensino] de HPDJ.
Na história externa de Roma, eu quero estudar: as suas fases políticas, o seu sistema econômico e o desenvolvimento desta sociedade. Há três fases políticas na história romana: ela começa com a formação da monarquia, que é sucedida pela República que, por sua vez, é sucedida pelo Império. A história romana começa na monarquia, passa pela República e termina no Império. Essa história da fundação de Roma com a monarquia remonta a uma data que não é precisa – é uma data aproximada, quase que lendária. Por volta de 753 ou 756 a. C. Situo esta data mais para que tenham uma noção de que a sociedade romana, no tempo, não é antiga como as sociedades que estudamos até o presente momento. Ela é muito mais recente do que a sociedade hebraica, a babilônica e grega. Nós falamos em Licurgo como um legislador lendário de por volta do ano 1000 a. C. Estamos falando da fundação de Roma entre 756 e 753 a. C.
Há duas histórias lendárias e amplamente conhecidas sobre a fundação de Roma: a história de Rômulo e Remo, os irmãos alimentados pela loba, em que o primeiro mata o segundo. Historicamente o Remo sempre leva o farelo. A monarquia teria sido fundada por Rômulo. E a história que é mais desenvolvida e que nos liga à história grega é a da fundação de Roma por Enéias, o filho de Anquises, que herdou a espada de Tróia, que lhe foi dada por Páris, filho de Príamo e Heitor. Essa história que é contada na Ilíada, já quando Tróia está pegando fogo – já tinha sido invadida – numa passagem que aparece inclusive no filme muito rapidamente. Há um determinado momento em que Heitor indica a Páris, a sua esposa, a saída secreta da cidade de Tróia para a hipótese de que algo dê errado na guerra, na defesa. Se as muralhas de Tróia, que eram consideradas indestrutíveis até o momento, não resistissem a esse cerco poderoso e bastante longevo (de dez anos), por esta passagem eles poderiam escapar. Passados alguns anos – no filme não dá para perceber -, Tróia será invadida pelo estratagema inventado por Ulisses (o cavalo) e eles acabam tendo que se valer desta passagem. Páris conduz a esposa de Heitor com seu filho e rapidamente aparece um jovem carregando um senhor nas costas. Esse jovem é Enéias e este senhor, seu pai, Anquises. Essa é uma das cenas mais representadas inclusive pela iconografia medieval, pela pintura renascentista. É o exemplo da dedicação do filho, que salva seu pai, carregando-o nas costas. E ele recebe de Páris a espada da cidade, que lhe tinha sido dada pelo rei Príamo. Isto é altamente simbólico. As cidades antigas, tal como os gregos concebiam, eram fundadas sempre a partir de cerimônias sacerdotais, místicas. Era importante para uma nova cidade ser fundada que ela fosse, a partir de algum objeto considerado sagrado por alguma outra cidade maior e anterior, fundada – seja um “fogo”, seja até um punhado de terra, seja eventualmente festas em que se celebrava a fertilidade nesses locais.
Há uma passagem da mini-série, brilhante, de Roma, em que Lucius, que virá a ser um Centurião no decorrer da série, compra uma propriedade (já bem sucedido financeiramente) e ascende na vida. Há uma cerimônia de aquisição da propriedade que é presidida por um sacerdote, existe uma série de gestos envolvendo o plantio de uma videira, joga-se um punhado de terra na fundação, um lugar central e o casal também se encontra num símbolo de fertilidade da propriedade – na frente do sacerdote mesmo. São ritos de fundação da cidade. Os ritos de fundação de Roma não são, do ponto de vista lendário, distintos desse. Nas próprias histórias esta simbologia está toda presente. A espada que era de um antigo rei deve ser fincada... Observem as influências disso, historicamente, muitos séculos depois: quando os conquistadores chegam às Américas, chegam fincando símbolos também, só que cruzes – ou espadas em forma de cruzes. Bandeiras – quando o homem vai à Lua, ele finca a bandeira, “então aqui estive”. Não basta que a coisa esteja filmada, fotografada – não foi fundado nada ali. “Eu tenho que colocar algo na terra”. Isto está presente nos monumentos que nós temos até os dias de hoje: a pedra fundamental. A primeira pedra da construção de uma catedral, a primeira pedra da construção de um prédio, de um edifício – “foi lançada a obra”. O fato de ser uma pedra remete a costumes absolutamente ancestrais – os romanos faziam isso, colocavam as pedras como um símbolo da durabilidade. “Todo o resto pode cair mas aqui nós saberemos a quem pertence esta propriedade”. Essa história não evanesce, não se desfaz no tempo. Nós vamos repetindo esses gestos, muitas vezes sem saber, ignorando completamente de onde eles vêm, mas são fantasmas que vivem conosco, com seus respectivos valores e seus respectivos significados. Na fundação de Roma, esse significado da espada é altamente simbólico.
Essa monarquia é uma fase de consolidação da civilização romana. Roma não inicia sendo “Roma tal como nós a temos no imaginário ocidental”: Roma grandiosa, que todos temem, com um exército poderoso, Senhora do Mediterrâneo, cidade eterna. Nada disso. Roma começa como uma civilização frágil, fugitiva e que vai enfrentar enormes desafios para se estabelecer – desafios narrados na história romana como  por exemplo no rapto das sabinas. Para a civilização romana se estabelecer, não se tinha nem uma quantidade suficiente de mulheres para que a população pudesse aumentar. Raptaram estas mulheres de um povo vizinho – os sabinos. Durante bons séculos depois da fundação de Roma, os reis eram etruscos. Não há uma civilização romana separada. Depois os etruscos desaparecerão, em circunstâncias históricas até hoje não devidamente esclarecidas, mas o marco inicial remete à miscigenação entre os romanos e outros povos que viviam na vizinhança. A palavra-chave que define a monarquia – a primeira fase política de Roma – é consolidação. Seu grande desafio é sobreviver a mais de uma geração, é diferenciar-se dos povos vizinhos e expandir-se além do monte Alba, onde a cidade foi inicialmente fundada. E os romanos vão conseguir fazer isso – vão expandir para “além-Alba”, para além do rio Tibre e se caracterizará o espaço inicial do domínio de Roma da planície do Lácio. A expansão para a terra dos sabinos, dos etruscos e ao final da monarquia, na passagem do século V a. C., Roma já está territorialmente estabelecida enquanto civilização e já aparecem os primeiros reis romanos propriamente ditos.
Essa fase política tem algumas características muito marcantes que se tornarão cada vez mais centrais na história romana. Para além da expansão territorial ou para uma certa vocação de expansionismo territorial já presente no período monárquico, há também uma característica política muito significativa: o poder crescente da instituição senatorial. O senado é o corpo ou instituição política que representa a estrutura fundamental das famílias romanas – ele é formado pelos patriarcas. Os patriarcas são os mais velhos membros das famílias fundadoras e são chamados de Pais de Roma, os patres. Patrícios ou quirites são os membros das quatros famílias fundadoras de Roma. O poder político gira em torno disso inclusive – as primeiras reformas territoriais de Roma serão reformas políticas também em que outras famílias começam a alargar a representação dentro do senado porque serão consideradas também famílias fundadoras. O essencial do poder político é ter propriedade – a propriedade é o símbolo e a chave de acesso ao poder político. Toda a lógica romana de poder, principalmente nesta fase, está diretamente ligada à propriedade da terra e não é coisa que, durante uma boa parte dos séculos da monarquia, adquira-se comprando. Durante séculos, depois da fundação de Roma, a propriedade era inalienável – significa que ela não podia ser vendida. Como um bem de raiz (essa expressão existe no direito civil brasileiro até os dias de hoje), ou seja, o bem da família que só tem uma forma de transmissão que é a sucessão causa mortiis. São os legados e as heranças – os bens ficavam dentro da mesma família, vindo desde as famílias fundadoras que tinham, portanto, a propriedade. Fora da sucessão não há forma nenhuma de aquisição. Isto mudará, já na República, por força e graça do expansionismo militar: a conquista de novas terras gerará uma modificação na lógica de distribuição, de acesso e de aquisição de propriedade, até porque as guerras precisam ser financiadas também. Será preciso obter outras espécies de apoio.
Quando me refiro à propriedade – e não me refiro apenas a terras -, o patrimônio, em Roma, não conhece uma distinção entre coisas e pessoas. Os escravos eram propriedade, os animais, chamados semoventes, eram propriedade – essas coisas todas eram transmitidas por sucessão. E poderiam ser livremente dispostas pelo patriarca. Quem era detentor dessa propriedade era o patriarca. Observem que a família em Roma era forma pelo patriarca e todo o resto – e essa é uma diferença que precisamos ter em mente quando falamos da família em Roma -, acentuando a expressão todo o resto. O resto são os filhos e os elementos que compõem o patrimônio: as terras, os animais estão no mesmo plano. Todos poderiam ser dispostos à vontade pelo patriarca. Vontade que envolve, inclusive, o poder de vida e morte sobre os filhos e toda a parentela. A família tem um tronco comum que vai tanto se prolongando verticalmente como lateralmente através dos agregados - chama-se, pelo casamento, outros membros para essa família. Todos se submetiam às ordens do patriarca – os filhos que eram adotados poderiam ser adotados já em idade adulta.
A sucessão também era um elemento de disputas políticas – no Império isto fica muito claro, inclusive. Esta lógica de poder através da adoção se tornará bem clara. “Eu tenho um preferido para me suceder como imperador, mas esse preferido não é meu filho, então eu o adoto e indico que para ele ficará o brasão da família”. Pode-se imaginar a confusão que isso gerava. Morte era um caminho comum, corriqueiro de disputa política. A lógica desse modelo é muito complicada pois ainda ligada à distribuição patriarcal – o patriarcalismo é isso. Patrae – observem a etimologia da nossa língua – significa tanto o pai quanto o patrão. É a mesma raiz etimológica. O patriarca era tudo isso, porque era ele quem dominava. Em latim é dominus, quem é o proprietário, o senhor.
Na república, essa instituição política, patriarcal, composta pelos dominus, que é o senado vai dominar decisivamente. Podemos entender, grosso modo, a lógica de evolução e desenvolvimento político em Roma da substituição da monarquia pela república como determinada pela ascensão política cada vez mais significativa do senado. O rei vai perdendo espaço para o senado porque não governa sem o mando do senado, sem a distribuição e o apoio político decisivo dele e isso vai crescendo numa proporção tal que chega um momento em que os senadores dirão “então por que não mandamos nós diretamente? Por que o rei não se torna um cônsul e ele é um senador indicado por nós?” A queda da monarquia e a sua substituição pelo senado se dá a partir dessa lógica de distribuição de poder que está ligada também à expansão territorial. A república será uma fase de expansão territorial intensa em Roma – menos que no Império, mas de expansão territorial significativa e intensa. É quando o exército romano começa a ganhar toda a sua fama lendária de invencibilidade, e a organização e reorganização desse exército seguirá uma inteligência muito ligada à própria estrutura da urbe, da polis romana. O exército será organizado em legiões independentes e o comando delas será designado aos patrícios e eles terão um poder de mando dentro das legiões que será distribuído hierarquicamente entre os seus clientes, as pessoas que lhes devem favores, seus subordinados. Tem-se uma lógica de poder dentro do exército semelhante à da própria polis e isso será muitíssimo bem sucedido.
Não se pode afastar uma consideração sobre a história política de Roma considerações sobre a sua história militar porque essas duas coisas estão ligadas de uma tal maneira tão medular que a separação resulta em morte. Eu não consigo entender uma sem a outra. O sucesso da expansão territorial romana é militar, deve-se ao exército, assim como as grandes mudanças políticas de Roma se devem também ao exército. Explico: a criação das legiões como unidades independentes dava a capacidade de movimentação e de decisão muito mais ágil para o exército romano e a grande novidade que é introduzida neste momento – a chamada conscrição militar, a partir da qual as pessoas eram convocadas e treinadas permanecendo durante um determinado período integralmente dedicadas ao exército. Qual a novidade, não foi sempre assim? Não. A imagem típica da formação do exército era: tomava-se a decisão de invadir algum lugar, chamava-se os camponeses ou aqueles que estivessem por ali ou eventualmente contratava-se alguém e armava-se estas pessoas, treinava-se um tanto e ia-se para a guerra. Imaginem as condições bélicas desastrosas dos exércitos formados desta maneira – sem treinamento, nenhum tipo de preparo, principalmente, físico. A ideia era fazer volume. No caso do exército romano era diferente: as pessoas eram convocadas e se tornavam soldados profissionais. “A vida pela espada”. Ganhavam para isso, eram alimentados pelo Estado romano – muito embora ainda comprassem as suas armas, pois a armação do exército pelo Estado só surgirá muito tempo depois, com o exército prussiano no século XVIII – e treinados profissionalmente.
A distribuição, repito, seguia a mesma lógica política da aristocracia romana: os cavaleiros eram sempre aristocratas, que eram membros do patriciado ou pessoas bancadas por ele, porque o acesso a equipamentos da cavalaria só era possível a membros do patriciado em um primeiro momento, embora isto venha a se modificar paulatinamente. A infantaria, o peonato era a plebe. Peão é, etimologicamente, aquele que anda [e, logo, batalha] a pé. A grande questão – e este é o terceiro elemento diferenciador do exército romano (o primeiro é a organização em legiões e o segundo a constrição) - , é que a organização das legiões se dará por colunas e esta é uma formação de batalha muito específica, uma estratégia tipicamente romana. Eles usavam lanças e escudos grandes e andam em colunas, em regra colunas de três ou cinco pessoas, de maneira que os primeiros lutavam enquanto os de trás e os do meio da coluna aguardavam o momento de avançar para a frente da coluna. Sempre as colunas comandadas por um centurião que determinava quando as frentes deveriam ser modificadas. Isto dava uma capacidade de renovação e força de batalha extraordinária, primeiro porque elas eram praticamente invulneráveis às flechas que, até aquele momento, dizimavam o avanço dos exércitos – quando o exército chegava à frente de batalha já provavelmente havia apenas um grupo reduzido, já avariado e combalido para a luta. As colunas conseguiam chegar inteiriças ao campo de batalha. Ainda hoje a grande dificuldade do avanço de exércitos por terra é romper a frente inimiga, a coluna inicial e entrar onde o inimigo está – a coluna inicial é geralmente formada por artilharia e, na antiguidade, pelas flechas. No momento em que se rompe a linha de defesa, ou o exército do inimigo tem capacidade de reação ou ele obrigatoriamente terá que dispersar. Ou ele recua para se reorganizar ou cinde e dispersa. Avança-se para além das linhas das flechas – as colunas conseguiam atravessá-las com uma certa facilidade por causa dos escudos. O escudo de um protegia a si mesmo e ainda uma certa área do parceiro de coluna e todos conseguiam avançar numa forma primitiva de tanque de guerra.           Esta é a mesma lógica dos tanques de guerra da Segunda Guerra Mundial, só que, evidentemente mecanizado – manda-se o tanque na frente para que ele disperse a linha inimiga e depois a infantaria avança. Não havia, na organização militar daquele tempo, um exército que estivesse estruturado desta maneira. Roma passou séculos sem perder uma batalha o que era um feito sem precedentes – mesmo Alexandre avançando de maneira entusiasta e com as falanges, que se organizavam de maneira semelhante aos exércitos romanos, ainda não foi tão bem sucedido, sofrendo muitas derrotas e perdendo muita população de seu exército. Os romanos passaram séculos vitoriosos até o Império começar a perder as primeiras batalhas.
A infantaria se tornará um dos grandes elementos, senão o grande elemento do sucesso da expansão territorial romana. O exército começa a depender cada vez mais da infantaria e, falando em termos políticos, a infantaria é composta não pelos patrícios, mas pelos plebeus. Quem sustenta a infantaria são os plebeus, vinculando os patrícios em uma relação de dependência tão forte que eles devem prestar homenagens à infantaria. Os patrícios inclusive enriquecem por causa da infantaria, já que o espólio de guerra é conquistado por ela e dividido com eles. A infantaria chega a se tornar o grande corpo político do patrício, comandante da legião – ele começa a defender a plebe, como fará Julio Cesar, muito tempo depois. Quando uma legião se torna lendária pelas vitórias sucessivas que tem, ela enriquece – todos que compõem a legião enriquecem, pois cada vitória significa espólio de guerra a ser levado para Roma. Na fase final da república, as vitórias já serão elemento de medo para o senado, tanto que o senado determinará por lei que os exércitos que voltem de batalha tenham que ficar para aquém da Via Ápia – antes de entrar, portanto, em Roma -, para que um mensageiro avise o senado que o exército está acampado lá e as pessoas só entram na cidade desarmados e com a autorização do senado. O medo era de que os generais das legiões, com um grupo de pessoas armadas que os idolatram sem limites – pois os generais lhes dão fama e riqueza -, tentassem tomar o senado, como efetivamente aconteceu. Não havia outro exército dentro de Roma – o exército estava na mão dos generais, que poderiam fazer com o que bem entendessem com ele. Isto cria um elemento de chantagem política fortíssima. É a mesma lógica do coronel com o jagunço. Há vários relatos relativamente antigos de comarcas do interior do Estado [do Pará] cuja força policial era de volume ínfimo e suas ordens judiciais de reintegração de posse não eram cumpridas porque os grandes proprietários de terra têm a sua disposição uma milícia de cinquenta ou sessenta homens. Quando não eram as milícias dos grandes proprietários, eram os movimentos sociais acampados e armados até os dentes e a polícia não tinha muito o que fazer... Essa é mais ou menos a situação da legião, considerando ainda que a infantaria adora e deve sua fama e riqueza ao general. Definitivamente uma situação tensa. A república deverá a sua instabilidade política à ascensão destes grandes generais e suas infantarias.
Para demonstrar o meu argumento: quando começam a aparecer as primeiras grandes leis que quebram o direito dos patrícios e começam a permitir e reconhecer direitos aos plebeus? Lei Hortência, permitindo o casamento entre plebeus e patrícios; a Lei das XII Tábuas, permitindo uma série de inclusões para plebeus, inclusive, permitindo-os a litigar em juízo, o que não era permitido pela legislação anterior (só os patrícios poderiam litigar em juízo); os plebeus começam a poder se eleger como tribunos, ou seja, ter papel na aprovação de determinadas leis ou na proposição de determinadas leis que seriam aprovadas pelo senado; todas estas leis reconhecendo politicamente a plebe aparecem na república porque os plebeus já estão mais fortalecidos politicamente graças às vitórias militares e à dependência das legiões em relação à infantaria e porque eles começam a enriquecer pelo espólio e pelo comércio.
Há um sistema em Roma, da clientela, que diz respeito a isso: são protegidos de patrícios, em regra, plebeus cultos e que funcionam dentro das famílias como tutores, muitas vezes, dos filhos dos patrícios ou plebeus ricos pelo comércio, mas que só podem se dedicar à atividade do comércio através do intermédio de algum patrício porque antes não possuíam direitos. O patrício podia ser o defensor, o advogado, o orientador político deste plebeu, que paga alguma coisa a ele pelo serviço – esse é o sistema de clientelismo que era organizado socialmente em Roma.
O sistema econômico romano está em direta dependência dessa expansão militar. Mencionarei duas coisas em relação ao sistema econômico. Primeira: o sistema econômico romano se baseia no modo de produção escravista. Não é uma escravidão mercantilista como a que nós vamos ter com o tráfico – esta escravidão é o fim da escravidão, a sua etapa final. A escravidão antiga é por guerra. Há comércio de escravos, eles podem ser vendidos e são comercializados em praças e feiras, mas a forma de aquisição original do escravo é a guerra. Isso é previsto no direito antigo de quase todos os povos - o direito de aprisionar ou escravizar o outro vencido em guerra. A base produtiva em Roma era o trabalho desses escravos. Não é difícil entender, portanto, que para manter a produção romana funcionando, era preciso ter um mecanismo que movimentasse eterna e continuamente a guerra, simples assim. Se eu não tenho guerra, os escravos não se expandem e depois começam a morrer e o sistema econômico vai perdendo a sua capacidade de produção. Sem produção não tenho comércio e sem comércio não há dinheiro. Sem dinheiro nós não vivemos em cidade – nós vamos parar. Lembrem-se sempre daquela espiral de complexidade social: nós só conseguimos viver em cidade através de um sistema de troca. Sem troca – e a moeda significa isso –, sem cidade. Sem moeda, sem cidade. Frases curtas, de impacto, muito embora eu não goste muito disso.
O contrário também é verdadeiro: quanto mais bem sucedida Roma se torna em sua expansão militar, mais escravos, mais produção e mais comércio. Esse é o elemento-coração da economia romana e é um elemento frágil, altamente perigoso. Viver na dependência de ser bem sucedido na guerra é sempre muito complicado – suportar um esforço de guerra contínuo.
Ainda há alguns elementos sobre a sociedade romana que eu quero mencionar. A sociedade romana é altamente mística e supersticiosa, aos poucos os plebeus começarão a ascender política e socialmente, como eu expliquei ainda há pouco. A justiça em Roma é uma maneira de solução de conflitos, de maneira muito intensa no comércio, mas não só, cobrindo conflitos também de natureza real (da propriedade), das coisas, direito de família, questões relativas a pais, filhos, irmãos e direito de mando e obediência recíprocos, casamento, etc. Essas coisas começam a se tornar não apenas formais, porque já nascem formais em Roma, mas instrumentos de exercício de cidadania – quem exerce e é detentor destes direitos os faz em praça pública, um local de encontro, foro, o centro da cidade. Proclama em voz alta, reclama um contrato não cumprido, estabelece em praça pública, por escrito ou oralmente, a obrigação de seguro em relação a determinado negócio. Litiga contra um outro comerciante que lhe vendeu um escravo que já estava à beira da morte e que lhe enganou por isso. Esses direitos começam a ser objeto de disputa pública em Roma, disputas no espaço público e dentro de uma linguagem, lógica, que transcende, portanto, de maneira muito clara e evidente, a lógica das relações meramente familiares. Esses resultados que dependem sempre e exclusivamente do seu pertencimento a esta ou aquela família passam a ser resultados mais imprevisíveis, garantidos pela presença de uma solenidade pública, que vai sendo, progressivamente, formalizada e objeto de um saber próprio. Chamaremos a isto de processo. Essa ideia de processo, esse arquétipo de processo, que não é uma ideia, um arquétipo romano – é grego, como já vimos -, será desenvolvido em Roma a um grau de sofisticação que outras civilizações daquele tempo não conheceram. O processo em Roma é público e se tornará, na sua evolução, progressivamente público, querendo significar público na radicalidade da expressão: quem decide não é uma autoridade familiar. O detentor daquele saber específico [jurídico] não é um membro de uma família, mas alguém que presta um serviço público – o jurista, o jurisconsulto. Essa é uma invenção romana. Se o arquétipo do processo público, da justiça pública, é uma invenção grega, a sofisticação do processo e a criação da figura do jurisconsulto é uma invenção romana. É em Roma que se forma o juiz, o advogado e que o processo ganha um papel cada vez mais central na organização da sociedade, na estabilização das expectativas socialmente dadas e isto é muito interessante.
Diremos que estudar, portanto, as fases do processo civil em Roma não é um critério meramente aleatório para o estudo das fases do direito em Roma porque há vários critérios, formas diferentes de classificar a evolução do direito em Roma. Escolher as fases do processo civil como uma ou o critério que mais me interessa para o estudo da evolução do direito romano foi uma eleição que eu fiz porque se dá no processo a melhor pista, no meu entender, do grau civilizatório que o direito representa numa determinada sociedade. O processo é, essencialmente, um meio público de resolução de conflitos – ele não apenas traduz esses conflitos juridicamente, mas estabelece uma forma de resolução no plano do direito. Não teria como resolvê-los no plano dos afetos, das expectativas, mas em algum momento aquilo que eu demonstrei como conflito e irresignação da minha parte será resolvido. A sentença pode até não me satisfazer, mas o juiz dará uma resposta. O conflito que eu iniciei juridicamente em algum momento termina. A lógica do processo se dá, grosso modo, da seguinte forma: quanto mais sofisticada é a forma do processo, os mecanismos de tradução e resolução do conflito que o direito estabelece, mais complexa é a sociedade. Está-se referindo a uma sociedade mais complexa porque os conflitos devem ser mais complexos dado que o processo é mais bem acabado e sofisticado. Nós não temos processos sofisticados, com uma linguagem de direito sofisticada, com vários instrumentos de prova, de demanda, de recurso, em sociedades simples, porque os conflitos simples não demandam um processo complexo. Mas sociedades complexas, guerreiras, com um comércio desenvolvido e com uma polis ou urbe desenvolvida, demandam um processo mais sofisticado. Estou dizendo que o processo em Roma, na monarquia, não tem o mesmo grau de desenvolvimento como terá o processo no final de Roma. O processo no Império, no final da história romana, prevê até mesmo nível recursal – estava longe da mais criativa imaginação do homem grego. É um processo altamente desenvolvido.
Lendo a história romana sob este viés, eu posso supor o nível de desenvolvimento dos conflitos dentro da sociedade romana. Um processo complexo remete a conflitos complexos. Um processo simples remete a conflitos de natureza simples. Essa forma de relação é, portanto, uma forma de mensuração da complexidade de uma dada sociedade – eu posso utilizar o processo desta maneira. Ele é uma forma de medir o grau de complexidade social – aquelas camadas de complexidade que vão aderindo progressivamente aos níveis iniciais de organização de uma dada sociedade. Por isso eu escolho o processo civil como a forma mais completa, pelo menos para a finalidade que temos aqui, de acompanhar a evolução do direito em paralelo à evolução da sociedade romana e as mudanças desta sociedade são, em regra, perceptíveis no plano do processo. Sociedades que não conseguem resolver juridicamente problemas de natureza social escolhem outros meios para resolvê-los – eles não ficam sem solução. Agora quando estes meios estão fora do controle do direito, eles podem ser meios pacíficos ou não. Uma forma usual de descontrole ou ruptura social, de guerra civil, é quando as instituições não conseguem mais juridicamente dar soluções para conflitos centrais – conflitos periféricos sempre haverão, e em regra são indiferentes ao direito. O direito nem percebe a existência deles. Mas quando eles são centrais e o direito não dá cabo deles, não consegue encaminhar ou criar uma expectativa de que ele seja capaz de funcionar para resolver aqueles problemas, eles não vão simplesmente desaparecer – eles serão resolvidos fora do direito, fora do âmbito domesticado da violência. E então poderemos encontrar sistemas de extorsão, de violência de grupo (as quadrilhas), os linchamentos, a supressão pura e simples de vida e de espaços públicos, as fraudes dos sistemas eleitorais...
Roma conseguia, de maneira atenta a cada passo de complexidade social, tornar o seu direito mais apto também a lidar com um grau mais desenvolvido destas sociedades e isto é bastante curioso. Esta é a lógica que vamos seguir ao expor as três fases do processo romano comparando estas fases com as fases políticas, mas nós abordaremos isso na próxima aula.