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A escolha do historiador
Este texto é o primeiro capítulo do livro “Apologia da História”, escrito por Marc Bloch. Seu objetivo é delimitar e traçar as linhas do ofício do historiador. Trata-se, portanto, de um estudo de terreno, cuja finalidade é responder às perguntas “o que é história?” e “o que faz um historiador?”, ou seja, identificar quais são as características que fazem parte dum estudo propriamente histórico e que o diferencia do ofício do biólogo e do físico, por exemplo.
Dito de outra maneira, é uma busca epistemológica sobre as condições de conhecimento e de verdade do historiador. Dentro da pluralidade de significados que o termo história evoca, está-se falando aqui da história como teoria (Historik).
A história e os homens
O texto começa por oferecer resistência à idéia de que a história é uma ciência do passado, pois mesmo que tal abordagem tivesse sido adotada pelos historiadores originários, parece-lhe absurda a formação de uma ciência sobre fatos que apenas tenham em comum a característica de terem acontecido em épocas contemporâneas.
Utilizando um exemplo, o autor explica quais seriam os atributos de um objeto da ciência da história. Narra a história da cidade de Bruges, cujo crescimento às proximidades do golfo Zwin acabou por causar o assoreamento deste último. A interação humana com a natureza, isto é, o contato da população da cidade de Bruges com o solo e as águas do Zwin, que acabou por ocasionar a sua tomada pelas areias, é apontada como um fato eminentemente histórico.
Desse modo, com o surgimento do fator humano na equação que tentava explicar a razão do assoreamento, uma ciência pede o auxílio da história para a resolução do problema. “O objeto da história é, por natureza, o homem. (...) Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça”. O homem é o primeiro elemento do objeto da História.
Quanto à expressão “ciência da história”, o autor evoca a discussão sobre a classificação da história como ciência ou arte. Atentando para a diferença entre o humano e o estritamente natural, conclui por entender diferentes os métodos da matemática, física etc. e da história. “Os fatos humanos são, por essência, fenômenos muito delicados, entre os quais muitos escapam à medida matemática”. Ainda sobre esse aspecto, termina por comparar as diferenças entre os estudos do mundo físico e do espírito humano com, respectivamente, as tarefas do fresador e do luthier – o primeiro trabalha com precisão numérica; o segundo, pela sensibilidade, pelo empirismo. É requisito ao trabalho do historiador o “tato das palavras”.
O tempo histórico
Em seguida, o texto prossegue a examinar o segundo elemento do objeto da história: o tempo. No entanto, o tempo da História não representa apenas uma medida – é uma realidade viva e concreta, fundamental para a compreensão dos fatos históricos. O tempo é, também, como realidade pulsante, o maior problema da pesquisa histórica. Pois ele é ao mesmo tempo contínuo, ou seja, incessante e perpétua mudança – e essa é a origem da dificuldade que o historiador tem em considerar o nível de influência de um fato histórico anterior em relação a seus subseqüentes.
O ídolo das origens
Ao tratar do “ídolo das origens”, o autor critica uma forma de visão sobre a história. Explica que sempre foi bastante comum alguns historiadores seguirem a orientação dos estudos do mais próximo pelo mais distante. A busca das origens é, desse modo, perigosa, pois procura não apenas um começo. Nesta condição, o passado daria completo sentido ao mais recente. Este é um erro do qual, afirma o autor, as ciências naturais se encontram livres. O atraso dessa filosofia ainda repercutiu na área das ciências humanas.
O evolucionismo biológico foi a salvação das ciências da natureza, pois tal concepção afastava progressivamente as explicações das formas primitivas, atentando mais para a influência das condições do momento mais recente. No entanto, a história permaneceu impregnada pela glorificação das origens, tanto na França quanto na Alemanha.
Ainda, outro elemento tomou parte simultaneamente na vinculação da história ao passado. Na história das religiões, a explicação pelas origens parecia fornecer um critério para o próprio valor destas. De alguma maneira, tal preocupação acabou por contagiar outros campos de estudo.
Entretanto, saber que Jesus Cristo fora crucificado e em seguida ressuscitado não é suficiente para compreender como é possível que o cristianismo tenha se mantido mais ou menos homogêneo com o passar do tempo e durante todo o desenvolvimento da civilização. Neste ponto, a discussão toma as colorações do evolucionismo, com o exemplo do carvalho e da glande. O cristianismo se manteve por razões humanas, que se encontram no meio social (“clima humano”).
A mesma insuficiência pode ser sentida no reino das palavras. Termos cuja etimologia por si só não explica os significados do atual uso da linguagem são o exemplo. Palavras como bureau e timbre tiveram originalmente um sentido, que é bastante distinto do seu significado atual, pois o meio social contemporâneo (de outro modo, o uso das palavras na linguagem corrente) exerce um impacto crucial na vida daquelas.
De outro modo, a investigação das origens acabou por se revelar o disfarce da “mania do julgamento” – cumpriam apenas a finalidade de justificar a condenação de alguma prática política ou moral.
Esta é mais ou menos a visão do historiador que se quer passar com as imagens impressas nas capas e páginas dos livros de história – pelo menos os traduzidos e impressos no Brasil.
Bloch repudia completamente a filosofia do estudo exclusivo do passado e afirma que só é possível explicar um fenômeno histórico de acordo com seu momento. “Os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais”.
Passado e presente
Por outro lado, existem, no canto oposto dos extremos, os devotos do presente imediato. Contudo, a noção da história como ciência do presente é no mínimo tão problemática quanto a de ciência do passado. O presente é um momento singelo e quase imperceptível na eterna evanescência do tempo. Goethe diz que não há presente, mas apenas um devir. Não resiste também a concepção da história como ciência do passado recente, pois a crítica sobre o traçado das linhas do tempo (o quão recente tem de ser um fato histórico?) lhe derruba facilmente.
Ressalva-se, em seguida, que a tendência a se aproximar de um dos dois extremos expostos é bem recente. Os mestres antigos e modernos nunca ignoraram que a compreensão do passado era fundamental para a elucidação do presente. Atribui a causa desse efeito, talvez, às inovações tecnológicas, que abrem um abismo psicológico das gerações atuais em relação às anteriores e seus antecedentes mais longínquos.
Afirmava-se que a engenharia contemporânea, por exemplo, mas não apenas esta ciência, não teria nada de útil a aprender com os trabalhos científicos de seu passado. A revolução drástica e repentina da técnica teria tragado todas as instituições anteriores e lhes atirado no vazio.
Porém, Bloch resiste a tais assertivas, pois a ignorância do passado não apenas prejudica a compreensão do presente, como também atrapalha a busca pelo remédio de determinado problema em questão. É absurdo limitar a causa da configuração atual de determinada sociedade estritamente ao seu momento imediatamente anterior. Parece muito claro que fatores ainda mais antigos continuam a exercer pressão sobre as estruturas sociais, inevitavelmente. A compreensão do atual é, por muitas vezes, impossível sem o apelo a eventos históricos um tanto mais distantes.
“A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente”.
Por fim, a história, a ciência que incessantemente unifica o estudo dos mortos ao dos vivos, parte sempre do mesmo pressuposto. O historiador começa do presente - seu ponto de partida é o seu tempo. “(...) no filme por ele considerado, apenas a última película está intacta. Para reconstituir os vestígios quebrados das outras, tem obrigação de, antes, desenrolar a bobina no sentido inverso das seqüencias”. Está é a condição primária do exercício do historiador.
Capítulo II: A observação histórica
As considerações sobre o método de uma ciência são, no mínimo, tão importantes quanto as sobre seu objeto. O objetivo deste capítulo é investigar as considerações sobre os métodos da história no decorrer do tempo.
Características gerais da observação histórica
Em se tratando de fatos situados no passado, diz-se que o historiador assume posição semelhante à do investigador na reconstituição de um crime – colhe, de maneira mediata, informações por meio de testemunhas. Ele não possui acesso direto aos fatos do passado. Este tipo de problema, contudo, não se restringe apenas ao estudo do passado.
No presente também, o horizonte do historiador encontra-se limitado por questões de perspectiva. Pois a percepção do indivíduo encontra-se estreitamente limitada a suas faculdades sensíveis e sua capacidade de atenção. Enfim, o estudo do presente não é, neste sentido, privilegiado em relação ao estudo do passado, uma vez que todo o conhecimento da humanidade é, em substância, construído pelos testemunhos dos outros. Nós temos acesso imediato aos nossos próprios estados de consciência e nada mais.
Todavia, Bloch põe em questão o dogma da intermediação imprescindível dos conhecimentos do historiador. Esta teoria, elaborada por historiadores mais antigos, levava como pressuposto a concepção da história como tragédia grega. Os fatos históricos deveriam ser recontados como episódios precisamente narrados. Com relação a alguns fatos, é verdade que a situação da investigação do historiador se assemelha à da brincadeira do telefone sem fio, dentro da qual ele se localiza na última posição...
Dessa maneira, a nova proposta de história de Bloch busca um afastamento da narração dos grandes acontecimentos históricos e utiliza como principais fontes os eventos do homem comum – as histórias da vida privada, por exemplo. A construção das “micro histórias” é o principal objetivo da escola histórica dos Annales.
Existem fatos históricos (como exemplo, os fósseis de esqueletos encontrados nas muralhas de algumas cidadelas sírias) e cujo acesso se dá sem a necessidade da intermediação de um ser humano. Desse modo, a situação do historiador supera a definição rigorosa do método. Note-se que se considerava conhecimento indireto como aquele cuja intermediação necessária deveria ser estritamente humana.
São citados, a seguir, muitos outros objetos históricos cujo acesso se dá em primeira mão. Retomando uma comparação feita anteriormente, do ofício do historiador como reduzido a conhecer somente aquilo que lhe é trazido por relatos de um estranho, Bloch acentua que nem sempre a investigação se dá desta maneira. Por diversas vezes, é possível ao historiador vislumbrar seu objeto com seus próprios olhos.
A diferença entre a investigação do passado remoto e a do passado recente é apenas de grau. O fundo do método continua o mesmo. O historiador tem contato e percepção direta dos restos da muralha em que foram encontrados ossos de crianças (exemplo dado no texto). É por uma operação puramente indutiva (e criação individual, portanto) que ele atribui, a partir dos restos deste objeto encontrado, a prática de sacrifícios pelos povos que ali viviam.
Tomadas estas devidas considerações, Bloch descreve a primeira característica da observação histórica: trata-se de um conhecimento através de vestígios. Ou seja, o historiador pesquisa aquilo que nos resta de um fenômeno, que a nós é possível captar através dos sentidos de algo que pertence a um passado remoto ou mais recente.
Mas o conhecimento do passado está sempre em progresso. O Oriente se abriu recentemente para ter seus fenômenos históricos desvendados. Novas tecnologias e novas formas de investigação surgem, proporcionando acesso a dados antes inatingíveis. O campo do conhecimento humano reservado à História está sempre em evolução, mesmo que a progressão tenha seus limites. A capacidade que ciências como a química têm de criar seu próprio objeto ainda permanece, aos historiadores, como um sonho longínquo. A história nunca está presa ao passado e, pelo contrário, deve muitas de suas conquistas ao fato de seu início sempre se dar no presente.
E assim, uma grande parte da história da humanidade permanece inacessível devido às limitações da própria condição da disciplina, que lida com fenômenos já consumados. As ciências do homem não estão, contudo, em situação mais prejudicada do que a de outros ramos do conhecimento humano, como a paleontologia. Do mesmo jeito que o historiador não tem acessos a certos documentos que lhe dariam acesso a informações relevantes sobre a mentalidade de uma civilização, ao paleontólogo é impossível encontrar qualquer vestígio sobre as glândulas de um dinossauro, por exemplo, pois destes só lhe sobram os esqueletos.
Os testemunhos
Os testemunhos encontrados pelo historiador são divididos tradicionalmente em duas categorias: os voluntários e os involuntários. Os voluntários são os documentos ou depoimentos deixados propositadamente para a posteridade. Os segundos, por sua vez, tinham como destinatário não o historiador, o pesquisador à procura do vislumbre de uma civilização antiga, mas eram entregues aos homens da própria época.
Uma preciosa contribuição é, sem dúvida, prestada pelos testemunhos da primeira categoria. Contudo, é nos testemunhos da segunda categoria que o historiador depositará sua mais profunda confiança. Isto porque os documentos voluntários, em certa medida, são, como os testemunhos de alguns romanos (citados como exemplo), incoerentes com outras fontes de informação que são encontradas sobre a civilização romana.
Além disso, alguns pedaços da história da humanidade, como a pré-história e a história econômica, só puderam ser reconstruídos tendo como fonte os testemunhos da segunda classe. Estes, no entanto, não estão imunes à perversidade, mas os indícios deixados pelas civilização de maneira não pré-meditada fornecem ao historiador material suplementar de extrema relevância para o preenchimento de lacunas deixadas pelos testemunhos do primeiro tipo, bem como para a resolução de contradições presentes nestes.
Os testemunhos involuntários são capazes de livrar o historiador das amarras do preconceito e da “miopia” presente na visão de mundo daqueles homens mesmos, que deixaram descrições sobre a vida na sociedade com o propósito de serem futuramente descobertos.
Ainda, os testemunhos voluntários são, por muitas vezes, mais interessantes ao pesquisador não pelo que tentaram propositadamente dizer, mas pelo que dizem sem ter o esforço consciente de fazê-lo. Desta maneira, mesmo que o conhecimento do passado se dê sempre por meio de vestígios, é possível conhecer sobre ele muito mais do que os seus escritores julgaram nos dar a conhecer. É uma grande revanche da inteligência sobre o dado – sujeito cognoscente sobre o objeto cognoscível.
Configura-se, a partir dessa visão, a atividade criativa do historiador no seu trabalho de pesquisa. Pois os documentos não falam senão quando são interrogados. Mesmo que alguns historiadores acreditem que o seu trabalho se limite a verificar e apreender as informações contidas em um documento (“no começo era o documento”), definitivamente não é assim que procedem durante sua pesquisa, estando eles conscientes disso ou não.
Esta concepção não se circunscreve apenas ao âmbito histórico. “No princípio, é o espírito”. Toda investigação histórica pressupõe que a busca aponte em alguma direção e nunca, em nenhuma ciência, a observação passiva gerou frutos.
O interrogatório surge como uma necessidade preliminar do trabalho do historiador – uma condição de possibilidade do conhecimento histórico. Por isso, pouco importa se o pesquisador esteja consciente ou não desta etapa de seu trabalho. “Nunca se é tão receptivo quanto se acredita”. A atividade de pesquisa histórica contém sempre em si um germe criativo do próprio sujeito.
Dada a quase infinita diversidade de documentos e testemunhos históricos que podem ser encontrados – além do natural descontentamento do historiador em se limitar ao estudo de apenas alguns deles -, o historiador deve saber as técnicas de manuseio e interpretação dos objetos de qualquer natureza. Os fatos humanos são os mais complexos de todos. Bloch preocupa-se com o ensino das mais variadas técnicas e seu emprego para a melhor e mais completa compreensão dos fenômenos históricos.
A transmissão dos testemunhos
O ofício do historiador também está sujeito às imposições do destino. Alguns dados de civilizações antigas permanecerão talvez eternamente obscuros pelo fato de terem sido destruídos, seja pela vontade dos homens ou por uma catástrofe da natureza. A pesquisa histórica tem sempre como fator de risco essas considerações de caráter irracional – não podem ser previamente conhecidas de modo a serem evitadas, portanto.
Se por um lado estes fatores irracionais por vezes atrapalham a pesquisa histórica, por outro o conhecimento de alguns objetos históricos só se deve à contribuição do inesperado. Se não fosse a erupção do Vesúvio não teríamos o conhecimento de Pompéia. Da mesma maneira, as revoluções e guerras – cujas causas são evidentemente humanas – podem tanto jogar ao esquecimento bibliotecas inteiras quanto serem as exclusivas responsáveis pela sua preservação.
É ilustrado neste capítulo o problema das fontes da história, pois todo historiador, ao desenvolver sua pesquisa, lança mão dos mais variados tipos de arquivos e documentos. Bloch recomenda aos escritores da história que se dediquem à criação de pelo menos alguns parágrafos explicando como ele chegou a seu resultado – quais livros, arquivos e documentos teve de pesquisar e sob quais condições os encontrou.
Pois muito embora parte das explicações do desaparecimento de algumas fontes históricas sejam simplesmente trágicas, algumas causas são humanas e não escapam à análise. Bloch se preocupa com um modelo de sociedade que negligencia os caminhos do historiador – concebe uma idéia de comunidade que atenta para o conhecimento de si mesma e o organiza racionalmente. Este esforço de eliminar a dissimulação (isto é, a negligência e o sigilo perverso) pelo qual é possível preservar aquilo que não é inevitavelmente destruído pela natureza é desejável (e até mesmo exigível) na medida em que evita a perda de ferramentas importantes para a compreensão das sociedades.
Digno de louvor. Parabéns Diego!
ResponderExcluirMuito bom esse resumo da apologia!! deu para compreender todo o texto de uma forma clara e simples. parabéns!
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