_____________________________________
Outros elementos vão se
adicionando a esses relatos de viagens: são elementos interessantes que
aparecem também em outra figura, anterior um pouco ao Alexandre Ferreira, e que
viveu durante bastante tempo aqui na região: esta figura foi o Padre Antônio
Vieira. Nos relatos – ainda não de viagem, mas nos sermões – de Vieira, um
elemento que é absolutamente reincidente e recorrente quando se fala da região
amazônica é também o elemento do vazio, é o elemento da submissão ao clima e à
natureza.
Só que aí, com outro foco, com
outro aspecto. O problema todo é o desafio civilizatório diante de uma natureza
tão poderosa e tão titânica, que força os habitantes a irem para uma outra
direção, completamente diferentes desta suposta direção civilizatória. Estou
querendo dizer o seguinte (esse é o elemento recuperado tempos depois na
literatura naturalista aqui na região, com Inglês de Souza, por exemplo): o
clima quente, as enormes distâncias e a sensação de abandono e de impotência
diante dessas forças mitológicas da natureza fazem com que nós tenhamos mais
suscetibilidade a elementos instintivos. Nós acabamos nos dominando pelos
instintos – instintos estes da natureza, que acaba soterrando todo mundo pela
região amazônica. Então, os instintos procriativos, os instintos sexuais, a
lassidão – no sentido empregado nos sermões do Vieira; Abguar Bastos utiliza,
aqui no “Safra”, outro termo, mais regional: a morrinha.
O que é a morrinha? “Morrinha
é aquela vontade de espreguiçar-se, de bocejar, de olhar as paisagens sem o
castigo dos detalhes. Não andar, ou andar mansamente. Descer, em vez de subir.
Não chegar ao fim de coisa alguma. Não trabalhar. Não se aborrecer. Não ligar
as circunstâncias, nem os mínimos incidentes”[1].
Quem está com morrinha, aqui, é o Valentim, que está preso. Agora, se nós
destacarmos só esta descrição do que é a morrinha (a vontade de não
trabalhar...), veremos que é a ausência de qualquer interesse artístico (vejam
como essa é uma expressão artística): “(...)
olhar as paisagens [esse é o olhar do homem da região; não dos estrangeiros
sobre a região] sem o castigo dos detalhes”[2].
Um pesquisador que venha
construir um relato sobre viagens não pode olhar a paisagem assim; ele tem que
olhar as paisagens e se castigar com os detalhes. Ele tem que procurar
registrar tudo o que há, nos seus detalhes, nas suas minudências. Aqui, a
morrinha é uma outra coisa. É um vazio estético também. Mas se nós destacarmos
isso simplesmente, pode somente ratificar alguma impressão sobre a hiléia amazônica, sobre aquilo que lá os
relatos dos sermões dos jesuitas chamavam de alterius (aquele mundo outro
que é a Amazônia) – alterius não
é só a imagem sobre o Brasil, é a imagem sobre a Amazônia: o mundo-outro. O alterius poderia até caber na descrição
da morrinha: “o índio não quer trabalhar, ele não tem nenhuma perspectiva de
cultura. O clima não convida a isso”. Mas em um dado ponto do texto, Abguar
Bastos dá um outro tom para a morrinha:
“Hora de
morrinha. Valentim queria saber se ela estava ali, no meio do povo cristão, a fim
de que, de noite, soltos dela, todos tivessem impressão de ter quebrado um
encanto milenar para o reencontro com a vida. Estava cheio de calma, apenas
desejava que aquela morrinha não acabasse mais, nunca mais. As mãos caiam das
grades grossas, e Valentim dormiu, quieto, como um homem morto”.
A morrinha, para ele, aqui, era a
forma, também, de ele sobreviver nessa prisão. E o único sonho a que ele se
permitia era a ideia de que, acabada a morrinha, a noite, talvez ele – assim
como o povo cristão, como ele se refere à população do seu local – pudesse
acreditar estar livre de alguma coisa, estar livre de um encanto milenar, um
encanto que se abate sobre todos eles naquele local a uma determinada hora. Um
encanto, um enfeitiçamento, o elemento místico que acaba se misturando com uma
força da natureza. A natureza sendo descrita com algo de místico, com elementos
de misticismos, e que se abatem sobre o desejo das pessoas, sobre a compreensão
delas, que turva o pensamento, mas que, no entanto, consegue também dar algum
tipo de refrigério, dar algum tipo de consolo: Valentim consegue dormir numa
cadeia podre, por causa da morrinha. Ele dorme de tarde, e não de noite. A
noite é o horário dos morcegos e das lacraias. Portanto, ele dorme não de
noite, mas na morrinha. Todos dormem na morrinha.
O desenho que há no final deste
capítulo é um jacaré dormindo, confundido aí com um tronco: esse é um elemento
que é transformado esteticamente pelo Abguar Bastos, mas não é uma ideia
original dele. A mistura do elemento natural que transcende para algum significado
místico está aqui, na descrição da morrinha. A ideia de que essa presença
imperiosa do clima determina os nossos horários e determina também os nossos
sonhos, as nossas expectativas e os nosso desejos está presente na descrição da
morrinha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário