Friedrich Dürrenmatt
Na localidade de Coridalos viviam muitos gigantes
e homens crescidos normais. Disso decorria que os homens maiores, os gigantes,
subjugavam os homens menores. Como Coridalos ficava na região da Ática, soprou
até lá um hálito de razão vindo de Atenas, inspirando o gigante Polípemo, que
era particularmente grande, a pensar. Durante várias semanas ele andou
pensativo pela paisagem, refletindo sobre a desigualdade dos homens. Depois ele
se nomeou Procrusto, o esticador, e construiu duas camas, uma para os gigantes
e outra para os não-gigantes. Na cama para os não-gigantes ele colocava os
gigantes e lhe cortava as pernas, de modo que eles coubessem na cama dos
não-gigantes. Os não-gigantes, ele colocava na cama dos gigantes e os esticava,
até que estes se adequassem à cama.
Palas Atena, de cujo hálito soprou o ar da razão
até Coridalos, sentiu-se responsável e dirigiu-se a Procrusto. Ela lhe
perguntou o que fazia.
"Estou agindo de acordo com a tua razão,
deusa", respondeu o gigante, "cujo hálito colocou em movimento o meu
pensar. Eu comecei a refletir sobre a desigualdade dos homens. Ela é injusta.
Eu me dei conta pouco a pouco de que a justiça exige que todos os homens sejam
iguais. Isto é razoável. Há em Coridalos gigantes e não-gigantes. sendo que os
primeiros subjugam os segundos. Os homens são aqui desiguais de dois modos: em
seu ser e em seu fazer. Isto não é razoável. Ora, se eu tornasse apenas os
gigantes em não-gigantes, cortando-lhes as pernas, eu teria produzido com isso,
todavia, uma nova injustiça: não-gigantes aleijados e não-gigantes, sendo que
nesse caso estes últimos submeteriam os gigantes que se tornaram aleijados.
Também irrazoável. Mas se eu agisse contra os não-gigantes, se eu os esticasse
ao tamanho dos gigantes aleijados, eu teria produzido uma nova injustiça: tal
como os gigantes aleijados, eles estão tão entregues aos gigantes quanto os
não-gigantes. Outra vez irrazoável. Assim sendo,a meu ver, só há uma
possibilidade de estabelecer a igualdade de todos os homens: os gigantes têm o
direito de ser não-gigantes, e os não-gigantes de ser gigantes. Eu estou agindo
de acordo com isso. Eu corto as pernas dos gigantes, eles se tornam tão
pequenos quanto os não-gigantes. Quanto aos não-gigantes, eu os estico até ficarem
do tamanho dos gigantes. Tal operação torna ambos iguais, pois através dela
ambos se tornam aleijados. E se eles morrem em conseqüência da operação, eles
também são iguais entre si, pois a morte torna todos iguais. isto não é
razoável?"
Balançando a cabeça negativamente, Palas Atena
retornou a Atenas. A argumentação de Procrusto a fez perder as palavras. Foi a
primeira vez que ela, como deusa, ouviu um discurso ideológico, e ela não
encontrou nenhuma réplica. Procrusto, em virtude do silêncio da deusa,
convenceu-se da correção de suas deduções, e voltou a torturar. Àqueles que
torturava, ele sempre esclarecia que o fazia em nome da justiça: ora, um
gigante tem o direito de ser um não-gigante e vice-versa. A localidade de
Coridalos tornou-se um inferno, repleta dos gritos dos martirizados, que podiam
ser ouvidos em toda a Grécia. Os deuses, embaraçados, tapavam os ouvidos com as
mãos. Eles também não encontravam nenhuma réplica à argumentação de Procrusto.
As pragas, em especial, eram horríveis de se ouvir. Por isso, eles desligavam o
som dos televisores - como deuses eles estavam tecnicamente bem à frente dos
homens - para não mais ouvir as preces e os pedidos de socorro, bem como a
gritaria e as maldições de Coridalos, razão pela qual eles nada mais ouviam do
resto da terra. Todavia, isso fez com que eles não mais interviessem na
história.
E assim, então, gigantes e não-gigantes
amaldiçoavam Procrusto, enquanto ele os torturava, e os aleijados gigantes e
não-gigantes o amaldiçoavam também. Saíam maldições até mesmo do túmulo
daqueles que não haviam passado pelo procedimento bárbaro. Mas visto que
Procrusto não compreendia porque ele estava sendo amaldiçoado - pois ele se
sentia um benfeitor e era em geral um gigante muito sensível -, ele imaginou
que o problema estava em seu método, adquirindo especialmente para as suas
camas bons colchões. Desse modo, enquanto os coridalianos gritavam
incessantemente e amaldiçoavam, ele tentava acalmar os torturados de um outro
modo, já que eles não haviam sido iluminados pela razão divina como ele. Ele
dizia para as suas vítimas que era heróico sofrer cada um em sua cama
específica, fabricada de árvores que cresciam em todo o país - uma razão não
menos irracional, porém, agora uma razão patriótica para as suas torturas.
E realmente, desta vez alguns gigantes e
não-gigantes se colocavam como voluntários aqui. No geral, as maldições foram
diminuindo com o tempo. Por encontrarem motivos para a ação de Procrusto, eles
também encontravam consolo para tanto sofrimento. Houve até gigantes aleijados
e não-gigantes aleijados que se convenceram de que haviam sido torturados para
um futuro melhor. Por causa disso, pelo menos a chegada de Procrusto não era
mais amaldiçoada, pois, com o tempo, as gigantes, através de uma adaptação evolucionária,
passaram a dar à luz aleijados não-gigantes e as não-gigantes, a aleijados
gigantes, de modo que Procrusto, no geral, não precisou mais torturar. Outros
contentavam-se em morrer desse modo, desde que assim, esperavam eles, no futuro
não houvesse mais nenhuma tortura.
Em virtude das razões apresentadas, os torturados
eram levados a suportar a tortura, mesmo sendo ela irracional. Só alguns poucos
gigantes e não-gigantes torturados insistiam depois que a cama de tortura e a
tortura fossem inutilizadas. Isso era o que Procrusto mais odiava. Ele ainda se
revoltava com o fato de as pessoas não entenderem que ele não torturava por
prazer, mas sim por uma necessidade histórica. Tendo em vista que, a fim de não
mais ouvir as queixas e gritarias, ele sempre imaginava motivos para torturar,
ele acreditava que, com o tempo, a história só podia ter um sentido se ela
progredia, e se tal progresso consistisse em que ela é sempre mais justa, e ela
só é mais justa se, a partir da desigualdade dos homens, ela se desenvolve em
direção à igualdade deles.
Enquanto isso, o jovem Teseu caminhou de Tróia
para Atenas, para lá se tornar rei, como filho de Egeu. Visto que ele concebia
a política desde um ponto de vista prático novo, ele também veio a Coridalos.
Lá ele ouviu e se admirou da Ideologia de Procrusto.
"Tu precisas admitir que eu estou agindo de
maneira razoável", disse Procrusto, orgulhoso, "a própria Palas
Atenas não sabia me replicar".
"Tu ages tão irrazoavelmente quanto
Pitiocampto, o podador de abetos, quando ele corta o andarilho em dois, e os
inserta nos troncos de dois abetos tortos e então os deixa crescer",
respondeu Teseu. "A única diferença entre Pitiocampto e tu consiste em que
ele não imaginou que devesse cortar em nome da justiça dos homens. Ele o fazia
pelo puro prazer da crueldade".
"Pitiocampto é meu filho", disse
Procrusto, pensativamente.
"Eu o matei", respondeu Teseu,
tranquilamente.
"Agiste corretamente", disse Procrusto,
depois de longo pensar, "embora Pitiocampto fosse meu filho. Não é permitido
matar pelo puro prazer da crueldade".
Assim, enquanto Procrusto queria cumprimentar
Teseu agradecido, este jogou o gigante com tal força na pequena cama que a
terra estremeceu.
"Seu louco", ele disse, e abateu
Procrusto, que lhe encarava com os grande olhos, admirado. "Você foi
retirado do hálito da razão muito cedo. As pessoas não são iguais, mesmo se não
houvesse gigantes e não-gigantes, mas só gigantes, ou só não-gigantes. E porque
as pessoas não são iguais, algumas maiores, outras menores, cada gigante tem o
direito de ser um gigante, e cada não-gigante de ser um não-gigante. Ambos são
iguais apenas perante a lei. Se tu tivesses introduzido esta lei, terias
evitado que os gigantes dominassem os não-gigantes, ou, o que poderia bem ser o
caso, que fossem os gigantes prejudicados pelos não-gigantes. Com isso, você
teria poupado seus conterrâneos dessa tortura absurda".
E, assim, Teseu primeiramente cortou as pernas de
Procrusto e, porque este já era especialmente um gigante grande, cortou-lhe
também a cabeça, que ainda murmurava ao ser decepada:
"Eu só estava sendo justo". E então a
cabeça ainda disse, enquanto ainda estava em cima do pescoço, antes que
os grandes olhos se fechassem: "Eu jamais fizera mal algum aos
homens".
Depois disso, Teseu caminhou de volta a Atenas
para junto de seu pai Egeu. Infelizmente, Teseu era não apenas um herói; ele
era também esquecido. Ele se esquecera, quando estava com Procrusto, que não
matara apenas o seu filho Pitiocampto, mas sim também engravidara a sua neta,
Periguna. Ele simplesmente se esqueceu de tudo. Seu lenço estava cheio de nós,
era inútil. Ao regressar de Creta, ele esqueceu Ariadne na ilha de Naxo, que
lhe salvara do labirinto, e assim esqueceu de levantar a vela branca, de modo
que o seu pai atirou-se ao mar, porque ele pensou que Teseu fora morto pelo
Minotauro no labirinto. Por causa disso, Teseu tornou-se rei. Infelizmente, ele
também esquecera do seu inteligente discurso a Procrusto: não que ele fora
particularmente um mal rei - ele está, de fato, bem colocado na escala dos reis
-, mas abaixo dele nem todos eram iguais perante a lei, alguns mais iguais que
outros. Isto porque Teseu também era esquecido como marido: seus amores,
escreve Robert de Ranke-Graves, colocaram tantas vezes os atenienses em apuros
que eles reconheceram seu verdadeiro valor apenas gerações após a sua morte.
in
Engelmann, B. & Jens, W. (1982): Klassenlektüre,
Hamburg: Albrecht Knaus Verlag,
pgs. 96-99. Tradução de Marco Antonio Frangiotti e Celso Braida
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