O STF no
tribunal da opinião pública
29 de
janeiro de 2012 |
Vários anos de debate se passaram antes que a
reforma do Judiciário fosse aprovada, em 2005. Entre outras coisas, criou-se o
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), um órgão estranho à estrutura histórica do
Judiciário brasileiro. Não demorou para que questionamentos iniciais sobre a
sua constitucionalidade fossem levados ao Supremo Tribunal Federal (STF). Na
ocasião, o STF rejeitou a ideia de que, em decorrência da independência
judicial, juízes devam controlar a si mesmos somente por meio de corregedorias
estaduais, sem nenhum monitoramento central. Ao menos no discurso, o STF
considerou tal reforma compatível com as cláusulas pétreas da Constituição e
abraçou a opção do constituinte. O CNJ sobreviveu. Sem muito alarde, porém, a
contrarreação judicial persistiu.
Passados mais de cinco anos de seu nascimento, as
competências do CNJ permanecem sob intensa pressão. Recentemente, contudo, esse
duradouro e quase silencioso conflito ganhou outra estatura. A opinião pública
despertou para um problema que permanecia incubado e, em face de numerosas
evidências de improbidade judicial que vieram à tona nos últimos meses, parece
não estar disposta a negociar a constitucionalidade dos poderes de investigação
do CNJ. O que deveria ser apenas mais um caso rotineiro de controle, pelo STF,
da atuação do CNJ se tornou, do dia para a noite, um evento politicamente
explosivo.
A opinião pública, alguns dirão, é uma instituição
enganosa. Não passaria de um mito inventado para facilitar a manipulação
ideológica e dar coerência narrativa a fatos políticos que não enxergamos nem
explicamos. Debaixo de sua aparente impessoalidade estariam escondidos os
projetos de dominação de meia dúzia de poderosos. Para esses céticos, o que há,
ou o que lemos e ouvimos no espaço público, são opiniões individuais mais ou
menos desencontradas, distintas de uma entidade fictícia, com autoridade moral
própria, chamada "opinião pública".
O mundo político, de fato, seria menos complicado
sem ela. Mas não foi com base nesse ceticismo que regimes democráticos foram
concebidos. Democracias constitucionais adotaram uma intrincada rede de
instituições para captar e processar não somente um, mas vários tipos de
opinião pública, que operariam em tempos e sintonias diversos. Grosso modo, o
Legislativo e o Executivo canalizariam, por meio de eleições periódicas, a
opinião pública cotidiana, tão oscilante quanto impulsiva. Já uma Corte
constitucional, distanciada dos ciclos eleitorais, trabalharia num ritmo que
fomenta uma opinião pública mais refletida e de longo prazo, baseada nos
valores e princípios da Constituição. O controle judicial serviria para conter
a taquicardia e volatilidade da opinião pública do primeiro tipo. Protegeria a
democracia, costuma-se dizer, contra os germes de sua autodestruição.
É por aí que se dá sentido a uma maquinaria
institucional que, bem ou mal, tenta traduzir na prática as várias facetas do
ideal de "governo do povo". E há nesse arranjo um detalhe
interessante: a Corte constitucional é não apenas a regente dessa opinião
pública mais densa, mas ao mesmo tempo é controlada por tal opinião. Pesquisas
feitas em várias democracias, das mais às menos estáveis, mostram que a capacidade
real de uma Corte controlar os outros Poderes tem correlação direta com o
capital político que essa mesma Corte acumula ao longo do tempo. Em outras
palavras, uma Corte que deixa corroer sua própria reputação gradualmente perde
força e se marginaliza no sistema político. Aqueles que se preocupam com o
velho dilema de "quem guarda o guardião" ou de "quem deveria ter
a última palavra", receosos do excessivo poder nas mãos de autoridades não
eleitas, encontram aqui uma potencial resposta.
Uma dose de Realpolitik, portanto, suscita
indagações relevantes sobre o momento por que passa o STF e sobre as
consequências que advêm de suas decisões em casos delicados assim. O STF, é
claro, não deve obediência ao que pensa a opinião pública da hora. Índices momentâneos
de popularidade não podem pautar sua atuação. Afinal, precisamos dele
justamente para que resista aos deslizes voluntariosos nos quais a opinião
pública cotidiana, às vezes, incorre. Esperamos que ele desconfie das maiorias.
Essa foi, ao menos, a aposta constitucional e o STF não economiza retórica para
reforçar esse seu papel.
Entretanto, há algo qualitativamente mais
complicado no caso presente. Aos poucos, vem-se formando uma opinião pública
menos apressada, que não cai na tentação reducionista de classificar qualquer
argumento do STF como mero disfarce de preferências políticas, como um jargão
gratuito que recorre ao juridiquês para encobrir uma realidade mais crua - o
suposto choque entre juízes corporativistas, de um lado, e republicanos, de outro.
Em vez de presumir o cinismo judicial, leva o STF a sério e quer dialogar por
meio dos termos e conceitos jurídicos em jogo. Tem tanta preocupação com a
Constituição quanto o STF. Informou-se, elaborou bons argumentos e pede ao
tribunal, em contrapartida, a mesma atitude, na mesma linguagem,
independentemente de sua posição final.
Esta não é uma opinião pública rasteira, fácil de
desqualificar. O STF precisa reagir à altura. Se não por respeito e
reciprocidade, ao menos como ato de prudência política. Infelizmente, ele tem
sido mais defensivo do que autocrítico. Fala bastante - nos jornais, nos
auditórios e nas suas pesadas decisões escritas -, mas pouco escuta.
Infantiliza as críticas que recebe, como se fossem feitas por leigos incapazes
de entender o argumento "técnico". São sinais de insegurança (ou de
excesso de autoconfiança). Entrar numa conversa mais horizontal, sincera e
desarmada com a opinião pública continua a ser seu maior desafio.
CONRADO HÜBNER MENDES É DOUTOR EM DIREITO PELA
UNIVERSIDADE DE EDIMBURGO (ESCÓCIA), DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA USP. É
AUTOR DO LIVRO 'DIREITOS FUNDAMENTAIS, SEPARAÇÃO DE PODERES E DELIBERAÇÃO'
(SARAIVA, 2011)
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