Os
grupos sedentários se organizarão na forma daquilo que estamos chamando de
sociedades segmentárias. A
diferenciação segmentária, que é como Luhmann chama essas sociedades, surge no
feito em que a sociedade se articula em sistemas parciais - em princípio
igualitários - que se formam reciprocamente em torno uns dos outros. Isto pressupõe,
de alguma maneira, a constituição de famílias. A família constitui uma unidade
artificial por cima das diferenças naturais de idade e sexo - incorporando
precisamente ditas diferenças. Antes de existir famílias, existe sociedade; é a
família a que se constitui como forma de diferenciação da sociedade e não o
contrário: a sociedade que se compõe de famílias.”
Nós
geralmente imaginamos que existem famílias historicamente antes da sociedade, e
a soma dessas famílias forma a sociedade. É essa a maneira ordinária, é essa a
maneira comum de analisar isso, quase um lugar comum, um senso comum que acaba
formando-se em torno dessa concepção. É intuitivo que pensemos dessa forma.
Antes de tudo existiam as famílias, depois elas vão se encontrando e se
sedentarizam e nós temos lá uma cidade, que vai formar uma sociedade
específica. Luhmann inverte isso. Ele vai dizer que historicamente não é isso
que acontece. Antes nós tínhamos a sociedade, que é esse grande grupo igualitário.
Eu usaria outra palavra: indiferenciado, indistinto. As diferenças que nós
éramos capazes de ver uns nos outros são as diferenças naturais, de idade, de
sexo. Elas são constitutivas, elas estão conosco, ela não dependem da nossa vontade,
pelo menos ate o século XXI. Esta diferença nasce com você. De resto,
socialmente, não há absolutamente nenhuma diferença.
As
sociedades segmentárias, que são aquelas que se sedentarizam, são aquelas em
que uma forma de diferenciação aparece. Esta diferenciação diz respeito à
palavra família, ao conceito de instituição familiar. Família vai aparecer como
elemento de distinção em relação à sociedade. Existe a sociedade e existe a
família. Eu me distingo da sociedade pelo pertencimento a uma família, e a
sociedade se diferencia de mim, aquele elemento que não pertence a minha
família se diferencia de mim e está na sociedade pelo mesmo motivo. É isto que
significa Luhmann dizer que isso pressupõe de alguma maneira a constituição da
família. A família constitui uma unidade artificial por cima das diferenças
naturais de idade e sexo que ela acaba incorporando. Se nós considerarmos a
família como elemento institucional que ao aparecer estabelece uma ruptura onde
antes tudo era idêntico, família de um lado, sociedade de outro, nós vamos
criar diferenças novas. Vamos dizer, independentes da diferença de idade e
sexo, que antes eram perceptíveis para nós, a diferença que socialmente agora
vale é se eu pertenço ou não a família. Não interessará mais para essa
sociedade, a princípio, a diferença de idade e sexo. O que vai interessar,
apesar de várias diferenças de idade e sexo, se aqueles membros fazem partes da
mesma família. Para dizer se fulano ou beltrano fazem parte da nossa família,
nós não vamos perguntar qual é o sexo, qual é a idade dele. Isto é
absolutamente indiferente para o pertencimento à família. Para nós, o que é
importante para o pertencimento à família é alguma ascendência comum, nós
podemos ter pessoas de várias idades e sexos diferentes dentro de um mesmo
grupo social chamado família. É a isto que Luhmann está se referindo.
A
família vai se constituir como uma diferença acima da idade e do sexo e que vai
incorporar a diferença idade-sexo dentro dela própria. Dentro da família ela
será importante (a distinção idade e sexo). Isto lá dentro da família, não na
sociedade, é que vai delimitar quem tem poder ali. Se são filhas, elas pertencem
a um tipo de obediência e de criação diferente do primogênito varão ou
diferente do patriarca. Dentro da família essa diferença faz algum sentido, é
incorporada, mas na sociedade ela não faz mais sentido. O que é importante na briga
entre Capuleto e Montecchio, de Romeu e Julieta, não é se Romeu é homem e
Julieta é mulher, é que um é Capuleto e o outro, Montecchio. Agora, dentro da
família, isso é importante - saber se ele é o homem, o mais jovem irmão ou mais
velho, e se ela é menina, se ela é mulher, e isso terá diferença naquela
família. Dentro dela, mas entre elas não faz sentido. Como numa dinastia: não interessa à dinastia
a diferença idade-sexo, uma pessoa não fará parte da dinastia por ter a idade “a”,
“y”, “z”, por pertencer ao sexo “a” ou “b”. É indiferente. O que Luhmann está
dizendo é que a sociedade segmentária é aquela que se caracteriza pela
diferenciação entre família e sociedade. É a primeira forma de organização
social que aparecerá na História – a diferença entre família e sociedade. E
família se constituirá pela diferença, então ela nasce e se diferencia da
sociedade, e não o contrário. Existia a sociedade e depois apareceram as
famílias, e não o contrário. As famílias
se diferenciarão da sociedade. E entre as famílias nós teríamos a reprodução
dessa diferença. Uma família em relação à outra é sociedade. Os membros dessa
família aqui, pra eles próprios são família, já a forma de relação entre uma
família e a outra é de sociedade.
Exemplifico
no filme. Existe um vínculo de obediência entre o Tonho, que é o personagem do
Rodrigo Santoro, em relação ao pai. Esse vínculo de obediência nasce de onde?
Nasce da família. Ele é filho de um patriarca. O menorzinho deve obediência a
ambos: deve obediência ao primogênito que tem um dever familiar e deve
dependência ao seu pai. Em nenhum momento do filme aparece a real possibilidade
de, legitimamente, qualquer um dos dois questionar e romper com o pai. O que
vai acontecer no final do filme está dentro de outra lógica. Logo no princípio
do filme, quando o filho mais novo resolve questionar a autoridade do pai, se
dirigindo diretamente ao irmão para pedir que ele não cumprisse o seu dever,
leva uma reprimenda, no caso, física (um tapa). Ele cai da mesa, quando ele
levanta, ninguém mais vai questionar. A mãe não questiona o filho ir
voluntariamente para a morte. Sabe que isso é uma desgraça, lamenta por isso,
mas o que tem que ser feito tem que ser feito. Agora, qual é a autoridade que o
Ferreira, pai da outra família, tem sobre qualquer um deles? Absolutamente
nenhuma, e vice-versa. Os Breves não têm nenhuma autoridade sobre os Ferreiras.
Os Breves veem os Ferreira como sociedade (aquilo que é estranho a mim), com
quem eu vou lidar com uma maneira diferente da qual eu lido com a minha
família. É isso que Luhmann quer dizer quando diz que estas famílias
formaram-se em torno umas das outras – elas são o entorno, elas são o ambiente,
elas são um universo diferente em relação à minha família. A outra família não
será uma família, ela será sempre sociedade, um universo indistinto cujas
regras eu não entendo e com a qual eu não conseguirei lidar. Há algum tipo de
ingerência aí. Isto é uma sociedade segmentária.
Isto
é diferente do que nós veremos na evolução dessa civilização, quando nas
sociedades gregas e romanas nós já vamos ter a ascendência da pólis, de uma autoridade que é superior
à autoridade de todas estas famílias e que pode determinar através de sua lei um
comportamento tanto para uma quanto para a outra. Mas até este momento isto não
existe, a única diferença em relação à sociedade é a própria família. Não há
cidade ainda, não há pólis, não há um
príncipe, não há um tirano. Existem famílias. E isso são as sociedades
segmentárias.
Eu
só consigo ver o outro como família se eu conseguir lidar com aquela família.
Não é que não haja capacidade deles entenderem que aquilo é uma outra família,
simplesmente não é esta a minha família, então eu não tenho como lidar com ela,
porque ela é uma diferença em relação a mim. O meu universo é este aqui, os
outros universos não me interessam porque eu não sei como lidar com ele.
Vou
dar um exemplo que vem de uma outra área, da tecnologia. Quando eu ouço um
determinado sinal de rádio, e ouço só ruídos, isto pode significar que o
aparelho não tem capacidade de decodificar aquilo que eu estou ouvindo, então
eu ouço só aquilo. Eu não tenho como entender, por isso aquilo é só ruído. Isto
não quer dizer que seja um ruído, pode significar que nós apenas não estamos
conseguindo traduzir. É a diferença: aquilo que eu não consigo traduzir, aquilo
que eu não consigo decodificar, é aquilo que eu não consigo entender (Heinz Von
Forster). Então qual é a única diferença que eu estou a entender aí? Eu sou
diferente, como nós em relação uns aos outros. Luhmann vai dizer que cada
indivíduo é um sistema psíquico fechado, hermético em relação ao outro. Nós
conseguimos perceber a diferença entre nós e os outros. Temos alguma forma de
lidar com essa diferença através da comunicação, mas eu jamais poderei entender
o outro como a mim mesmo. Então eu sempre vou chamá-lo de outro, eu não chamo o
outro de eu. Simples assim. Não chamo. Então vou dizer “eu sou igual ao outro,
pensamos igual, somos almas gêmeas”, mas és outro. Eu compreendo a diferença.
Meu “eu” vai se constituir em alguma coisa diferente A mesma coisa com a
família. Os Breves vão entender a si próprios como família. O resto é
sociedade. Eu não extermino a minha própria família, eu extermino a família do
outro, através de regras que essas duas famílias estabeleceram para isso. Eles
compreendem a diferença constitutiva entre família e sociedade. Eu entendo a
outra família diferente da minha, então não posso intitulá-la como
família. Desse ponto de vista, ela se
iguala a todas as outras.
É
porque não tem mais famílias no filme, mas vamos supor que nós tivéssemos os Breves
e mais 50 outras famílias, a forma de compreensão dos Breves em relação às
demais seria rigorosamente a mesma: nós somos família, os outros são sociedade.
É simples dessa forma. Eu não vou entendê-los como famílias, eu não tenho como
singularizá-los. Eu não vou entendê-los como família, eu não tenho como
obedecê-los e legitimá-los. Eu vou entendê-los somente como sociedade, sendo
todos iguais. A diferença de idade e sexo dentro da família ainda tem sentido,
então meu filho mais novo me obedece. Para a outra família não tem
absolutamente nenhum sentido, eu não posso mandar sobre o filho mais novo da
outra família. Então na sociedade é tudo igual, aqui é que vai ter diferença.
Não
há regras fora, só há regras dentro, por isso a diferença entre família e
sociedade. Na sociedade não há regras, na família há regras. Não há um Estado.
Esta condição, e por isso eu exibi o filme para vocês, é uma condição de
sociedade segmentária. Ou seja, não há um Estado, não há outra diferença que se
sobreponha à diferença segmentária por excelência, que é a diferença entre
família e sociedade. A família constitui-se a si própria como uma diferença.
Não há a pólis, não há um Estado que
vá se colocar como diferença em relação à família. É assim que as coisas são
definidas entre eles, a partir de regras que não são impostas, elas nascem
daquela condição de igualdade entre famílias.
As
famílias eram isoladas, as casas ficavam a quilômetros, dias de distância.
Aquelas famílias eram absolutamente isoladas. Não produziam em comum, não
regulavam umas as outras, não interagiam. Tinham a vingança como uma forma de
resolução de conflitos, mas só se consegue entender essa vingança se
considerarmos essas famílias como isoladas. Porque a vingança só pode ser uma
forma de resolução de conflitos entre grupos isolados, pois se os grupos vivem
numa situação de igualdade comunitária, a vingança não é adequada, porque as
formas de resolução de conflitos devem ser minimamente cooperativas. Eu não me
vingo, pois a vingança romperia os laços associativos. Como não há
cooperativismo aqui, mas há isolamento, é que a vingança se torna possível.
Então realmente estavam isoladas.
Cada
família tem a sua esfera de autonomia, cada uma é uma autarquia, ou seja, as
famílias são isoladas e regulam suas próprias ações, sobre elas, apenas. Por
isso “segmentárias”. Segmento é uma reta pontilhada. São várias, mas não há uma
continuidade, cada uma é uma. Elas estão todas colocadas próximas, mas cada uma
é uma, não há interação. Por isso segmento, pois há fracionamento. No filme, o
espaço da caatinga braba entre uma casa e outra, aquela brincadeira retórica de
se chamar aquele lugar de Riacho das Almas, é uma coisa que simbolicamente se
refere a essa visualização do isolamento. Não há nada entre uma casa e outra,
nem vida; nem a vegetação tem vida, a terra não tem vida, não tem água.
Visualmente, aquela geografia é a geografia do isolamento. Geograficamente,
aquilo é a representação simbólica do vazio. Esse vazio que procurará ser
completado pela criação da pólis. A pólis é essencialmente a instituição que
procurará ocupar esse vazio, inclusive territorialmente, vai dizer que não há
espaço que não seja regulado por ela, não há espaço que não se relacione com a pólis, não há espaço que fuja ao
alcance do tirano. Não há mais os espaços vazios, nem o mediterrâneo é um
espaço vazio. Os romanos o chamaram de mare
nostrum, assim como os árabes depois chamarão. Mas aqui não há nada disso,
há um vazio, há terra seca.
Nós
vamos estudar na próxima aula este instrumento de vingança privada como
primeira forma de regulação jurídica, a primeira expressão da norma jurídica, e
vamos entender como isto funciona dentro de uma sociedade segmentária. Nós
explicamos o contexto, vamos continuar trabalhando as imagens do Abril
Despedaçado. Portanto, para quem não assistiu, a recomendação veemente é que o
assista de maneira que possamos fazer com que estas aulas fortifiquem mais. Eu
vou trabalhar com estes elementos que são visualmente fortes e significativos.
Deste modo, encerramos a aula de hoje.
Interessante, claro. Uma dica/sugestão/provocação instigante: Quando terminar essa parte do histórico evolucional do papel da estabilização das expectativas através da tripla generalização nos vários tipos societais, seria interessante pedir aos monitores que fizessem um cotejo com o histórico paralelo que se encontra em Direito e Democracia, p. 36-47 da tradução brasileira, e na parte chamada "Parsons versus Weber", p. 94-112 da mesma tradução. Seria um cotejo interessante de ponto de vista funcional externo e simbólico interno sobre mais ou menos as mesmas transições. Abraço, meu amigo!
ResponderExcluirIncrível como depois de assitir suas aulas ,ler Luhmann fica fácil e agradável. Obrigada por criar o blog professor!
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