Paolo Cappellini*
1 Diritto comune (ius commune),
traduzido da língua italiana por Ricardo Sontag. Revisão: Arno Dal Ri Jr.
* Professor catedrático de
História do Direito Medieval e Moderno na Università degli studi di Firenze,
Itália
Publicado em Espaço Jurídico,
Joaçaba, v. 9, n. 1, p. 79-82, jan./jun. 2008
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A expressão direito comum é
corrente mesmo no direito moderno quando se fala de direito comum em oposição a
um direito singular, ou seja, quando há uma soma de normas jurídicas que têm
aplicabilidade para todos os sujeitos do ordenamento jurídico de um Estado (ou
mesmo vigentes, no que se refere a uma ou mais matérias, sobre o território do
Estado considerado como um todo, em contraposição a um direito local ou
particular), em que o outro, ao contrário, vale somente para certas pessoas, ou
para casos particulares, ou referindo-se, ainda, a matérias determinadas.
Mas uma determinação desse tipo
(entre outras coisas, não-unívocas, já que ganha precisão somente mediante seu
contraposto) do conceito de direito comum no direito moderno assim como outras
conceitualizações modernas (sistema legislativo ou hierarquia das fontes, por
exemplo) não são adequadas para a compreensão do conceito de direito comum no direito
intermédio, isto é, na experiência jurídica medieval.
Mais do que isso, revelam-se
deformadoras porque fazem com que se desconheça um dos seus elementos
fundamentais, isto é, o pluralismo jurídico. A premissa necessária para a sua
compreensão é liberar-se de “todo estatalismo latente”, depurar-se de qualquer
traço dos resíduos dogmáticos positivistas, reconhecer que se trata
fundamentalmente de um “direito sem Estado”, “um direito que vive e opera (ou
melhor, que pode viver e operar) para além dos poderes políticos e das suas
coações” (GROSSI).
Assim, é preciso, certamente,
excluir qualquer concepção, ainda corrente em parte da doutrina romanista, que
pretenda identificar as bases do direito comum em uma espécie de
desenvolvimento espontâneo que deriva continuamente do direito romano justinianeu.
Excluir, portanto, a equação direito romano = direito comum. Não será
considerada convincente nem mesmo a tese que vê no direito comum uma espécie de
fusão de toda uma série de “elementos constitutivos”, ora de caráter normativo,
ora de caráter científico (direito romano, direito longobardo-franco, direito
feudal, costumes, direito canônico, elaboração doutrinal).
Então, será necessário partir,
talvez, ainda que, para depois chegar a resultados parcialmente diferentes, de
uma feliz formulação de Francesco Calasso que falava do “direito comum como
fato espiritual”, ou seja, um direito [...] como sistema vivo de vida própria, animado
por um espírito próprio, rico de originalidade tal qual a época da qual foi uma
das maiores expressões, e não um vago e desfiado apêndice da história do
direito romano, mas mediação histórica (o que é algo muito diferente) entre o
antigo mundo do direito e o nosso.
Esse fato espiritual – como
assinalam duas expressões que o exprimem fazendo emergir a sua complexidade,
utrumque ius e unum ius – constitui-se sobre o pano de fundo da experiência
religiosa e político-jurídica medieval que aponta, necessária e indissoluvelmente,
a uma aspiração universalista, que se concretiza, todavia, no insuprimível
pluralismo que caracteriza a respublica christiana. Império (o Sacrum Imperium
para cuja renovação contribuem, a partir dos séculos IX e X, os Carolíngios, primeiro,
e depois os Otônios e os Suevos) e Papado são as instituições políticas e
religiosas de referência. E, já se observou oportunamente como: [...] a lenda
irneriana que atribuía a Lotário II a ordem dada à Irnério e à escola de
estudar o direito a partir dos livros justinianeus e aos juízes Imperiais de seguir
essas normas nos seus julgamentos, e ainda a notícia referida por Burcardo de Ursperga
segundo a qual Irnério teria renovado, em Bolonha, o estudo dos livros legais
‘ad petitionem Mathildae comitissae’, exprimem bem, de verdadeiro, tanto uma
como a outra, o grande interesse que império e papado deviam sentir por uma
vigorosa retomada dos estudos romanistas, a ponto de tomar dos textos da
compilação de Justiniano o direito universal das suas monarquias. A elegante
suposição de Fournier segundo a qual a exumação da “litera Pisana” das
Pandectas teria sido obra de clérigos e monges encarregados, ou pelo menos
encorajados, por Gregório VII de procurar nas bibliotecas os autênticos textos
das leis a fim de renovar o direito, e também as memórias do precioso
manuscrito que Zdekauer acreditou ter sido encontrado nos monastérios dos
territórios da Emilia-toscana no século XI, chamam bastante a atenção para o
mérito de que aquele reflorir do direito romano deve ser atribuído à fiel
depositária da cultura jurídica de Roma que foi, por séculos, a Igreja
(ERMINI).
Assim, invocando um anônimo poeta
do século XI, pode-se sintetizar a aspiração daquela época em realizar “um
mundo equânime pelas chaves de Pedro, honesto pelas virtudes da fé e
disciplinado totalmente pelas antigas leis de Roma” (“Sic fiet mundus sub Petri
clavibus aequus/ et virus fidei supprimet arma doli/ Legibus antiquis totus
reparatibur orbis”). Então, será não somente simbólico, mas testemunho real de
uma interpenetração, exemplificada pela relação humana e teológica entre corpo
e alma e, agostiniamente, entre cidades de Deus e civitas terrena, expressa no
sintagma do “direito comum” como direito romano-canônico (utrumque ius,
justamente), o paralelismo igualmente temporal, no século XII e sempre em
Bolonha, entre a obra decisiva do monge camaldolense Graciano e a de Irnério,
“fundador” da escola dos Glosadores.
O estudo bolonhês do direito, por
um lado, com o magister das artes liberais Irnério (falecido, talvez depois de
1125) e os “Quatro Doutores” (Martino, Bulgaro, Jacopo e Ugo), e depois a
maturidade da chamada escola dos glosadores até a Glosa Magna de Accursio
(1182-1259), consegue, então, sancionar a autonomia da ciência jurídica naquela
transferência que deveria representar um momento essencial da história do
direito europeu, oferecendo, igualmente, forte autonomia à casta dos juristas
que dará novo perfil às instituições políticas e à sociedade.
Um “milagre”, segundo Savigny, da
transferência completa da crítica metódica e das técnicas de “leitura”
interpretativa (a interpretatio) ao Digesto, entendido, porém, não modernamente
como um complexo de normas fechadas em um código, como um complexo de problemas
quase inexauríveis, como oportunidade para o exercício da força criativa da
nova casta.
Obra de modernização e
repensamento completamente dentro da sua época, como se testemunha também por
intermédio das ressistematizações medievais de edições glosadas que será,
depois, conhecida como Corpus iuris civilis (1. Digestum vetus = livro 1-24,
tit. 2 dos Digesta [ou Pandectas]; 2. Infortiatum = livro 24, tit. 3 – livro 38
[a parte final que inicia na metade em D.35.2.82 e se chama Três Partes]; 3.
Digestum novum = livros 39-50; 4. o Codex [que no uso lingüístico medieval
indica os primeiros nove livros do código]; 5. o Volumen [parvum] = os últimos
três livros do código [três livros], as Novelas glosadas e as Instituições),
que estará, sucessivamente, também, na base do trabalho da escola dos
Comentadores, de Cino de Pistóia (1270-1336) a Bártolo de Saxoferrato
(1314-1357) e Baldo de Ubaldi (1327-1400) e, ainda, o epílogo com Paulo de Castro
(morto em 1441), ressistematização produzida com o tempo e que, por força das
suas exigências específicas, chega ao ponto de inserir o “tesouro” do direito
consuetudinário feudal (o chamado Libri feudorum) em apêndice ao próprio Corpus
iuris civilis como matéria digna do estudo científico.
Por outro lado, quase
contemporaneamente, como mencionado, começaram a ser dadas as lições de direito
canônico, fundando-se praticamente na mesma estrutura organizacional. Toma-se,
inicialmente, como fonte, a coletânea privada organizada pelo monge Graciano em
Bolonha, em torno de 1140 que, metodicamente, procedia por “princípios,
fatispécies e pontos de vista problemáticos” (“distinctiones, causae,
quaestiones”), no passo dos Pais da igreja e coletâneas precedentes de atos
normativos da Igreja (cânones) e que levava o título icástico de Concordantia
discordantium canonum (praticamente assinalando a necessidade, para além da
aparente contradição entre os textos, da intervenção dos juristas, dominando-os,
coordenando-os e resolvendo-os com o uso do método escolástico). Essa obra, que
se tornou célebre como Decretum Gratiani, torna-se a base da ciência
canonística, paralela a do ius civile dos glosadores e comentadores, e ainda
constitui aquilo que, junto com três outras coletâneas de decretos papais que
lhe sucederam (o Liber extra de 1234, o Liber sextus de 1298 e as Clementinae
de 1314 à 1317), dessa vez oficiais, será chamado oficialmente de Corpus iuris
canonici.
Contudo, chegando nesse ponto,
seria errôneo supor que o direito comum constitui no seu momento de validade
formal (as leges romanas revitalizadas e restituídas a uma nova “validade” em
função do seu vínculo com o Império e com a vontade do Imperador ou com os atos
normativos papais), e que a obra dos juristas se reduz a uma espécie de mera
exegese dessas normas. A insistência calassiana em considerar o direito comum
como um “sistema legislativo”, falar do seu caráter essencialmente
“legislativo”, podendo ser compreendido quase como um complexo de “leis”, corre
o risco de ser deformadora (GROSSI) porque, baseado em teorias jurídicas
modernas, estranhas à civilização medieval da qual ele é, talvez, o maior
fenômeno, absolutizando o momento normativo da validade, perde de vista o
momento essencial que o tipifica: o papel e a atividade incessante da ciência
jurídica, a centralidade da communis opinio doctorum. Papel dinâmico e central,
exatamente. Em uma distante polêmica, esse fato já fora auroralmente evidenciado,
em que se sustentava que “[...] se nós indagamos o que haveria,
verdadeiramente, de comum na vida do direito no trabalho e fatigante curso dos
séculos durante a Idade Média, nós veremos imediatamente que foi a unidade do
pensamento científico [...]”, e chegava-se a arriscar até mesmo a seguinte
consideração: “Nós, por isso, que julgamos um fenômeno quando ele terminou
completamente de manifestar-se, podemos definir como ius commune ‘o conjunto
dos princípios, construções jurídicas e resoluções práticas, respectivamente
formuladas, criadas ou cogitadas pela doutrina’.” (BUSSI).
Mais recentemente, aprofundando
sobre bases mais sólidas o papel fundamental que assume para o pensamento jurídico
medieval a idéia de ordem (ordo), essa intuição resulta corroborada e é
possível argumentá-la, desenvolvendo-a em toda a amplitude do seu significado.
O direito comum se encarna e se
identifica na interpretatio. O que quer dizer duas coisas: que tem uma dimensão
essencialmente científica, é produto da ciência; que a ciência, enquanto interpretatio,
não o produz sozinha, fantasiando, mas elabora a partir dos fundamentos e presa
a um texto de autoridade. O direito comum se escande e combina-se sempre em
dois momentos incindíveis, o momento de validade representado pelo Corpus iuris
civilis e pelo Corpus iuris canonici, e o momento de efetividade, representado
pela construção doutrinal (e somente secundariamente judicial e notarial). A
ciência jurídica em questão não é pensável sem o texto a interpretar, mas o
texto não pode ser considerado senão como uma insubstituível referência formal.
Não esqueçamos que a interpretatio é declaração, mas também integração, correção,
modificação do texto, e que ela tem dois objetos diante de si: formalmente o
texto, substancialmente os fatos. Ela é, portanto, mediadora entre os dois.
Nestas vestes, é criativa e construtora de direito (GROSSI).
Uma criatividade que, alguns
glosadores do século XII galgam mais de um lampejo da concepção (“communitas et
unum quase corpus humanitatis”), que representa “[...] um dos maiores e mais
originais traços do medievo, a unidade espiritual do gênero humano [...]”,
especialmente nas reflexões sobre a Ecclesia e o Imperium como duas
qualificações, dois perfis de uma mesma idéia. Concepção de uma universitas do
humanum genus que encontrará, depois, em Bártolo a sua formulação madura: o
próprio mundo como “universitas” (quia mundus est universitas quaedam)
(CALASSO). Criatividade permeada de repensamentos originais e desenvolvimentos
paulinos e cristãos das teses corporativas romanas que contribuíram, provavelmente,
para transmitir ao mundo moderno, mediante a alegoria do corpo e da alma, [...]
um princípio que ainda hoje em muitas sociedades não se concretizou plenamente,
o da normatividade do direito. O direito era a alma, porque era a norma recte
vivendi, a norma da vida justa. O direito, como alma, governava a instância
corporativa, governava o corpo, fosse ele a Igreja ou um reino, um império e,
de fato, esta concepção medieval demonstraria que na alma, entendida nesse
sentido alegórico, poder-se-ia ver o precedente medieval da idéia de
Rechtsstaat, da supremacia do direito, da normatividade do direito. (ULLMANN). Isso
também graças a uma interpretação iurisconsulti authoritate.Em uma época, na
qual o direito comum já se encontrava na direção da aparentemente definitiva ruína
a qual o destinava a ascensão dos Estados soberanos modernos e da codificação,
depois que a antiga visão de uma relação entre direito comum e direitos particulares,
vinculada àquela idéia de unidade já em vias de dissolução, era substituída por
aquela entre direito natural e vários direitos civis, podendo o primeiro ser
aplicado somente como ratio scripta, R. J. Pothier se referia, talvez àquele
legado espiritual quando, todavia, avistava uma “communis gentium omnium in
Romanorum iura conspirato.”
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