terça-feira, 5 de março de 2013

PALAVRA, LINGUAGEM E SENTIDO


Hoje inicio uma série de postagens dedicadas a teoria da linguagem e hermenêutica, a partir de anotações transcritas das minhas aulas de Filosofia do Direito no Centro Universitário do Pará-CESUPA, no segundo semestre de 2012, e por isso possuem um tom denotadamente oral. A transcrição coube ao trabalho dedicado do querido amigo, meu monitor Diego Vale, a quem, renovadamente, agradeço.

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As palavras que nós utilizamos aqui, que são os conceitos-chave para entender uma filosofia da linguagem que observa o direito, são conceitos que utilizamos no nosso dia a dia. São palavras que utilizamos sem qualquer precisão, sem qualquer rigor terminológico. Utilizamos no cotidiano, mas isso não quer dizer que saibamos exatamente o que elas significam. É preciso, portanto, fazer as distinções cabíveis.

Palavra/Linguagem/Discurso

Palavra é a unidade de sentido. A menor unidade de sentido possível é a palavra. Nós não falamos nas células como as menores unidades que compõem o corpo humano? Não se falava dos átomos como as menores partículas de composição da matéria? No que diz respeito à linguagem, a menor unidade, o átomo ou a célula, é a palavra. Poderia-se perguntar: mas nós temos as sílabas, as letras..? Elas são unidades de som, unidades fonéticas, não de sentido. A menor unidade de sentido é a palavra – antes dela, nós não temos como encontrar sentido algum. Se pegarmos a palavra “palavra”, nós entendemos basicamente o que eu quero dizer, mas se eu dizer que falaremos hoje sobre “pa”, sobre “la”, ninguém entenderá, uma vez que não faz sentido. Hoje nós vamos falar sobre justiça. Eu precisarei esclarecer sobre o que eu vou dizer, mas ela já possui algum sentido prévio.
Linguagem. A linguagem é o conjunto de componentes que permite a relação entre as unidades de sentido (palavras). Componentes são palavras, regras, estruturas, que permitem relações entre unidades de sentido. A linguagem não é uma somatória das palavras que compõem a língua. Mesmo que eu some todas as palavras possíveis encontradas em dicionários da língua portuguesa, nós ainda assim não temos linguagem. Para haver linguagem é preciso que estas unidades sentido estejam inseridas em uma determinada forma de sentido. A linguagem cria lugares, estruturas onde as unidades de sentido podem acontecer.
Uma estrutura básica como sujeito, verbo, predicado (“o céu é azul”). Cada uma destas palavras é uma unidade de sentido, mas quando colocadas dentro de uma determinada estrutura, elas produzem um sentido comum que não é o sentido individual de cada uma dessas palavras. O sentido de cada uma destas palavras é diferente do conjunto de sentido que a frase formará, porque ao se definir o céu no dicionário eu não encontrarei a palavra “azul”, uma vez que o céu não é necessariamente azul e nem se define pela palavra azul. Na linguagem, nós obteremos um único sentido desta frase. O sentido é indicar alguma característica específica de algo. Encaixando as unidades em uma estrutura obteremos um de sentido ainda maior ou diferente do que o sentido das palavras separadamente. Não é o sentido de céu nem o sentido de azul, mas um terceiro sentido que isoladamente nenhum dos dois possui. O resultado da linguagem não é um aglomerado de sentido, mas um novo sentido. É o sentido diferente do das parcelas. É como se eu somasse ou misturasse dois elementos químicos distintos: cada qual tem sua especificidade, mas quando colocados dentro de uma mistura ele vai se tornar um elemento totalmente diferente. Nem um, nem outro, mas um terceiro.
Existe na linguagem elementos estruturantes que só farão sentido dentro da linguagem. Céu faz sentido por si só, azul faz sentido por si só. Mas e o artigo, o verbo? O verbo estabelece um tempo entre os significados e o tempo é exatamente a conexão entre o sujeito e o predicado. A estrutura da linguagem é tão importante ou até mais importante do que as próprias palavras, pois se declararmos por exemplo “o azul é céu” temos um grave problema de sentido.
O sentido da linguagem não é oriundo da menor das unidades de sentido. Na linguagem o sentido advém da estrutura, não das coisas, das palavras. Se eu mudo as palavras de lugar, isto é, a relação entre as palavras, eu mudo a maneira de entender as coisas. Antes de aprendermos o que são as coisas, temos que saber o lugar das coisas. O lugar produz sentido. A linguagem é que estabelece a ordem destes lugares, dessas relações, para produzir um sentido específico.
Antecipação: o processo funciona rigorosamente desta maneira. Nós temos um aprendizado de linguagem quando estudamos o processo, qualquer processo, civil, penal ou trabalhista. A sentença não é a petição inicial e nem a contestação. Ela é um sentido outro que decorre de uma série de combinações e relações entre esses sentidos individualizados. Mudar alguma coisa de lugar produz carência de sentido. Não há possibilidade de ali surgir um sentido que possa ser considerado válido. Há uma série de coisas que precisam acontecer antes da sentença.
De uma certa maneira, nós estamos falando da tentativa de entender o direito a partir desta forma de construção de relações entre partes que visam a construir um sentido que envolva todas essas partes. É possível nós encararmos desta maneira a teoria dos direitos fundamentais, por exemplo. Um discurso específico de fundamentação que precisa seguir algumas características fundamentais para ser capaz de produzir algum sentido. Agora, se ele segue ou não estas características em regra é algo que não conseguimos avaliar direito, porque não conhecemos a filosofia da linguagem. Quais são essas características, estes requisitos, estas regras? Nós não nos preocupamos em pensar as regras da língua portuguesa ao falar porque nós automatizamos isto. Mas isto não significa que por não perceber, não exista. Isto é um sinal de que a nossa capacidade crítica ainda precisa ser exercitada para com este objeto.
A linguagem é a estrutura, a forma em que nós estabelecemos as relações entre unidades de sentido. A semântica faz parte da linguagem, a gramática faz parte da linguagem.
Discurso. O discurso é a pragmática do sentido. É a ação da linguagem. Imaginem o quanto seria estranho alguém entender absolutamente tudo da gramática da língua portuguesa e não se comunicar. De que adianta conhecer as palavras, as regras da linguagem, as relações entre as palavras e não se comunicar? Não falar, não escrever, não gesticular... A ação da linguagem no mundo se faz através do discurso. Imaginem uma sentença, um exemplo extremamente intenso disto. Ela não é um conjunto de sentidos isolados, e também não é uma regra gramatical ou semântica das palavras que estão ali. Ela é uma forma de ação no mundo. “Absolvo” ou “condeno” são ações e tanto são ações que provocam reações. O que todos estamos esperando de um julgamento como o mensalão são palavras desta natureza. Não estamos observando ali o funcionamento da linguagem simplesmente, o quanto os juízes conhecem as regras da linguagem ou o sentido intrínseco das palavras per se. Nós estamos esperando o discurso: tudo isto articulado de uma tal maneira que isto possa representar uma ação no mundo. Estes resultados podem ser transformadores para a história de um país. São simples palavras? As palavras podem ser tudo. Nunca diga pras palavras que elas são simples, pois elas nunca são. Pra absolver ou condenar há uma série de discursos subjacentes.
De alguma forma ela é, portanto, ao mesmo tempo a nossa prisão e a nossa condição de liberdade, pois não temos como ser livres sem o exercício da palavra. Perder a capacidade manipulação da linguagem é uma prisão para o homem, pois é um total impedimento ao acesso do sujeito ao mundo. A imagem aqui é a do escafandro. Perder a capacidade de ação da linguagem é como estar preso dentro de um escafandro, pois ela é condição de nossa liberdade. Nós não conseguimos agir no mundo sem ela, não conseguimos sequer pensar sem ela, mas ela é também a nossa única via de acesso ao mundo. Ela não nos diminui, pelo contrário, ela nos acrescenta, ela nos liberta. O exemplo é d’O Escafandro e a Borboleta.
Conclusão: o sentido, portanto, é, de alguma maneira, circunscrito pelos limites da linguagem. Não há possibilidade de produção de sentido fora da linguagem. A linguagem circunscreve as possibilidades de sentido da palavra e do discurso.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

COLÓQUIO SHAKESPEARE NA FGV/SP



Para que quem não esteve nesse excelente evento, possa assistir as palestras instigantes.



Evento Completo:

Parte 1 - Abertura - http://youtu.be/WHUeHWdRX7s
Parte 2 - Arthur Marotti
Parte 3 - José Reinaldo Lopes - http://youtu.be/Ym0H0Zsfdss
Parte 4 - Mesa de Debates, O Teatro da Política - http://youtu.be/_OkKAfP8eJE
Parte 5 - Workshop Com Alunos - http://youtu.be/8EzMcwD4GuA
Parte 6 - Rebecca Lemon - http://youtu.be/bgZeM_xa1EM
Parte 7 - Ronaldo Porto Macedo Jr. - http://youtu.be/pS9Z7SiIlVw
Parte 8 - Mesa de Debates, A Política do Teatro - http://youtu.be/1gdUcjI8orw

terça-feira, 2 de outubro de 2012

O direito como texto

Resumo do livro "O direito como texto", de Gregório Robles, ed. Manole, elaborado como material de apoio da disciplina Filosofia do Direito pelo monitor Diego Vale.
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O DIREITO COMO TEXTO
           
Esta primeira parte é dedicada a explicar o que se deve entender por texto, ressaltando os aspectos distintivos das diversas espécies de texto existentes, até finalmente chegar ao texto jurídico na segunda parte. A terceira e última parte é dedicada às observações dirigidas ao conceito de decisão.
“Quando dizemos que o direito é texto, com esse é podemos querer dizer muitas coisas. Podemos querer dizer, em primeiro lugar, que o direito se manifesta ou aparece como texto. Também podemos querer dizer que ser texto constitui a essência do direito. E, ainda, que o direito existe como texto, e que não existe se não for assim” (Página 20).
“quando digo que o direito é texto, quero dizer que o direito aparece ou se manifesta como texto, sua essência é ser texto, e sua existência real é igual à existência real de um texto” (Página 21).
O que é o texto? Primeiramente, temos a hipótese mais evidente e intuitiva: o texto escrito, como uma carta, um livro ou uma lei. Mas a linguagem oral também é texto. Uma oração, um discurso ou a pronúncia de uma sentença também são textos porque podem ser transcritos. Poder ser verbalizado é uma característica do texto. Mas não apenas isto – um aperto de mãos, um aceno, os sinais e os símbolos também são texto na medida em que nos dizem alguma coisa. Assim, o semáforo verde me diz que eu posso seguir, mas para me dizer “prossiga”, isto é, para que eu possa entender seu significado, é preciso haver subjacente a ele uma estrutura linguística. É preciso dominar o segredo do símbolo para compreendê-lo, e para dominá-lo se faz necessário transcrevê-lo segundo as regras da língua portuguesa, por exemplo.
Também acontece assim com a arte. “Mas não se pode negar que a obra artística é texto e que também é necessário dominar o segredo de seus símbolos para compreendê-la, ou pelo menos (porque nem sempre estamos seguros disso) para experimentar subjetivamente como mensagem o que nela se representa. A obra artística é símbolo decifrável como mensagem estética à humanidade. É tanto mais universal quanto mais chega ao próprio humano, quanto mais se aprofunda na universalidade a partir do objeto concreto que representa” (Página 22). Galilei afirmava que a própria natureza é um grande livro escrito em linguagem matemática. Dessa maneira, o mundo natural se transforma também em texto na medida em que o compreendemos. A física também é uma interpretação humana da realidade que nos cerca.
“Obra é aquilo que realiza um sujeito capaz de realizar ações. Portanto, uma filosofia da obra nos conduz diretamente a uma filosofia da ação” (Página 23).
            Uma obra é um universo fechado, um todo dotado de sentido próprio. Os múltiplos elementos da obra, isto é, sua diversidade, atuam como partes integrantes, integrando-se uns aos outros em uma totalidade de sentido. A obra, seja ou não literária, após criada, adquire um sentido independente de seu criador. Neste sentido, Dom Quixote tem uma vida própria em relação a Cervantes. Isto significa que ela vive como uma totalidade dotada de sentido que tem uma história própria, não se confundindo com a biografia do autor. “A história de uma obra é, essencialmente, a história das interpretações que o meio humano em que vive lhe vai atribuindo ao longo do tempo” (Página 23). Este é o conceito de história efeitual presente na obra de Gadamer. Para entender uma obra nos dias de hoje, não basta lê-la diretamente, entrando em contato com a sua literalidade. É preciso também conhecer e assimilar a história das interpretações produzidas desde sua publicação até os nossos dias, porque ela possui uma existência histórica. “A existência histórica da obra, sua história efeitual, é composta de vários elementos, mas entre eles se destaca a exegese dos críticos literários” (Página 24). É requisito para a compreensão correta da obra penetrar em sua história crítica.
            O texto ou obra literária se diferencia da obra histórica na medida em que é característica da primeira a verossimilhança, enquanto que a razão de ser do texto histórico é contar a verdade. Uma novela não narra necessariamente algo que aconteceu, mas sim algo que tenha possibilidade de ocorrer, e desse modo ela estabelece certa relação com a verdade, se comparada com o conto, por exemplo, que contém elementos fantasiosos (animais que falam, montanhas que se movem, criaturas inexistentes). A relação entre a novela e a verdade é, portanto, de possibilidade. Por outro lado, o texto histórico falha caso não consiga relatar a verdade, isto é, se não tiver qualquer adequação àquilo que realmente aconteceu. O interessante é saber que não há outra maneira de demonstrar a inadequação de um texto histórico a não ser escrevendo uma nova história. É da natureza do conhecimento histórico exigir a interpretação, uma vez que os documentos ou testemunhos não falam por si mesmos – Marc Bloch diria que eles só falam quando interrogados pelo historiador. Quer dizer que os fatos históricos estão aí, mas as ligações que se estabelecem entre eles e o sentido subjacente a eles só podem ser obtidos com uma interpretação. Isto significa que:
“Toda história contém, ainda que escondida, uma filosofia da história, uma maneira de ver o decurso conjunto dos acontecimentos e personagens, estruturas sociais e mentalidades ideológicas, ao longo do tempo. No fundo, todo trabalho histórico (e, portanto, todo texto histórico) supõe, por mais inconsciente que seja, uma concepção da história universal” (Página 26).

            Entender um pouco da Bíblia e em seguida tratar de suas relações, diferenças e semelhanças com relação a um texto jurídico pode ser de ajuda para compreender um conceito do autor chamado de função ou prioridade pragmática. Para saber que tipo de texto é a Bíblia, é preciso adotar um de dois possíveis pontos de vista: um externo e um interno. O externo é o do não crente, do historiador, do observador literário, e segundo este ponto de vista, a Bíblia é, ao mesmo tempo, um texto literário, pois está escrito em estilos literários variados, como a narração épica e a manifestação lírica, um texto histórico, pois relata acontecimentos do passado, isto é, a história de um povo, e um texto profético, na medida em que se projeta a todo momento para o futuro. Por outro lado:
“A partir do ponto de vista interno, para o fiel ou crente, a Bíblia é a palavra de Deus. Não é, preponderantemente, nem literatura, nem história, nem profecia pura e simples. É a revelação de Deus aos homens com um duplo objetivo: que estes conheçam a verdade e que direcionem suas vidas de acordo com os mandamentos e conselhos registrados no Livro. É da essência interna das Sagradas Escrituras ser mensagem dirigida por Deus aos homens através de determinados intermediário humanos. Os aspectos externos de gênero literário, caracteres históricosa etc., permanecem num segundo plano em relação ao centro nuclear, que é a mensagem” (Página 26).
           
Ao contrário do que se pode ver do ponto de vista externo, para o crente a comunicação da revelação divina é revestida de um caráter prático. Para o crente, o mais importante da Bíblia não é o seu estilo literário, nem a verdade científica que o texto revelaria, mas sim o comprometimento oriundo de uma atitude de fé para com a mensagem e a revelação divinas. Outro aspecto interessante do texto bíblico é que, muito embora ele constitua uma obra fechada, ainda assim o livro possui uma história efeitual, isto é, uma tradição de interpretações que se identifica com a história da Igreja e das comunidades crentes.

A FUNÇÃO PRAGMÁTICA DO TEXTO JURÍDICO

Quanto ao texto jurídico:
“Ao contrário da novela e da história, o texto jurídico não é um texto narrativo, mas prescritivo. Neste aspecto, é parcialmente parecido com o texto bíblico, pois neste também se manifesta a verdade. Mediante o texto jurídico, o grupo humano (imaginando-se um Estado modelo) se constitui e se revela, comunicando-se com os membros para exigir-lhes organização e condutas” (Página 28).
           
            Dizer que o texto jurídico é prescritivo é afirmar que ele possui uma função pragmática específica cujo sentido é dirigir, orientar ou regular as ações humanas. Assim:
“A função prescritiva é relativa à ação, que assim adquire valor de categoria central na teoria do direito. Ao dizer que o texto jurídico é prescritivo, afirmamos exatamente que todo ele adquire seu sentido na relação com a ação. Portanto, o texto jurídico é um texto prático, e não teórico. É por isto, por exemplo, que o texto jurídico não contém definições, que por sua própria natureza pertencem à função teórica da linguagem” (Página 30).

Outra implicação é que o “próprio texto cria as ações que podem ser qualificadas como jurídicas, e o fato de regular a ação não significa que a ação jurídica existia antes do texto, mas sim que é o texto que a constitui” (Página 29). O exemplo é do homicídio: sem dúvidas que matar alguém é uma ação que existe independentemente do texto jurídico, mas a ação jurídica do homicídio só existe em razão da preexistência do texto jurídico. A visão do senso comum sendo a qual a ação de matar alguém preexistiria à regulação normativa não se adéqua à característica essencial do direito que é ser um âmbito ôntico-prático de caráter constitutivo-regulador (Página 36). Não existe homicídio antes da norma, pois o direito não se limita a regular ações, mas ele também, com prioridade, constitui ações. O carrasco numa execução, um soldado em guerra, ou a polícia diante de uma ameaça grave também cometem a ação física de matar alguém, mas nem por isso consideramos que eles cometeram o crime de homicídio. Como é que isto acontece?
“A solução deste aparente paradoxo está em que a ação não é apenas um movimento físico ou psíquico-físico, não é um acontecer meramente factual, mas um significado, um sentido. A ação é o sentido que um determinado movimento psíquico-físico tem” (Página 36).

            É por isso que o mesmo movimento físico (“matar alguém”) pode ter vários significados. A ação nunca é algo por si mesmo evidente, que precisamos apenas contemplar ou passivamente observar para sabermos o que ela é. Toda ação adquire seu sentido de um contexto situacional e de um discurso comunicacional nos quais está inserido. Em última análise, toda ação é passível de ser transformada em texto, e por isso é preciso interpretar o movimento psíquico-físico para sabermos do que se trata – se é homicídio, se é legítima defesa, se é estrito cumprimento de dever legal, etc. Segue a descrição detalhada do autor:
”A definição concreta de cada hipótese será produto de um processo de leitura ou de interpretação da ação meramente naturalista a partir do discurso de referência, que é do texto jurídico total. Esta operação é denominada subsunção, na terminologia jurídica, pois sua essência consiste exatamente em subsumir ou encaixar uma ação concreta na ação contemplada no texto. Para subsumir é preciso interpretar, pela perspectiva do discurso do texto em que se contempla genericamente a ação, os movimentos que ocorreram na realidade; e é nessa ida e volta do olhar entre a ação realizada de fato e a ação contemplada no texto que consiste o mecanismo intelectual que configura a subsunção. Não obstante, para realizar essa operação é imprescindível que a ação concreta seja também tratada como um texto, ou seja, como um conjunto de movimentos dotado de significado; e, como todo texto, deve ser suscetível de interpretação e de compreensão. Ocorre apenas que essa interpretação da ação concreta não se verifica de maneira isolada e independente, mas a partir do texto jurídico já constituído, à luz do qual se pretende comprovar se a ação concreta se ajusta ou não à ação regulada” (Página 38).

            A função pragmática da prescrição permeia todo o conjunto do texto jurídico, de modo a não haver elementos estranhos a essa função. Diz respeito à maneira como se lê o texto. É a isto que se denomina princípio da prioridade pragmática.
“Assim como na novela tudo é narrativo, ainda que nela apareçam elementos que, isoladamente, não o seriam (por exemplo, uma ordem, um conselho), e assim como na Sagrada Escritura tudo é mensagem revelada (e é neste contexto de mensagem que se deve entender cada um de seus elementos, e não, por exemplo, como teorias científicas sobre o universo), no texto jurídico tudo é prescritivo ou regulador. Isso porque a natureza dos elementos é determinada pela natureza do conjunto. Por tal motivo, o direito não pode ser considerado como uma soma de elementos, chamados de normas ou de qualquer outra maneira (instruções etc.); em realidade, o todo, aquilo que habitualmente se denomina ordenamento jurídico, é o conceito prioritário e prévio no qual os elementos particulares adquirem sentido. Por isso, ainda que o legislador acredite estar narrando, fabulando, teorizando, definindo etc., o que efetivamente está fazendo é prescrever. Uma definição num texto legal não é uma definição, mas uma prescrição que determina, por exemplo, a maneira de compreender uma palavra no âmbito dos significados do ordenamento. Perder de vista esta ideia significa esquecer o caráter de totalidade de significado que é inerente ao ordenamento jurídico” (Páginas 29-30).
            O primeiro exemplo que o autor usa para esta explicação é o de Dom Quixote. Mesmo que apareça na narração uma ordem dada por um personagem a outro, ela nunca terá função prescritiva, na medida em que a ordem só pode ser plenamente compreendida quando nos damos conta de que ela é uma narração de uma ordem dada de um personagem fictício a outro e não uma ordem tão simplesmente. O segundo exemplo é o de um artigo do Código Civil que diz o que é a compra e venda.
O verbo é que aparece no artigo do código (“a compra e venda é...”) está dotado de uma força pragmática muito diferente do é da frase isoladamente considerada ou que aparece num contexto narrativo. Numa novela não encontramos ordens, mas narrações fictícias de ordens. No texto bíblico não encontramos teorias, mas mensagens para ordenar a vida. Num texto jurídico não encontramos definições ou narrações, mas apenas prescrições de definições ou narrações. O princípio de prioridade pragmática é, portanto, um princípio ontológico do texto” (Página 32).

Assim, se não se compreende que Dom Quixote é uma novela de cavalarias, e não um texto histórico, pode-se passar pelo engano de acreditar que a ordem de um dos personagens dada a outro é uma ordem que historicamente ocorreu. Da mesma maneira, se não se compreende que o artigo do código civil não quer apenas narrar o que seja a compra e venda e sim prescrever um sentido a ser obedecido por seus intérpretes, não se compreende nada. Em outras palavras, é preciso saber qual a função pragmática do texto para em seguida compreender seu sentido.


DECISÃO

O mundo jurídico também possui um ato criador próprio, um fiat jus, que é a constituição. Todo ordenamento jurídico é um texto escrito ou pelo menos passível de transcrição, como acontece com o direito consuetudinário. O texto jurídico não é uma obra, isto é, não é uma totalidade de sentido fechada em si mesma, mas sim um texto aberto. A abertura significa que o texto está sempre sendo criado e recriado com o tempo. Com isso ele nunca está definitivamente terminado e sim permanentemente em transformação.
“Ao contrário de outros tipos de texto que mencionamos, o texto jurídico é sempre um texto aberto, que vai sendo paulatinamente criado e recriado mediante decisões concretas. Cada decisão produz um novo texto, que se incorpora ao já existente, renovando dia a dia o ordenamento jurídico” (Página 32).

Por isso a decisão é uma das características essenciais do texto jurídico. O núcleo fundamental do texto jurídico é, portanto, uma teoria da decisão. Desse modo, é preciso entender melhor o que é uma decisão. Toda decisão é uma ação, isto é, a ação de decidir, e por isto toda teoria da decisão caminha de mãos dadas com uma teoria da ação[1]. A decisão deveria ocupar um lugar de destaque na teoria direito, uma vez que o direito só adquire sentido enquanto texto que dirige as ações humanas. É uma negligência da teoria do direito não dar o tratamento conceitual necessário à decisão como origem dos elementos constituintes do direito, pois todas as normas têm origem em atos de fala especiais que são as decisões. A decisão constituinte é um ato de fala que cria um novo ordenamento, do qual a constituição é o resultado, da mesma maneira que, na Bíblia, o universo é resultado do fiat divino. A constituição prescreve as condições necessárias para a produção de novas decisões e, por conseguinte, para a inserção de novos textos dentro da totalidade textual que é o ordenamento jurídico.
Para entender o sentido da ação no texto jurídico, o autor explica as relações, particularidades e semelhanças entre o direito, o teatro e o jogo, de maneira similar à que procedeu na comparação entre os textos jurídicos, bíblico, históricos e literários. Pois bem: de que maneira o teatro, o jogo e o direito se relacionam com a ação?
            A obra teatral é um texto fechado que se limita a expor a ação. Cada ator “veste” uma máscara (que no antigo teatro grego era denominada de persona), isto é, representa um papel, interpretando um personagem. Por ser uma arte interpretativa, o texto teatral se atualiza a cada apresentação da peça – a ação que está no texto pode ter diversas representações no palco. Por fim, a obra teatral provoca a suspensão da vida real, isto é, abre um parênteses em relação a ela. Quer dizer que nada do que acontece ali no palco está acontecendo de verdade, muito embora seja perfeitamente possível de acontecer (isto é, possa ser imaginado como real), e os espectadores todos devem saber disto, sob pena de não compreender o espetáculo.
            O jogo, por sua vez, é também um texto fechado, mesmo que possa haver jogos abertos, isto é, jogos cujas regras ou possibilidades de jogada são criadas pelos jogadores no decorrer da partida. No jogo, simplesmente se joga, não havendo representação ou colocação da ação. Não se pode conceber a ação de jogar sem uma referência à anterioridade das regras do jogo e, neste sentido, o jogo é o conjunto de suas próprias regras.
“Assim, por mais interessantes que possam ser as explicações a respeito do mundo do jogo, nunca poderemos transmitir a nosso interlocutor aquilo que o jogo é através de um simples relato sobre esse conjunto de relações externas, pois o que o jogo é se limita ao conjunto de suas regras” (Página 42).
            As regras são necessariamente pré-existentes à ação de jogar e, por isso, o texto do jogo é chamado de constitutivo-regulador, uma vez que não se limita apenas a regular as possibilidades do jogo, mas as cria ou constitui previamente. Tal qual o teatro, o jogo também se propõe a um rompimento da vida real e daí vem a etimologia da palavra diversão, que se origina de diverso e significa uma fuga da vida cotidiana, diária, rotineira... Mas o direito faz parte da vida de cada um de nós e não possui a capacidade nem o objetivo de nos distrair de nós mesmos.
“É por isso que o direito não é um jogo: o direito não supõe a ruptura com a vida real, pois é vida social real. Nossa vida pessoal está imersa em nossa vida social, sendo artificiosa a tentativa de separá-las (como fez o existencialismo, qualificando a primeira de autêntica e a segunda de inautêntica). A vida humana é biografia, e na biografia acontecem momentos de intimidade e momentos de socialização, numa unidade indivisível” (Página 42).
           
Por mais que direito e jogo se aproximem na medida em que são ambos textos constitutivo-reguladores, isto é, os dois põem a ação e não apenas a expõem, como faz o teatro, ainda assim o direito não é um jogo. Da mesma maneira que acontece com o jogo, não existe para o direito ação que não tenha sido previamente determinada por alguma norma. Pôr ou colocar a ação significa, portanto, criá-la mediante uma norma (Página 43). A ação existe desde que contemplada no texto, independentemente de ela acontecer ou não na vida real. A realização da ação é um a posteriori em relação ao texto jurídico.
            Enfim, uma observação muito importante, que vai de encontro aos modelos mais formalistas de teoria do direito:
“Não é da essência do direito estar vigente, porque, por exemplo, o direito romano não está vigente hoje, mas é direito. O ser do direito é ser texto, e não estar vigente ou implantado na realidade social, que é uma qualidade a posteriori e, por isso, eventual” (Página 44).


[1] Página 35. Aqui se estabelece visivelmente a ligação com a obra de Ricoeur.