terça-feira, 5 de março de 2013

PALAVRA, LINGUAGEM E SENTIDO


Hoje inicio uma série de postagens dedicadas a teoria da linguagem e hermenêutica, a partir de anotações transcritas das minhas aulas de Filosofia do Direito no Centro Universitário do Pará-CESUPA, no segundo semestre de 2012, e por isso possuem um tom denotadamente oral. A transcrição coube ao trabalho dedicado do querido amigo, meu monitor Diego Vale, a quem, renovadamente, agradeço.

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As palavras que nós utilizamos aqui, que são os conceitos-chave para entender uma filosofia da linguagem que observa o direito, são conceitos que utilizamos no nosso dia a dia. São palavras que utilizamos sem qualquer precisão, sem qualquer rigor terminológico. Utilizamos no cotidiano, mas isso não quer dizer que saibamos exatamente o que elas significam. É preciso, portanto, fazer as distinções cabíveis.

Palavra/Linguagem/Discurso

Palavra é a unidade de sentido. A menor unidade de sentido possível é a palavra. Nós não falamos nas células como as menores unidades que compõem o corpo humano? Não se falava dos átomos como as menores partículas de composição da matéria? No que diz respeito à linguagem, a menor unidade, o átomo ou a célula, é a palavra. Poderia-se perguntar: mas nós temos as sílabas, as letras..? Elas são unidades de som, unidades fonéticas, não de sentido. A menor unidade de sentido é a palavra – antes dela, nós não temos como encontrar sentido algum. Se pegarmos a palavra “palavra”, nós entendemos basicamente o que eu quero dizer, mas se eu dizer que falaremos hoje sobre “pa”, sobre “la”, ninguém entenderá, uma vez que não faz sentido. Hoje nós vamos falar sobre justiça. Eu precisarei esclarecer sobre o que eu vou dizer, mas ela já possui algum sentido prévio.
Linguagem. A linguagem é o conjunto de componentes que permite a relação entre as unidades de sentido (palavras). Componentes são palavras, regras, estruturas, que permitem relações entre unidades de sentido. A linguagem não é uma somatória das palavras que compõem a língua. Mesmo que eu some todas as palavras possíveis encontradas em dicionários da língua portuguesa, nós ainda assim não temos linguagem. Para haver linguagem é preciso que estas unidades sentido estejam inseridas em uma determinada forma de sentido. A linguagem cria lugares, estruturas onde as unidades de sentido podem acontecer.
Uma estrutura básica como sujeito, verbo, predicado (“o céu é azul”). Cada uma destas palavras é uma unidade de sentido, mas quando colocadas dentro de uma determinada estrutura, elas produzem um sentido comum que não é o sentido individual de cada uma dessas palavras. O sentido de cada uma destas palavras é diferente do conjunto de sentido que a frase formará, porque ao se definir o céu no dicionário eu não encontrarei a palavra “azul”, uma vez que o céu não é necessariamente azul e nem se define pela palavra azul. Na linguagem, nós obteremos um único sentido desta frase. O sentido é indicar alguma característica específica de algo. Encaixando as unidades em uma estrutura obteremos um de sentido ainda maior ou diferente do que o sentido das palavras separadamente. Não é o sentido de céu nem o sentido de azul, mas um terceiro sentido que isoladamente nenhum dos dois possui. O resultado da linguagem não é um aglomerado de sentido, mas um novo sentido. É o sentido diferente do das parcelas. É como se eu somasse ou misturasse dois elementos químicos distintos: cada qual tem sua especificidade, mas quando colocados dentro de uma mistura ele vai se tornar um elemento totalmente diferente. Nem um, nem outro, mas um terceiro.
Existe na linguagem elementos estruturantes que só farão sentido dentro da linguagem. Céu faz sentido por si só, azul faz sentido por si só. Mas e o artigo, o verbo? O verbo estabelece um tempo entre os significados e o tempo é exatamente a conexão entre o sujeito e o predicado. A estrutura da linguagem é tão importante ou até mais importante do que as próprias palavras, pois se declararmos por exemplo “o azul é céu” temos um grave problema de sentido.
O sentido da linguagem não é oriundo da menor das unidades de sentido. Na linguagem o sentido advém da estrutura, não das coisas, das palavras. Se eu mudo as palavras de lugar, isto é, a relação entre as palavras, eu mudo a maneira de entender as coisas. Antes de aprendermos o que são as coisas, temos que saber o lugar das coisas. O lugar produz sentido. A linguagem é que estabelece a ordem destes lugares, dessas relações, para produzir um sentido específico.
Antecipação: o processo funciona rigorosamente desta maneira. Nós temos um aprendizado de linguagem quando estudamos o processo, qualquer processo, civil, penal ou trabalhista. A sentença não é a petição inicial e nem a contestação. Ela é um sentido outro que decorre de uma série de combinações e relações entre esses sentidos individualizados. Mudar alguma coisa de lugar produz carência de sentido. Não há possibilidade de ali surgir um sentido que possa ser considerado válido. Há uma série de coisas que precisam acontecer antes da sentença.
De uma certa maneira, nós estamos falando da tentativa de entender o direito a partir desta forma de construção de relações entre partes que visam a construir um sentido que envolva todas essas partes. É possível nós encararmos desta maneira a teoria dos direitos fundamentais, por exemplo. Um discurso específico de fundamentação que precisa seguir algumas características fundamentais para ser capaz de produzir algum sentido. Agora, se ele segue ou não estas características em regra é algo que não conseguimos avaliar direito, porque não conhecemos a filosofia da linguagem. Quais são essas características, estes requisitos, estas regras? Nós não nos preocupamos em pensar as regras da língua portuguesa ao falar porque nós automatizamos isto. Mas isto não significa que por não perceber, não exista. Isto é um sinal de que a nossa capacidade crítica ainda precisa ser exercitada para com este objeto.
A linguagem é a estrutura, a forma em que nós estabelecemos as relações entre unidades de sentido. A semântica faz parte da linguagem, a gramática faz parte da linguagem.
Discurso. O discurso é a pragmática do sentido. É a ação da linguagem. Imaginem o quanto seria estranho alguém entender absolutamente tudo da gramática da língua portuguesa e não se comunicar. De que adianta conhecer as palavras, as regras da linguagem, as relações entre as palavras e não se comunicar? Não falar, não escrever, não gesticular... A ação da linguagem no mundo se faz através do discurso. Imaginem uma sentença, um exemplo extremamente intenso disto. Ela não é um conjunto de sentidos isolados, e também não é uma regra gramatical ou semântica das palavras que estão ali. Ela é uma forma de ação no mundo. “Absolvo” ou “condeno” são ações e tanto são ações que provocam reações. O que todos estamos esperando de um julgamento como o mensalão são palavras desta natureza. Não estamos observando ali o funcionamento da linguagem simplesmente, o quanto os juízes conhecem as regras da linguagem ou o sentido intrínseco das palavras per se. Nós estamos esperando o discurso: tudo isto articulado de uma tal maneira que isto possa representar uma ação no mundo. Estes resultados podem ser transformadores para a história de um país. São simples palavras? As palavras podem ser tudo. Nunca diga pras palavras que elas são simples, pois elas nunca são. Pra absolver ou condenar há uma série de discursos subjacentes.
De alguma forma ela é, portanto, ao mesmo tempo a nossa prisão e a nossa condição de liberdade, pois não temos como ser livres sem o exercício da palavra. Perder a capacidade manipulação da linguagem é uma prisão para o homem, pois é um total impedimento ao acesso do sujeito ao mundo. A imagem aqui é a do escafandro. Perder a capacidade de ação da linguagem é como estar preso dentro de um escafandro, pois ela é condição de nossa liberdade. Nós não conseguimos agir no mundo sem ela, não conseguimos sequer pensar sem ela, mas ela é também a nossa única via de acesso ao mundo. Ela não nos diminui, pelo contrário, ela nos acrescenta, ela nos liberta. O exemplo é d’O Escafandro e a Borboleta.
Conclusão: o sentido, portanto, é, de alguma maneira, circunscrito pelos limites da linguagem. Não há possibilidade de produção de sentido fora da linguagem. A linguagem circunscreve as possibilidades de sentido da palavra e do discurso.

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