Nestes poucos meses de blog ainda não havia postado nenhum texto específico sobre política e também, nenhum vídeo. Entretanto, assisti ainda a pouco, enviado por um amigo, esse discurso breve, mas contundente de denúncia em tom de desabafo e revolta da Dep. Estadual Cidinha Campos do Rio de Janeiro, proferido em meio a uma sessão da ALERJ. Há constangimento ao redor, risadas e escárnio que podemos presumir na atitude de vários dos deputados ao redor. Mas há sobretudo, uma ruptura nítida, ainda que em um momento pequeno, um certo torpor e tensão provocada pela desorientação, resultado daquilo que é inesperado, que sai diferente do que acontece todos os dias.
A fúria indignada da Deputada não deveria nos impressionar, mas impressiona. Porque os bons estão, em regra, calados.
Eu aplaudi interiormente as palavras incontidas da Deputada e fiquei imaginando como seria se em cada ambiente dessas Assembléias Estaduais, sempre tão silenciosas e penumbrosas para quem está de fora, vez por outra, se ouvisse um grito sincero de pudor. Bastaria isso, um verdadeiro pudor republicano que de tão raro, hoje nos parece estranho...
http://www.youtube.com/watch?v=q21rM03_R18
Deputada Cidinha Campos - ALERJ
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
Direito arcaico e transição para o direito das altas culturas
Resenha do Cap. 3 do livro "Sociologia do Direito", v.I, de Niklas Luhmann, realizada pelo monitor Diego Vale, a quem parabenizo pela leitura precisa do texto e por esta colaboração.
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O direito arcaico
A primeira ressalva importante que
Luhmann faz nesta parte do texto é que as categorias que ele exporá a seguir
não devem ser compreendidas em um sentido cronológico-objetivo.
Quer dizer que o desenvolvimento das sociedades não se dá em um mesmo momento e
que não nos encontramos totalmente distanciados daquele tipo segmentário de
diferenciação social. Sempre se afastando da ingênua noção de progresso,
Luhmann afirma que este princípio ainda permanece em boa parte das relações sociais
e algumas sociedades contemporâneas ainda podem ser classificadas como
segmentárias caso apresentem as características necessárias.
Desta maneira, aponta-se como
primeira característica das sociedades arcaicas uma estrutura fundamentada no
parentesco. Os critérios de organização destas sociedades sempre baseiam-se em
noções auto-evidentes, de simples
percepção, como, além do parentesco, o sexo ou a idade. Organizam-se sob o
binômio parente/não-parente, que faz com que elas apresentem complexidade
relativamente reduzida.
Neste sentido, as principais
características do direito arcaico seriam: a aplicação imediata do direito, sem
qualquer tipo de procedimento instrumental, o que gera pouca variação e alta
concretude nas resoluções dos conflitos; e a pobreza em alternativas. O direito
da tribo ou família é tido como o único possível em oposição aos outros
sistemas sociais. A concretude dos casos faz com que a vigência autônoma do
direito se torne desnecessária, além de não permitir a transferência de normas
para casos diferentes. O talismã (o formalismo) se limita a fazer referência ao
caso presente e não se amplia a situações análogas. Trata-se de um direito que
não faz nem referência ao passado, nem muito menos planeja o futuro, estatuindo
normas que servirão para futuros julgados.
Dessa
maneira, o desvio inovador é estruturalmente insuportável, pois a sua rejeição
é intuitivamente vista como imediata. É por isso que há baixa pressão seletiva
– ou baixa pressure to make selections
– e, logo, baixa complexidade.
Sobre
o formalismo é preciso atentar para alguns detalhes. A visão de mundo das
sociedades arcaicas não é restrita por causa das concepções sagradas e
tradicionais. A sacralização e a tradição “arcaicas” não podem ser a única
explicação para um direito também arcaico. Aliás, é mais verossímil a hipótese
inversa – que a ausência de alternativas provoque a sacralização. A deficiência
de acolhimento de novas possibilidades existiria mesmo sem o sagrado e este
surge como representação deste vazio em alternativas. Não são os referenciais
sagrados e tradicionais que determinam o direito, mas o contrário – eles são
símbolos da impossibilidade de mudança.
O ritualismo e o formalismo exercem
a função de transmissão dos elementos constantes do direito arcaico até o direito
das altas culturas. As concepções causais mágicas – isto é, o gesto ou a
palavra certa – acionavam o direito de maneira direta. Esta ativação, contudo,
não é vista de maneira mecânica, como na causalidade física (historicamente
posterior a estes arcaicos momentos). O gesto ou a palavra são vistos como
indissolúveis ao próprio fenômeno jurídico, como qualidades inerentes ao
próprio evento, de modo que se a expectativa não se cumpre, sua causa é
imputada a outras razões - aqui, a aparência é o próprio sentido. Este não se
diferencia da forma.
O próprio critério de vigência do
direito se baseia na estrutura social do parentesco. Luhmann aponta para
comprovações da pressão que concepções como o respeito e a obediência aos
antepassados exercem sobre as normas jurídicas.
Nesse sentido, a imposição das
normas jurídicas não tem tanta importância quanto a manutenção das próprias
expectativas (não seria possível conceber a criação de uma polícia para a
proteção do direito). É por isso que, no direito arcaico, cada ofendido é juiz
em sua própria causa, e o direito se confunde com a moral, com os costumes e
outros sistemas sociais. Sem a reação do atingido, não seria possível
diferenciar as expectativas que deveriam se acomodar às frustrações e aquelas
que deveriam ser mantidas.
Os
princípios de generalização congruente de expectativas comportamentais são
principalmente a represália e a reciprocidade – a primeira muito mais influente
que a segunda. São chamados por Luhmann de motivos
conceptuais, uma vez que, muito embora não houvesse uma concepção de
justiça prévia ao próprio direito, as concepções jurídicas posteriores sempre
lhe fazem referência. A represália clama pela concretização da situação certa –
pela vingança - independentemente do tempo, pois vinganças se perpetram através
das gerações. Por sua vez, a reciprocidade é o fundamento de instituições tais
como o dever de agradecimento, da dependência ao se aceitar favores e da
entrega obrigatória de excedentes. Trata-se de uma função de compensação de
necessidades.
O
Talião é a institucionalização da represália, limitador da abrangência da
vingança. O problema da falta de especificação dos deveres de reciprocidade,
contudo, acarreta no perigo da insolência (hybris,
noção grega) e conduz aos pontos de estagnação ou estrangulamento do direito
arcaico.
A transição para o direito das
altas culturas
O sistema jurídico acima descrito
torna-se particularmente problemático na medida em que alguns fatores dos
sistemas sociais passam por modificações em suas estruturas e por aumentos de
complexidade. As penas da vingança e do Talião passam a causar mais prejuízo do
que benefício à sociedade mesmo diante de suas limitações posteriormente
inseridas, da justificativa de sua gravidade embasada em explicações
sobrenaturais e da possibilidade de sua substituição por penas de natureza
menos grave.
A
flagrante violência do sistema ainda é bastante incômoda principalmente no
âmbito econômico. As mudanças advindas do desenvolvimento econômico e da
consequente passagem ao cultívo agrícola lançam olhares de reprovação à lógica
taliônica. A força imediata não faz mais tanto sentido para o camponês, que
pretende acumular riquezas, quanto para os caçadores. Este é apenas um exemplo
dentre muitos das modificações trazidas pela economia monetária, que inaugura
uma série de disputas jurídicas entre pessoas de diferentes classes sociais que
precisam ser solucionadas. Em substituição à vingança de sangue, um sistema de
composições, antes improvável, torna-se predominante.
Nas
sociedades arcaicas, os mecanismos jurídicos de resolução de conflitos
encontram-se vinculados a outros sistemas sociais (principalmente à religião,
mas também às famílias). Na passagem para as sociedades das altas culturas,
ocorre um fenômeno da autonomização do direito – ele se tornará gradualmente
especializado em apenas uma função. Como pressuposto desse fenômeno, é preciso
que surja um mecanismo social de diferenciação entre o status de pessoas e de grupos de pessoas, que conduzirá a uma forma
particular de dominação política.
Esta,
por sua vez, descola-se de uma fundamentação relacionada ao parentesco e também
autonomiza-se, tendo como base uma instância mágico-religiosa abstratamente
superior ao parentesco. Institui-se uma instância decisória nova, independente
das partes e capaz de se impor a elas ao exarar decisões vinculativas.
Como
auxiliar desse processo de concentração do poder decisório, é preciso citar o
ritualismo e o formalismo. Nesses mecanismos rígidos, diante dos quais uma
palavra ou gesto errado transforma a justiça imediatamente em injustiça,
deposita-se a função de resolver casos aparentemente insolúveis e, portanto, de
neutralizar as formas jurídicas frente aos papéis sociais. O formalismo, longe
de ser apenas um fenômeno irracional, tem o mérito de ser o principal fator de
autonomização do direito em relação aos outros sistemas sociais. Ele também
torna o direito capaz de ser transmitido através das gerações e o destaca das
estruturas de parentesco. Contudo, são imprescindíveis apenas na medida em que
cumprem esta função, tornando-se dispensáveis a partir de quando as estruturas
de dominação política já estiverem adequadamente configuradas.
Enfim,
Luhmann afirma que Max Weber estava certo quando supôs que a razão da
necessidade dessas mudanças jurídicas adveio de conflitos sobre propriedade, status, poder político e da economia
monetária que não podiam mais ser resolvidos nas formas antigas de resolução de
controvérsias.
O direito das altas culturas
Luhmann começa por afirmar que são
poucas as sociedades que atingem este estágio de desenvolvimento – e que,
dentre elas, apenas duas (o direito do continente europeu e o direito
anglo-saxão) serão capazes de preparar o campo para se chegar ao estágio
seguinte do processo de desenvolvimento. Surgem aqui centros funcionais, isto é, instituições com funções específicas,
como templos cuja função não é mais apenas interpretar fatos, mas a própria
religião ou mercados que distribuem suprimentos não mais apenas entre parentes.
No entanto, estes momentos são vistos pela vida cotidiana como situações
excepcionais, pois ainda subsistem as famílias e os modos tradicionais de
relacionamento social. Mais ou menos “escondidos” dos olhares das pessoas
comuns, estes centros funcionais apresentam um desempenho bastante superior em
suas respectivas funções: na obtenção e distribuição de alimento, no negócio e
na realização de trocas, etc.
É preciso ter como pressuposto desta
passagem a fundação da cidade, ou seja, a criação de uma unidade ou identidade superior
às aldeias ou famílias. A noção grega de polis
é muito cara a esta passagem, pois enxerga a ordem política não como apenas a
imposição de decisões, mas sim como a dominação independentemente das relações
de parentesco. Para isso, passa-se a enxergar o homem desvinculado de suas
condições de nascimento, como um ser humano nascido em uma situação ideal de
igualdade em relação a seus semelhantes. Desse modo, o parentesco não é mais a principal
estrutura social. Evidentemente, é necessária também a concentração da
realização de atividades específicas voltadas ao melhor desempenho de uma
função, de modo a possibilitar que outros homens exerçam em caráter exclusivo
(ou pelo menos majoritário) a função jurídica, por exemplo. Sem que houvesse
essa especialização funcional, mesmo que parcial, os homens ainda estariam
preocupados com a sua própria subsistência, voltando sua atenção para
atividades primárias como a caça e a coleta de alimentos. Todavia, com a
agricultura e o cultivo de alimentos em geral oriundos da sedentarização, os
homens dispõem de mais tempo para se dedicar a outros tipos de atividade, como
as de cunho jurídico. Esta configuração política e social é imprescindível ao
desenvolvimento do direito. É somente sobre este solo que poderá crescer um
novo direito – ele é a própria condição de possibilidade do florescimento de
culturas jurídicas que se baseiam em jogos linguísticos sobre conceitos
estritamente jurídicos.
A
dominação política não seria de qualquer forma possível se a estrutura social
permanecesse ainda sob a lógica do parentesco. A própria constituição desse
esquema de decisões vinculativas emanadas de um terceiro e do processo é uma
conquista evolutiva pouco provável – não é uma “unidade natural”, isto é, não
surgiu de maneira necessária e inevitável da evolução social. Mesmo não sendo
auto-evidente, ao fim de um longo e paulatino processo de maturação ele se
estabiliza no direito das altas culturas, tornando-se bem sucedido como unidade
emanadora de decisões vinculativas. Isto não seria pensável em uma sociedade
cuja estrutura se baseasse no parentesco: é só a partir de quando os homens
passam a se ver como semelhantes, unidos por um vínculo superior à família que
a centralização do poder se realiza. A continuidade da vida em comum torna-se
mais importante que o culto dos antepassados – a sociedade prevalece sobre as
unidades familiares.
É
dentro deste contexto social já consideravelmente complexo que aparece o
processo decisório de caráter exclusivamente jurídico. O procedimento judicial,
que surge a partir do momento em que as expectativas normativas do direito já
se encontram devidamente diferenciadas das outras expectativas, é uma conquista
evolutiva de maior importância para Luhmann. Como já visto, isto não seria
possível caso a dominação política não se encontrasse apropriadamente
desatrelada de outras funções sociais como o parentesco. A dominação política
não serve à função jurídica apenas por lhe dar a força física (a imposição).
Ela é relevante principalmente por proporcionar a autonomização do direito
através do processo. A incerteza do resultado da contenda, que substitui a
incerteza decorrente do duelo e do “julgamento divino” presentes nas formas
arcaicas de resolução de conflitos, é a essência do processo – o terceiro mais
poderoso que as partes deverá sempre ser imparcial e nunca cederá às pressões
externas (a colère publique de
Durkheim). Não menos relevantes, contudo, são a especialidade do processo ante
outros sistemas de interação e a neutralização do juiz – estes são mecanismos
processuais voltados a evitar a influência de fatores externos ou condições
pessoais (papéis sociais) sobre a decisão. Assim, para o autor, uma maneira de
medir o desenvolvimento de determinada sociedade é proceder à análise de seu
sistema processual. O processo é o termômetro do desenvolvimento social porque
pode-se medir a complexidade de uma determinada sociedade a partir da
concretização dos pressupostos processuais delineados acima.
O
curioso em meio a essa transição de concepções jurídico-morais subjetivas para
concepções objetivas exclusivamente jurídicas é que o juiz, em seu ofício, deve
se apresentar de forma imparcial e desinteressado e ao mesmo tempo sustentar as
expectativas de sua decisão. Somente quando a decisão assume por si só o papel
de direito é que essas noções morais ou dos costumes deverão ser abandonadas ou
excluídas do direito. É por essa razão que surgem conceitos jurídicos
notadamente mais técnicos e que nada ou muito pouco tem a ver com as noções
morais ou do senso comum. Cria-se uma cultura jurídica sem qualquer vínculo com
noções pré-jurídicas e uma linguagem de manuseio privativo dos iniciados na
arte do direito. Isto possibilita que o direito, em busca dos ideais de imparcialidade
do juiz, ignore as condições pessoais dos litigantes e do próprio juiz ao
propor suas decisões e se desatrele cada vez mais de noções concretas, podendo
atuar inclusive de maneira especulativa. A norma jurídica não deve mais reverência
aos fatos, podendo se ajustar a situações hipotéticas. Essa cultura jurídica denomina-se até os dias
de hoje de dogmática jurídica ou ciência do direito. Novamente, nada disso
seria possível em sociedades cujas necessidades primárias não estivessem muito
bem atendidas – se os homens estivessem sempre preocupados com suas refeições,
por exemplo.
Luhmann aponta como outra conquista
evolutiva a diferenciação hierárquica na sociedade, que pode ser explicada a
partir de uma abordagem da teoria dos corpos. Os povos incluídos neste grau de
desenvolvimento cultural possuem a noção de que a sociedade funciona tal como o
corpo humano. Assim como os seus órgãos, os indivíduos também possuiriam
diferentes funções, cada uma correspondente a um grau distinto de prestígio. No
entanto, esta ordem era vista como imutável, uma vez que, tal como no corpo
humano, se um dos órgãos – por mais reles que seja sua função – não exerce um
desempenho adequado, todo o conjunto estaria sujeito ao falecimento. Esta
diferenciação de papéis era vista com tanta seriedade que sequer faziam sentido
brincadeiras como pedir a um camponês que ele imaginasse o que faria se ele
fosse rei. Apesar disso, é impensável às estruturas dessas sociedades uma
multiplicidade de hierarquias simultâneas, de modo que quem dominava deveria
possuir ao mesmo tempo uma série de outras virtudes – deveria ser o mais rico
também, além de o mais sábio, etc.
Estas
são características fundamentais desta etapa do direito: a gradual abstração
faz com que o direito ultrapasse lógicas mais concretas como as oposições entre
bom e mal e permitido e proibido e utilize critérios mais específicos de
vigência do direito. O direito aqui afirma-se mais pela sua vigência, sua
validade – ou seja, por critérios criados por si mesmo – do que pela sua
eficácia, isto é, a resposta imediata à frustração. Ele passa existir a partir
de uma vigência contrafática, ideal e constante.
No
entanto, o direito não é visto, quer pelos juristas como pelos outros atores
sociais, como originário de ato opcional, de uma escolha. Muito embora as
contendas particulares possam ser resolvidas por um processo decisório, a
existência do direito como um todo não poderia ainda ser concebida como advinda
por si mesma de um processo decisório. Por isso, as bases do direito parecem
imutáveis, ainda mais quando devidamente institucionalizadas pela legislação,
mesmo que este tipo de sociedade comumente vislumbre possibilidades de
alteração. Graças à interação intensificada entre as diversas sociedades, é
possível visualizar o condicionamento histórico e social das instituições
jurídicas. Mesmo assumindo este ponto, ainda é impossível a estas culturas
compreender o direito como um fenômeno arbitrariamente concebido pelos poderes
políticos. A obediência do direito também ainda tem a ver com algo a mais do
que a mera vontade ou coerção.
É
assim que a própria ordem da natureza é compreendida em termos jurídico-morais.
Ser e dever-ser, expectativas cognitivas e normativas podem até se diferenciar,
mas sua fonte é a mesma – ambas as ordens das coisas são geradas pelo mesmo
criador -, e é por isso que há tanta relutância em aceitar o direito como
surgido de um processo decisório, legislativo ou não. Historicamente surgem as
idéias sobre o direito natural em oposição ao direito positivo, vigente. Sua
provável origem é encontrada nas aspirações de reforma das estruturas antigas
de poder e de distribuição de riquezas. Neste sentido o direito natural seria
anterior às ordens vigentes e constituiria o próprio critério de validade das
normas jurídicas. Uma norma jurídica válida não deve ainda assim ser obedecida
caso seja injusta. É daí que surgem algumas noções iluministas como a
desobediência civil: toda ordem do rei para ser obedecida tem que ser válida,
mas não só: deve também ser justa. Segundo Luhmann, a noção de justiça é
cunhada também a partir daqueles motivos
conceptuais da reciprocidade e da represália do direito arcaico, adaptados
de modo a corresponder às reivindicações de uma sociedade mais complexa. É
dessa forma que um princípio eminentemente moral se torna relevante para o
direito – se não fosse internalizado
pelo direito como pressuposto para a obediência permaneceria apenas uma virtude. O direito natural é, portanto,
um conjunto de noções sobre a justiça que subordina as ordens jurídicas positivas
de modo a adaptá-las de acordo com suas exigências.
Em
síntese, aqui a aplicação do direito é mediata: surge um procedimento de
decisão a ser realizado por um terceiro (que, portanto, não é mais parte). Essa
configuração exige como plano de fundo uma sociedade hierarquicamente dividida
e pressupõe uma espécie de dominação política concentrada. A partir disso, as
expectativas começam a se diferenciar – pois o resultado da contenda é sempre incerto -, mas ao mesmo tempo ainda são
vistas como necessárias, verdadeiras,
uma vez que ainda permanecem fortes resquícios de ritualismo e misticismo nos
procedimentos jurídicos.
O surgimento da escrita faz disparar
a capacidade de inovação, pois torna capaz uma maior possibilidade de
interpretações divergentes. A variação aqui é alta, bem maior do que no direito
arcaico, graças à escrita.
Contudo, o mecanismo problemático
desta espécie de direito é o da seleção: ainda existem problemas de acolhimento
das novas comunicações. O jusnaturalismo é uma concepção que surge para ao
mesmo tempo estagnar a capacidade de inovação das comunicações – pois o direito
existente está sempre subordinado a um direito superior e imutável -,
mas a distinção entre direito mutável e imutável serve como ponto de partida
para o funcionamento da próxima etapa da evolução do direito: o direito
positivo.
As características deste direito
são, portanto: a aplicação mediata do direito por um terceiro, juiz; variação ou inovação muito maior
do que a do direito arcaico; baixa seleção, tendo em vista a limitação na
capacidade de incorporação de expectativas que desapontam o sistema.
sábado, 1 de outubro de 2011
Morrinha e uma visão sobre a amazônia
Ao amigo Paulo Klautau Filho, a quem chamou atenção o tema, destaco parte do texto revisto sobre o curso "Hermenêutica do vazio- estudos a partir do romance "SAFRA", de Abguar Bastos", que estou preparando para publicação.
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Outros elementos vão se
adicionando a esses relatos de viagens: são elementos interessantes que
aparecem também em outra figura, anterior um pouco ao Alexandre Ferreira, e que
viveu durante bastante tempo aqui na região: esta figura foi o Padre Antônio
Vieira. Nos relatos – ainda não de viagem, mas nos sermões – de Vieira, um
elemento que é absolutamente reincidente e recorrente quando se fala da região
amazônica é também o elemento do vazio, é o elemento da submissão ao clima e à
natureza.
Só que aí, com outro foco, com
outro aspecto. O problema todo é o desafio civilizatório diante de uma natureza
tão poderosa e tão titânica, que força os habitantes a irem para uma outra
direção, completamente diferentes desta suposta direção civilizatória. Estou
querendo dizer o seguinte (esse é o elemento recuperado tempos depois na
literatura naturalista aqui na região, com Inglês de Souza, por exemplo): o
clima quente, as enormes distâncias e a sensação de abandono e de impotência
diante dessas forças mitológicas da natureza fazem com que nós tenhamos mais
suscetibilidade a elementos instintivos. Nós acabamos nos dominando pelos
instintos – instintos estes da natureza, que acaba soterrando todo mundo pela
região amazônica. Então, os instintos procriativos, os instintos sexuais, a
lassidão – no sentido empregado nos sermões do Vieira; Abguar Bastos utiliza,
aqui no “Safra”, outro termo, mais regional: a morrinha.
O que é a morrinha? “Morrinha
é aquela vontade de espreguiçar-se, de bocejar, de olhar as paisagens sem o
castigo dos detalhes. Não andar, ou andar mansamente. Descer, em vez de subir.
Não chegar ao fim de coisa alguma. Não trabalhar. Não se aborrecer. Não ligar
as circunstâncias, nem os mínimos incidentes”[1].
Quem está com morrinha, aqui, é o Valentim, que está preso. Agora, se nós
destacarmos só esta descrição do que é a morrinha (a vontade de não
trabalhar...), veremos que é a ausência de qualquer interesse artístico (vejam
como essa é uma expressão artística): “(...)
olhar as paisagens [esse é o olhar do homem da região; não dos estrangeiros
sobre a região] sem o castigo dos detalhes”[2].
Um pesquisador que venha
construir um relato sobre viagens não pode olhar a paisagem assim; ele tem que
olhar as paisagens e se castigar com os detalhes. Ele tem que procurar
registrar tudo o que há, nos seus detalhes, nas suas minudências. Aqui, a
morrinha é uma outra coisa. É um vazio estético também. Mas se nós destacarmos
isso simplesmente, pode somente ratificar alguma impressão sobre a hiléia amazônica, sobre aquilo que lá os
relatos dos sermões dos jesuitas chamavam de alterius (aquele mundo outro
que é a Amazônia) – alterius não
é só a imagem sobre o Brasil, é a imagem sobre a Amazônia: o mundo-outro. O alterius poderia até caber na descrição
da morrinha: “o índio não quer trabalhar, ele não tem nenhuma perspectiva de
cultura. O clima não convida a isso”. Mas em um dado ponto do texto, Abguar
Bastos dá um outro tom para a morrinha:
“Hora de
morrinha. Valentim queria saber se ela estava ali, no meio do povo cristão, a fim
de que, de noite, soltos dela, todos tivessem impressão de ter quebrado um
encanto milenar para o reencontro com a vida. Estava cheio de calma, apenas
desejava que aquela morrinha não acabasse mais, nunca mais. As mãos caiam das
grades grossas, e Valentim dormiu, quieto, como um homem morto”.
A morrinha, para ele, aqui, era a
forma, também, de ele sobreviver nessa prisão. E o único sonho a que ele se
permitia era a ideia de que, acabada a morrinha, a noite, talvez ele – assim
como o povo cristão, como ele se refere à população do seu local – pudesse
acreditar estar livre de alguma coisa, estar livre de um encanto milenar, um
encanto que se abate sobre todos eles naquele local a uma determinada hora. Um
encanto, um enfeitiçamento, o elemento místico que acaba se misturando com uma
força da natureza. A natureza sendo descrita com algo de místico, com elementos
de misticismos, e que se abatem sobre o desejo das pessoas, sobre a compreensão
delas, que turva o pensamento, mas que, no entanto, consegue também dar algum
tipo de refrigério, dar algum tipo de consolo: Valentim consegue dormir numa
cadeia podre, por causa da morrinha. Ele dorme de tarde, e não de noite. A
noite é o horário dos morcegos e das lacraias. Portanto, ele dorme não de
noite, mas na morrinha. Todos dormem na morrinha.
O desenho que há no final deste
capítulo é um jacaré dormindo, confundido aí com um tronco: esse é um elemento
que é transformado esteticamente pelo Abguar Bastos, mas não é uma ideia
original dele. A mistura do elemento natural que transcende para algum significado
místico está aqui, na descrição da morrinha. A ideia de que essa presença
imperiosa do clima determina os nossos horários e determina também os nossos
sonhos, as nossas expectativas e os nosso desejos está presente na descrição da
morrinha.
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