sábado, 1 de outubro de 2011

Morrinha e uma visão sobre a amazônia

Ao amigo Paulo Klautau Filho, a quem chamou atenção o tema, destaco parte do texto revisto sobre o curso "Hermenêutica do vazio- estudos a partir do romance "SAFRA", de Abguar Bastos", que estou preparando para publicação.
_____________________________________


Outros elementos vão se adicionando a esses relatos de viagens: são elementos interessantes que aparecem também em outra figura, anterior um pouco ao Alexandre Ferreira, e que viveu durante bastante tempo aqui na região: esta figura foi o Padre Antônio Vieira. Nos relatos – ainda não de viagem, mas nos sermões – de Vieira, um elemento que é absolutamente reincidente e recorrente quando se fala da região amazônica é também o elemento do vazio, é o elemento da submissão ao clima e à natureza.
Só que aí, com outro foco, com outro aspecto. O problema todo é o desafio civilizatório diante de uma natureza tão poderosa e tão titânica, que força os habitantes a irem para uma outra direção, completamente diferentes desta suposta direção civilizatória. Estou querendo dizer o seguinte (esse é o elemento recuperado tempos depois na literatura naturalista aqui na região, com Inglês de Souza, por exemplo): o clima quente, as enormes distâncias e a sensação de abandono e de impotência diante dessas forças mitológicas da natureza fazem com que nós tenhamos mais suscetibilidade a elementos instintivos. Nós acabamos nos dominando pelos instintos – instintos estes da natureza, que acaba soterrando todo mundo pela região amazônica. Então, os instintos procriativos, os instintos sexuais, a lassidão – no sentido empregado nos sermões do Vieira; Abguar Bastos utiliza, aqui no “Safra”, outro termo, mais regional: a morrinha.
O que é a morrinha?  “Morrinha é aquela vontade de espreguiçar-se, de bocejar, de olhar as paisagens sem o castigo dos detalhes. Não andar, ou andar mansamente. Descer, em vez de subir. Não chegar ao fim de coisa alguma. Não trabalhar. Não se aborrecer. Não ligar as circunstâncias, nem os mínimos incidentes”[1]. Quem está com morrinha, aqui, é o Valentim, que está preso. Agora, se nós destacarmos só esta descrição do que é a morrinha (a vontade de não trabalhar...), veremos que é a ausência de qualquer interesse artístico (vejam como essa é uma expressão artística): “(...) olhar as paisagens [esse é o olhar do homem da região; não dos estrangeiros sobre a região] sem o castigo dos detalhes”[2].
Um pesquisador que venha construir um relato sobre viagens não pode olhar a paisagem assim; ele tem que olhar as paisagens e se castigar com os detalhes. Ele tem que procurar registrar tudo o que há, nos seus detalhes, nas suas minudências. Aqui, a morrinha é uma outra coisa. É um vazio estético também. Mas se nós destacarmos isso simplesmente, pode somente ratificar alguma impressão sobre a hiléia amazônica, sobre aquilo que lá os relatos dos sermões dos jesuitas chamavam de alterius (aquele mundo outro que é a Amazônia) – alterius não é só a imagem sobre o Brasil, é a imagem sobre a Amazônia: o mundo-outro. O alterius poderia até caber na descrição da morrinha: “o índio não quer trabalhar, ele não tem nenhuma perspectiva de cultura. O clima não convida a isso”. Mas em um dado ponto do texto, Abguar Bastos dá um outro tom para a morrinha:

“Hora de morrinha. Valentim queria saber se ela estava ali, no meio do povo cristão, a fim de que, de noite, soltos dela, todos tivessem impressão de ter quebrado um encanto milenar para o reencontro com a vida. Estava cheio de calma, apenas desejava que aquela morrinha não acabasse mais, nunca mais. As mãos caiam das grades grossas, e Valentim dormiu, quieto, como um homem morto”.

A morrinha, para ele, aqui, era a forma, também, de ele sobreviver nessa prisão. E o único sonho a que ele se permitia era a ideia de que, acabada a morrinha, a noite, talvez ele – assim como o povo cristão, como ele se refere à população do seu local – pudesse acreditar estar livre de alguma coisa, estar livre de um encanto milenar, um encanto que se abate sobre todos eles naquele local a uma determinada hora. Um encanto, um enfeitiçamento, o elemento místico que acaba se misturando com uma força da natureza. A natureza sendo descrita com algo de místico, com elementos de misticismos, e que se abatem sobre o desejo das pessoas, sobre a compreensão delas, que turva o pensamento, mas que, no entanto, consegue também dar algum tipo de refrigério, dar algum tipo de consolo: Valentim consegue dormir numa cadeia podre, por causa da morrinha. Ele dorme de tarde, e não de noite. A noite é o horário dos morcegos e das lacraias. Portanto, ele dorme não de noite, mas na morrinha. Todos dormem na morrinha.
O desenho que há no final deste capítulo é um jacaré dormindo, confundido aí com um tronco: esse é um elemento que é transformado esteticamente pelo Abguar Bastos, mas não é uma ideia original dele. A mistura do elemento natural que transcende para algum significado místico está aqui, na descrição da morrinha. A ideia de que essa presença imperiosa do clima determina os nossos horários e determina também os nossos sonhos, as nossas expectativas e os nosso desejos está presente na descrição da morrinha.




Nenhum comentário:

Postar um comentário