domingo, 10 de abril de 2011

A comédia do grotesco

Em meados de 2006, por ocasião de uma aula do doutorado, o Prof. Dr. Raffaele De Giorgi propôs-me essa afirmação do filósofo, teatrólogo e escritor suíço Friedrich Dürrenmatt, a qual depois ele transcreveu em trecho do livro “Direito, tempo e memória” (Quartier Latin): “o teatro do mundo pode ser representado somente pela comédia. Na base da tragédia há culpas, afã, medida, clareza, responsabilidade. Existem as categorias do direito, existe a unidade aristotélica do espaço e do tempo. A comédia é a representação do grotesco". 

Dürrenmatt referia-se ao nosso tempo e essa tese, que me impactou à época, voltou-me fortemente às idéias essa semana depois da tragédia do Realengo. Aí o ponto: tragédia ou uma comédia em que ninguém ri? 

Em 2006, concebi uma breve narrativa sobre Gregório, um personagem mimetizado das histórias de Dürrenmatt e que pôde, passados esses anos, fazer-me entender o que dizia naquela ocasião. Escrevia, então:

“Para esse personagem, Gregório, o problema do mundo não era a ausência de valores, mas o seu excesso. Todos sabiam de tudo. Todos tinham e desejavam afirmar razões. No universo mosaico dessas verdades múltiplas, nenhuma poderia render-se a outra, nenhuma anularia a outra, e todas se rendiam um estado comum de guerra e cegueira. Muitas verdades não equivalem, como prega a lógica monolítica da Verdade, a nenhuma verdade. Muitas verdades permanecem sendo muitas verdades e por isso mata-se, tortura-se, depreda-se... Esse é o paradoxo fundamental aos olhos de Gregório: cercamo-nos de verdades como se sem elas houvesse apenas a ausência e o vazio. Cercamo-nos de verdades e de guerras e tememos ambas, mas menos a elas que ao vazio. A eloqüência das verdades não raro nos atormenta, mas sem elas o silêncio... céus, o silêncio insuportável! Desejamos a verdade para estarmos em paz, na guerra. Para juntarmo-nos ao medo, por termos medo. Para atormentarmo-nos com o rumor intermitente que nos incomoda, buscando, entretanto o descanso... Encantamo-nos nos nossos discursos com a maravilha da verdade e tudo que ela nos traz – sem que possamos dize-lo, claro – quando somente podemos maravilharmos no mistério. Ao buscarmos a verdade, pensa Gregório, distanciamo-nos de Deus...

“Gregório pensa, igualmente, que o inferno existe para as pessoas de boa intenção e de fé. Ele nos tortura mesmo antes de poder-se conhecê-lo e assim o faz através da fé viva de sua própria existência. Ele é a ameaça constante mesmo que ao lado da promessa não menos presente do paraíso. Mas esse é distante, de estreita entrada, enquanto o inferno nos cerca a todos indefinidamente. Se Gregório não acreditasse, ao menos, se fosse ruim, hedonista ou indiferente, para ele o inferno não existiria ou, melhor, sequer faria sentido, o que é uma afirmação de poder que não é possível a nenhum homem de fé. Assim, Gregório afunda-se novamente na contradição e no paradoxo: o inferno apenas cerca os que crêem no bem...

*******

“Gregório ouvia todas as noites as histórias contadas pela Senhora aos moradores da pensão. Era agradável a Senhora, importava-se com ele e com todos. Gregório nunca falava e nunca faltava aos encontros noturnos que acompanhavam a digestão da sopa leve. Era regular nos seus hábitos e sentia que era sua propriedade mais legítima. Gregório ouvia as histórias cheias de entrelinhas das quais não se dava conta. Tais entrelinhas eram evidentes, mas não para ele. Para Gregório as histórias apenas diziam aquilo sobre o que podíamos recordar. Não se tratava de evidências, portanto, mas de memórias. Contudo, Gregório jamais se lembrava da história da mesma maneira, porque sempre que as contava para si, lá estava ele na história e ela não fazia o mesmo sentido. Não era como o personagem de Borges, cuja memória representava o peso insuportável da inexistência do tempo. Havia tempo para Gregório e ele podia ordená-lo, e assim ordenava seus hábitos. Havia igualmente o espaço, o seu quarto, a praça, a sala de jantar e de estar. A questão era que tudo que a mente de Gregório tocava, tornava-se seu. Era sempre Gregório que observava e ao fazê-lo recriava, ainda que nenhuma linha fosse alterada nas histórias. Aos poucos, ao longo das histórias que Gregório reconta para si, as entrelinhas revelam-se paradoxos, os mesmos que aqui fui apresentando e o mundo de Gregório vai tornando-se grotesco, mas tudo se altera, nada se altera. Gregório vê o belo, adora as histórias, vive seu hábito diário. O grotesco não é o descalabro, o feio, o apocalipse. É a ausência do centro, da pirâmide, dos ângulos alinhados. É a imensa riqueza, dos detalhes, das verdades. Todos podem conviver com isso e perceber que buscamos esse deslumbramento. Perdemo-lo, no entanto, na ordem do belo grego, na simetria, na ordem hierárquica. Gregório não sente o medo de que além das histórias recontadas esteja o vazio. Qualquer coisa que esteja além já está conosco agora. As histórias nunca estão sozinhas. Somente existem onde há quem as conte e quem as ouça. Assim também, não estamos sozinhos nós, que podemos recontar as histórias a partir de nós próprios...

“Ítalo Calvino disse que não encontraríamos no séc. XXI nada além daquilo com que pudemos nele chegar. A história de Gregório, gostaria que representasse essa chegada.”

Sandro Alex Simões

10 comentários:

  1. adorei professor, realmente sempre nos cercamos de verdades que temos como absolutas para justificar as barbaridades da nossa sociedade!

    ResponderExcluir
  2. Eis que desperta a adormecida verve! Boa notícia ter-te por aqui mexendo os pauzinhos da realidade, brincando de modelar. O mundo é deriva e caos, cantamos nossa musiquinha interior para sabermos pelo menos que há um centro a partir do qual elaborar qualquer coisa. Daí surge a Verdade e a chance de realizar a substituição radical (e precária) que nos livrará do peso de continuar nos equilibrando sobre o nada. A rede de proteção que torna supérflua toda necessidade de progredir nas artes do equilíbrio instável. Abração!

    ResponderExcluir
  3. Interessante o Gregório preferir não interpretar as entrelinhas ou recontar as histórias do que aceitar que o sujeito faz o objeto falar.
    Este personagem aparece no livro “Direito, tempo e memória”? Muito interessante a postagem. Espero ler este livro.

    ResponderExcluir
  4. Magnífico prof. Sandro, magnífico! Como afirmar que a minha verdade é mais "verdadeira" que a sua verdade, diante do nosso contexto? Bastante interessante a temática do post.

    ResponderExcluir
  5. Prezado Sandro Alex,
    Parabéns pelo blog extremamente interessante!
    Me chamo Daniel Silveira, também estudo direito. Ao contrário de vc, optei por uma disciplina mais dogmática: direito processual civil. Tento desenvolver uma abordagem que o aproxime de alguma forma da idéia de razão prática, tal como vem sendo desenvolvida a partir do giro linguístico.
    Vejo seu tipo de abordagem, a partir de Luhmann e Di Giorgi, como os principais interlocutores que a abordagem que me interessa deve dialogar, justamente pelas restrições com que percebe as possibilidades da razão.
    Ocorre que, até por não ser especialista nesse debate, nunca percebi quais argumentos são utilizados para firmar essa posição. No caso de seu excelente texto, percebo novamente (como nos autores da tradição que pareces seguir) que utilizas como contraponto uma concepção de razão afastada de seus desenvolvimentos mais atuais. Entendo perfeitamente que o fazes por causa dos propósitos do texto, que visa se dirigir ao raciocínio empiricamente percebido. Sei que nem de longe seu texto se refere ao debate que estou propondo. Mas, aproveitando o embalo, gostaria de propor essa pauta, quando lhe for oportuno.
    Assim como Rabelais no Pantagruel, Durrenmatt é cético quanto às possibilidades da razão e suas das narrativas, utilizando o direito como exemplo. O prof Campilongo, em minha arguição de qualificação, me repreendeu com Durrenmatt. Minha dissertação é sobre prova e ele lembrava d"o juiz e seu carrasco" em que relatava o juízo probatório de maneira bastante cética. Claro que a crítica era quanto a utilidade/viabilidade do trabalho, mas não me parece justa, quando se tem em mente uma noção tão restrita da razão (algo que, definitivamente, não partilho).
    Eis a minha motivação para te provocar, como alguem familiarizado com essa abordagem. Desculpe por subverter o mote do seu tópico. Mas é que acho que estou entre aqueles que acham o silêncio insuportável...
    Parabéns novamente pelo blog.
    Sds, Daniel Silveira (www.direitoeprocesso.blogspot.com)

    ResponderExcluir
  6. Caro Daniel,

    Fico feliz com tua visita e teus comentários e(me permita tratar-lhe por "tu", à paraense), ainda que brevemente, procurarei tratá-los logo em resposta, depois aprofundando isso em outra postagem.

    Tu percebes corretamente a desconfiança da teoria sistêmica em relação à racionalidade moderna, mas eu não reputaria essa cautela como restrição. Ao te interessar, inclusive, a virada hermenêutica sugeres que a razão não é a única forma de experienciação da verdade (Gadamer). Em Luhmann a questão é que não temos nenhuma referência segura para afirmar, além da pressuposição, a racionalidade da razão. Observando-se mais detidamente o que está ao nosso redor, nós não entendemos as coisas tal qual se mostram à nossa razão, não as entedemos -como supoe a razão moderna- a partir delas próprias, mas sempre a partir de nós e, ademais, nossa possibilidade de comunicar essa percepção é altamente improvável, apesar de acontecer. Daí que a atenção da teoria dos sistemas desloque-se do "eu logotípico", da "consciência metafísica" para o acontecer da comunicação, que é um "milagre", no sentido de maravilhamento do mundo que justifica a filosofia, conforme Aristóteles.

    Voltarei ao tema e seja benvindo para aprofundarmos a discussão. Ponho-me à disposição tb por e-mail (prof.sandroalex@gmail.com).

    ResponderExcluir
  7. Ana Luíza, Gilberto e "anônimo",

    Grato pela leitura e comentários. Fico feliz com a recepção do texto.

    O Gregório não aparece no livro que mencionei. É um personagem de rascunhos meus para desenvolvimento posterior. Achei, contudo, que ficaria pitoresco fazê-lo falar por mim.

    Abs,

    ResponderExcluir
  8. Valério,

    Meu querido amigo de conspirações interrompidas! Fico feliz que apareceste por aqui.

    Receba meu fraterno abraço, vc e Tânia, e obrigado pela sensibilidade poética do teu comentário.

    Vamos nos falando.

    ResponderExcluir
  9. Muito bom professor,muito bem colocada a parte em que o problema não é a ausência de valores e sim o excesso, e ainda acredito, que com todo esse excesso todos ainda estão desesperados para sentir algo, que acabam caindo em qualquer coisa... gostaria de saber se poderia postar esse texto no meu blog? abraços professor ^^

    ResponderExcluir
  10. Prezado "Mixórdia" (desculpe-me, mas não vi seu nome no blog),

    Agradeço-lhe o comentário e reafirmo o problema do excesso a que me referi no texto. Pode publicá-lo sim, coma devida referência, ok?

    Abs,

    ResponderExcluir