domingo, 24 de abril de 2011

Direito e literatura

“Advertiu que o homem, uma vez criado, desobedeceu logo ao Criador, que aliás lhe dera um paraíso para viver; mas não há paraíso que valha o gosto da oposição. Que o homem se acostume às leis, vá; que incline o colo à força e ao bel-prazer, vá também; é o que se dá com a planta, quando sopra o vento. Mas que abençoe a força e cumpra as leis sempre, sempre, sempre, é violar a liberdade primitiva, a liberdade do velho Adão. Ia assim cogitando o conselheiro Aires”(Machado de Assis, Esaú e Jacó).



O mundo das Leis compõe-se antes de palavras que de Leis. Às leis precedem os verbos, as construções sintáticas, a morfologia e a semântica que nos permitirá entender o que se pretende comunicar. Às Leis precede o texto.

            Uma pergunta fundamental que, como tudo o que é fundamental, muitas vezes escapa sorrateiramente a todos é o que, afinal, existe no texto legal que o diferencia do texto literário.? O que existe entre a Lei e a literatura que permite ao homem médio, mesmo sem tal consciência, jamais confundir o significado da Ofélia jazendo no lago, em Hamlet, com o “matar alguém” inscrito no art.121 do Código Penal Brasileiro? Simples: existe a expectativa que o leitor nutre quanto a eles ou, em outras palavras, das Leis espera-se o comando e da literatura, a expressão do belo.

            Ambos são textos, mas a distância que o leitor observa entre eles é imensa por buscar que eles lhe realizem desideratos em geral desencontrados como, por exemplo, o antagonismo  limitação x ilimitação, ordem x loucura, indiferença x envolvimento, sociedade x indivíduo.  Nesse sentido, o contexto do leitor, suas expectativas, seus sentimentos face ao que deseja conhecer é que cria o texto.

            Tomar consciência de que cada texto possui uma função específica, portanto, permite compreender os diferentes significados que o Direito e a Literatura possuem no mundo das letras. Contudo, enquanto textos encontram-se sujeitos a influências sociais semelhantes nas mesmas épocas em que são produzidos. A Literatura, assim como o Direito, também espelha valores e imagens, expressa realidades as quais se comunicam com o intérprete de maneira aproximada nas duas áreas. Benjamin Cardozo, juiz da Suprema Corte americana nos princípios do século XX, defendia a possibilidade de interpretar-se os textos jurídicos como textos literários, rompendo assim com a crença absoluta de que a precisão da linguagem legal tornaria as Leis infensas à mutabilidade, à divergência interpretativa, à manipulação estética do simbolismo das expressões jurídicas. Desse ponto de vista, assim como as obras literárias, as Leis podem conservar sua relevância, mas autorizar que os intérpretes atualizem o sentido de suas expressões conforme passem a plasmar outros valores no contexto da mudança social.

            De outro lado, o Direito muitas vezes representou e ainda representa um papel na literatura universal e brasileira. Não é possível que tenhamos o testemunho de um bacharel brasileiro do século XIX que nos possa descrever seus trejeitos característicos, o lugar social que ocupava, suas virtudes, seus maiores defeitos e preconceitos, sua posição política a não ser que recorramos a um Machado de Assis, a um Joaquim Manuel de Macedo, a um Aloísio Azevedo. Caso se deseje ampliar o estudo, a literatura ensejaria  um cotejo internacional  com um Tolstoi, Gogol, Balzac, Kafka, Twain, Dickens para citar alguns, dentre outros autores, que consagraram impressões sobre o mundo das Leis e seus homens nas suas sociedades.

            Mas ainda que se considere o argumento de que a literatura pode revelar valores e imagens sobre o mundo das Leis e que as Leis possam valer-se da visão literária para sua inteligência, é possível que sejam essas contribuições mais interessantes aos historiadores, sociólogos e filósofos do Direito que ao profissional e ao estudante. Para o historiador, para o sociólogo e para o filósofo o singular fato da literatura lidar com valores sociais já lhe justifica a importância heurística, mas o que a aproximação do mundo das Leis da literatura é capaz de dizer a todos além disso?

            A literatura como arte é cruamente humana. Seus requintes ou sua sofisticação, sua rudeza ou sua simplicidade, sua verborragia ou sua aridez, qualquer que seja seu estilo e forma prestam-se ao primeiro e final serviço de mostrar ao homem a medida de sua própria humanidade, na sua pequenez vexatória, quando seja assim, e na sua grandeza redentora, quando o valha.

            Ao pregar-se a necessidade de aproximar do texto legal o texto literário, do mundo das Leis o mundo das letras, por um lado restaura-se um pouco mais de verdade às coisas, já que as Leis nascem das letras. Doutra metade, outrossim, restaura-se uma verdade quisera mais profunda: a de que as Leis não nos servem senão pelo que de humano pretendem realizar. O que nos desumaniza deve perecer. Lembrar d’O processo, de Kafka, d’O homem sem qualidades, de Musil ou d’O estrangeiro, de Camus tem o condão de dar-nos uma consciência muito mais plena e mais abrangente da dinâmica, dos valores e das Leis na sociedade atual que qualquer texto legal, pelo drama humano que revelam. A literatura faz-nos perguntas e as perguntas devem preceder as respostas, sempre.

           
            Esse não é um manifesto, mas o Direito e Literatura pretende ser uma escola. Não é manifesto porque não há método previamente definido e os fins são muito mais variados do que podemos agora descrever. O fundamento, entretanto é claramente a liberdade intelectual, a liberdade de oposição, a irresignação a que se refere belamente o Conselheiro Aires.  Estejamos irresignados com o encarceramento do pensamento, com as fórmulas repetidas incansavelmente, com a ausência de crítica, com a leitura débil e escassa, com a mediocridade. Estejamos irresignados com um Direito que nos desumaniza.

            As Leis e as Letras para quem busca o homem são, afinal, um só texto.




5 comentários:

  1. Fico feliz de ler sobre este tema. Mas uma pergunta me vem: será que nós estamos fadados a apenas resignificar os clássicos da literatura ou teremos acesso a grandes obras feitas no século XXI?
    Isto às vezes me incomoda, pois é fácil falar que há uma literatura clássica que nunca se deteriorará. Correto. Mas, por exemplo, e uma caracterização atual do bacharel brasileiro, já que certamente há mudanças? E a reconstrução literária de problemas constantes, mas nos moldes atuais?
    Meu medo é a literatura cada vez fazer menos sentido com a crise cultural e não termos nada relevante no presente. Eu creio não ter lido nenhum grande livro escrito posteriormente ao meu nascimento.
    Me perdi um pouco, mas enfim, apenas um desabafo em forma de reflexão. Agradeço um comentário sobre isto, pois tenho dúvidas teóricas e medo de cada vez a literatura ser mais ignorada.

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  2. Caríssimo Gilberto,

    É sempre bom partilhar das tuas reflexões, mas vc não precisa crer que o bom já passou. Há produção da alta literatura hoje, mas em regra falta-nos um bom espaço de crítica literária para conhecermos os autores. Recomendo-te, contudo, as revistas Bravo!, Entre Livros e Piauí como fonte de alguns boas recensões literárias.
    Dos autores atuais, não pode deixar de fazer justiça a um Saramago, por exemplo, cujo Levantado do Chão ou Ensaio sobre a cegueira, na minha opinião, não ficam a dever a nenhum dos grandes clássicos. Há ainda, dos estrangeiros, Philip Roth e Cotzee e Le Clézio.
    No Brasil, gosto muitíssimo no sec. XX de Graciliano Ramos e João Cabral de Melo Neto e, na segunda metade, de Ana Miranda.
    Abs

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  3. Obrigado pela resposta e pela indicação de revistas, pois desejava algo assim. Expressei-me mal sobre a alta literatura contemporânea, o ponto era justamente não termos acesso a ela e não a inexistência.

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  4. Sandro,

    Gosto do modo como você aborda o papel da Literatura no Direito. Para os fins que me interessam, creio que a literatura é fundamental na construção de um ensino jurídico menos duro, e mais conectado à nossa realidade. Estimular o conhecimento literário dos professores e alunos, nesse contexto, parece tão importante quanto lecionar a correta aplicabilidade das leis, mesmo nas matérias de cerne mais dogmático, como a minha. Aliás, se quisermos fazer isso fora de um eixo “técnico-legal”, a literatura, o cinema, a música, enfim, as expressões artísticas de que dispomos parecem a saída mais acessível, senão a única, a fim de prestigiar um ensino jurídico voltado à realidade social que nos marca.

    Para isso, é necessário que tenhamos uma literatura contemporânea forte — que em Saramago há, incluindo na sua lista outras obras dele como ‘A Jangada de Pedra’ e o ‘Homem Duplicado’, igualmente geniais —, mas também é necessário estimular a leitura dos clássicos, pois a contextualização das ideias — mesmo que de outras épocas — concretiza formas interpretativas aos juristas, que têm nas construções literárias arcabouço capaz de orientar o seu trabalho, seja no campo acadêmico, seja no campo forense.

    Forte abraço.

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  5. Concordo com o Arthur, apesar de viajar bastante no tempo e no espaço para dizer a importância dos clássicos.
    Me refiro mais especificamente às grandes tragédias, tais como Orestéia, Édipo Rei e Antígona, cuja importância aos estudos da Justiça dificilmente é negada e ainda sim, dificílima de defender devido seu contexto muito distante e específico.
    Mas isto decorre da primazia de uma vizão possível dos benefícios da escola de Direito e Literatura, sobre outras possíveis. Quero dizer, espera-se que uma obra literária seja acadêmicamente útil na medida em que traga referências diretas ao mundo de hoje, à vida como se apresenta aos juristas da autalidade e a referências de agir prático para o mundo moderno.
    Contudo, tal como o senhor também destacou na postagem, me é caro ressaltar que há outras riquezas a serem extraídas dos estudos literários para o Direito. Os clássicos gregos, bem como os vários clássicos do ocidente, ainda que tão distantes da nossa realidade, nos dizem respeito em sua maior temática, sempre atual - falam-nos sorbe o Humano e sua constante batalha na sobrevivência diante do Outro e das Normas.

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