“Agora me condenas ao exílio do país,
Ódio de cidadãos e pragas clamadas do povo,
Outrora nada contrapuseste a este homem
Que desatento como da sorte de uma rês,
Sobejando ovelhas nos lanosos rebanhos, sacrificou a própria filha, meu dileto
Parto, encantador dos ventos trácios.
A ele não devias bani-lo desta terra
Punindo poluências? Testemunha de minhas
Façanhas tu és áspero juiz. Mas digo-te:
Faz tais ameaças cônscio de meu preparo
Em iguais condições. Se por força venceres
Domina-me; se Deus decidir o contrário,
Aprenderás ainda que tarde a ter prudência”
(Agamêmnon, versos 1415-1425)
Luhmann afirma que a história do direito poderia ser contada como a história da “domesticação da violência”. Nesse sentido, é inegável que o talião, visto acima na citação da Orestéia, é ele próprio um disciplinamento da violência e não a sua eliminação.
A bem da verdade, não creio pertencer ao direito, essa faculdade de eliminação da violência ou harmonização/pacificação social. Imputar ao sistema jurídico essa tarefa é desejar dele mais do que possa, efetivamente, dar. O direito é capaz de sustentar, em determinadas circunstâncias, um liame de sociabilidade baseado na generalização e estabilização de expectativas, fazendo com que mesmo –ou principalmente- as frustrações das expectativas socialmente construídas re-entrem no sistema (input), ao invés de extrapolarem-no como força incontrolável. O sistema jurídico somente é capaz de controlar ou disciplinar aquilo que está sob seu alcance estrutural. Aquilo que está fora para ele é incontrolável.
Assim ocorre com a violência quando o direito arcaico consegue processualizá-lo na forma da regra taliônica. Em outras palavras, no lugar das guerras intertribais comuns entre os nômades e semi-nômades, com a sedentarização o direito arcaico definirá qual a autoridade responsável pela aplicação de penalidades no âmbito das famílias, que emergem como a diferença da unidade social, e disciplinará um padrão de equilíbrio e proporcionalidade subjetiva na compensação do dano. O talião, assim, costuma-se manifestar nos diversos povos do direito arcaico como uma regra aplicada entre consangüíneos e em situações de dano manifesto, seja ao corpo, seja à propriedade. Trata-se sempre do âmbito do visível e da unidade familiar, ou do extravasamento da unidade familiar baseada exclusivamente na convivência, sendo nesse caso as tribos, cuja ascendência é comum.
A violência derivada da frustração, nesse caso, é um elemento criativo do direito, cuja modulação dependerá da estrutura da sociedade a qual lidará com tal frustração ou impulso. Quando, no trecho acima, Clitemnestra fala ao coro ela resiste ao povo alegando a tradição da regra taliônica. Ela se coloca ao lado dos deuses, no caso, os deuses pré-olímpicos, dentre os quais as malditas Górgonas (ou Erínias). O povo tenta bani-la, já demonstrando o questionamento da regra taliônica e a progressiva consciência de seu esgotamento, mas encontra a ameaça de Clitemnestra que afirma estar vingando-se legitimamente de Agamêmnon pela morte da sua filha, como aparece no excerto.
Sobre a frustração como fonte da expectativa normativa expressa no talião, explica Luhmann:
“Para a formação mais detalhada desse direito arcaico aquela baixa complexidade da sociedade significa, então, que os mecanismos elementares da formação do direito atuam de forma não mediatizada. O direito surge inicialmente na frustração e na reação do frustrado, ou seja, na eclosão imediata da cólera, a partir daí ligando-se àquela estreita relação com a força física anteriormente caracterizada. Sem a defesa própria do atingido e sua parentela, sem sua disposição de usar a força, não seria possível separar as expectativas cognitivas das normativas; ninguém saberia quais expectativas deveriam ser mantidas e quais devem acomodar-se às frustrações. As instituições do direito arcaico da defesa própria violenta, da vindita, do juramento e do amaldiçoamento, típicas em sociedades segmentares, não se referem à imposição do direito (...), mas sim a salvaguarda das próprias expectativas, à sua manutenção frente à eventos adversos” (in Sociologia do direito. Rio de Janeiro:Tempo brasileiro, 1983, 186).
Na próxima nota falarei sobre o arquétipo da justiça na polis e sua relação com o perdão e a memória como virtudes cívicas identificáveis na Orestéia.
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