quinta-feira, 7 de abril de 2011

Breves notas sobre a Orestéia, de Ésquilo (Nota Última)


“Eis que subvertem as soentes
Leis, ao prevalecerem
A justiça e o dano
Deste matricida.
Já este ato conciliará todos
Os mortais com mão leve:
Muitas dores de fato
Infligidas por filhos esperam
Pelos pais em tempos depois.

Nenhum rancor destas Loucas
Vigias de mortais
Perseguirá algum crime,
Permitirei toda morte.
Ao proclamar os males do próximo
Buscará um junto ao outro
Pausa e repouso de aflições;
E vacilantes remédios serão
A inócua medicina do mísero.”
(Eumênides, versos 491-505)

                Esse excerto contém aquilo que tenho denominado de “argumento social” das Eríneas, pois a esse ponto do julgamento elas já não insistem no seu direito tradicional de exigir a punição de Orestes, mas procuram intimidar os julgadores com a perspectiva consequencialista da decisão. Doutro modo, ao absolver-se Orestes, um matricida, nenhum outro crime poderia ser punido, dada a gravidade daquele que foi perdoado.
                O argumento é forte e inegavelmente inteligente, atacando ao mesmo tempo a funcionalidade da manutenção do costume e da tradição, mas também agindo como uma ameaça eficiente. A autoridade tradicional das Eríneas, como representantes do talião, é a que está compreendida na vinculatividade da consuetudo (“opinio iuris et necessitatis”), ou seja, aquilo que é tradicional e antigo obriga porque ainda está presente na comunidade. É quase uma tautologia, dado que obriga porque obriga, mas devemos entender também, como sugerem as Eríneas, que a regra obriga porque tem funcionado. Não fora assim, não teria subsistido tão longamente, não teria tornado-se tradição. Tanto é assim, que elas ameaçam –ao menos inicialmente- não com sua revolta e violência, mas com a mera ausência da regra. Se for por terra o talião, se esgotado seu poder simbólico, o que ficará no seu lugar? Fora do costume, o que há que nos ajude a manter a sociabilidade mínima?

                Ocorre, entretanto, que a Orestéia não trata, ao fim e ao cabo, do julgamento de Orestes, mas do julgamento do talião. Orestes, apesar de tudo, matou a mãe e poderia ter sido condenado mesmo nas regras do Tribunal do Areópago, não obstante foi absolvido: por quê? Penso que essa foi a única maneira de deixar clara a nova ordem instaurada na polis. Condená-lo, seja pelas regras do talião, seja pelas do Tribunal (processo) seria uma vitória das Eríneas e da antiga ordem com elas. Outrossim, na mitologia grega os deuses somente interferem a favor dos mortais quando isso envolve seus próprios interesses e não para defender virtudes ou a justiça. Os deuses gregos não são éticos. O interesse de Atena representa a lógica da pólis que transcende e re-significa o conflito familiar para tratá-lo como um conflito metafamiliar ou político, o qual influencia nos destinos da cidade. A pólis é integrativa das diferentes atividades sociais e eleva o patamar da ágon, que desta feita ocupa os espaços antes vazios de poder entre as gens das sociedades segmentárias.

                Porém, impõe-se notar que a transformação surgida com a Justiça Pública do Areópago não é uma ruptura, nem uma descontinuidade, senão uma re-significação, como dito acima. É um processo de mudança mais sutil e eficaz, sendo amplo e profundo, mas longe da fragmentação a que a mentalidade moderna das revoluções tende a nos habituar, pois todos os atores processuais envolvidos permanecerão nos seus lugares, mas o cenário altera-se substancialmente. As Eríneas continuarão inspirando o terror, o medo, os acusadores continuarão acusando e os réus devem defender-se. Haverá o crime – a húbris – e haverá a punição. Entretanto, o ambiente é o da pólis e isso mudará toda a semântica. Atena dirá a seguir na tragédia, exaltando o papel do Areópago:

“O povo de Egeu terá no porvir doravante
E ainda sempre este conselho de juízes.
Assenta-se neste penedo, base e campo
De amazonas, quando por ódio a Teseu
Guerrearam e ergueram nova cidade
De altos muros contra nossa cidade,
E sacrificavam a Ares, donde o nome
Pedra e penedo de Ares. Aqui reverência
E congênere pavor dos cidadãos coibirão
A injustiça dia e noite do mesmo modo,
Se os cidadãos mesmos não inovam as leis.
Quem poluir a fonte límpida com maus
Afluxos e lama, não terá donde beber.
Aconselho aos cidadãos não cultuar
Nem governo nem despotismo;
Nem de todo banir da cidade o terror.
Que mortal é justo, se não tem medo?”
(Eumênides, versos 685-700. Grifos nossos)

                François Ost afirma de forma instigante que foi necessário mudar para que tudo permanecesse, o que não deve ser entendido como uma farsa ou simulacro de mudança, senão como a sutileza da sinergia do processo civilizatório, do qual faz parte a história do direito. Ele se faz sentir com os pequenos, mas progressivamente notáveis movimentos da mudança da linguagem e dos horizontes que ela é capaz de traçar para cada contexto histórico. Na alteração da atenção e da reação ao que era banal, mas passou a ser dramático ou vice-versa.
                As transformações históricas mais profundas nos processos civilizatórios são aquelas, como as representadas na Orestéia, que operam uma verdadeira revolução por dentro das palavras, fazendo com que, mesmo estando nos mesmos lugares, o mundo ao redor das pessoas seja outro e outros os horizontes. De heroínas malditas e soberanas do talião, as Eríneas passam a ser um símbolo subserviente da nova Justiça Pública, sem palavra e sem ação, que agora pertencem à gramática do processo.

Um comentário:

  1. professor Sandro Alex, a respeito da trajédia grega "orestéia" que se passa na era mitológica de ouro.tire-me uma dúvida a respeito da origem das erínias.a mitologia constitui um de meus fascínios, e não pude deixar de notar a contradição que ocorre entre alguns autores. na era de ouro o que diz respeito ao "mito das origens" onde urano e gaia então unidos, criando divindades que ficam presas no ventre de gaia deixando-a inchada. farta de ter que aguentar tal situação dá a luz a Cronos que recebe a missão de castrar seu pai, com uma foice que também foi gerada por gaia, no momento em que urano fosse castrado se separaria de gaia e libertaria os filhos, a minha dúvida vem exatamente nesse momento.
    quando Cronos castra seu pai as gotas de sangue misturadas ao espermatozóide dão origem as erínias no entanto outros autores dizem que as gotas de sangue misturadas ao esperma caem sobre pontos e criam a afrodite o amor e o desejo.
    desculpe-me se expressei algum fato de forma equívoca, tentei fazer uma síntese da história.
    lhe pergunto por que tal discrepância entre os autores acerca do tema?

    ResponderExcluir