sexta-feira, 15 de abril de 2011

O diagnóstico "invisível" da morosidade do judiciário brasileiro

Passados quase sete anos da Emenda 45/2004 e seus inegáveis avanços ao Judiciário brasileiro, um problema de base continua intocado. Recupero um texto preciso sobre o assunto publicado logo após a reforma do judiciário para que, mais distantes no tempo, vejamos que os obstáculos do cotidiano da Justiça parecem estar invisíveis para nós...

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São Paulo, terça-feira, 20 de dezembro de 2005 


Reformar cartórios para reformar a Justiça

JOSÉ REINALDO DE LIMA LOPES

Passado um ano da promulgação da emenda constitucional nº 45 (reforma do Judiciário), há um tema que ainda merece análise. Trata-se do sistema cartorário brasileiro. Durante o debate da reforma, falou-se dos órgãos de poder (os tribunais superiores), falou-se -pouco- da legislação processual, mas nada se falou da instância por meio da qual se realiza efetivamente o processo no Brasil: o cartório.
Tudo passa por ele: o protocolo e a juntada das petições, as inúmeras certidões disso e daquilo (de publicação, de intimação, de decurso de prazo, de trânsito em julgado, de expedição de guias de levantamento, de... certidã! o de qualquer coisa que se possa imaginar), os despachos de "mero expediente" (que tantos agravos geram), o controle da agenda de audiências.


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Foi emendada a Lei Maior, mas sem reformar o rés-do-chão do foro talvez não obtenhamos os resultados esperados
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Com o cotidiano do processo dependendo mais do balcão do cartório do que da sala de audiências, o que dizer da sua atual organização? Embora os códigos processuais sejam grandes rotinas elevadas à categoria de lei visando garantir direitos fundamentais, não se vê gente especializada na administração forense, não há serviços profissionais de administração cartorária. Sobrevive-se no meio dos cartórios e as coisas vão se dando por costume, por tradição, "porque aqui se faz assim"...
Certo que não bastaria a presença de especialistas em administração se ausente o diálogo com os profissionais do direito. Diferentemente das organizações privadas, que podem limitar seu público e defi! nir seu próprio ritmo de expansão, o serviço judiciário é universal e deve receber demandas em qualquer número, venham de onde vierem.
Assim, o profissional da administração judiciária precisaria de uma formação especial, para levar em conta a lei e os conceitos jurídicos já consolidados.
Um exemplo da falta de comunicação com o direito se dá na estranha classificação dos processos feita pela Justiça Federal. Seu sistema de informações fere a mais elementar lógica processual: classificam-se as ações em "ordinárias", umas, e em "declaratórias", outras!
Qual o problema disso? Ora, "ordinária" é uma característica do rito da ação (procedimento), "declaratória" é uma característica do conteúdo da sentença (provimento). Um sistema como esse jamais "fechará", pois usa simultaneamente dois critérios diferentes para classificar seu universo (pelo procedimento e pela espécie da decisão).
Outra questão ainda mais importante é a incompatibilidade prática entre o sistema cartorário! (a palavra "cartório" indica o local onde se colecionam as "cartas", ou papéis) e duas idéias sempre mencionadas e pouco realizadas: a oralidade e a concentração do processo.
Há décadas que se fala disso no Brasil. Elas já estão previstas em lei. Mas, funcionam? Não, e devido, entre outras coisas, a um pequeno dispositivo chamado "protocolo", que perpetua o domínio do escrito. O protocolo de papéis e petições, feito nos cartórios, impede que o desenvolvimento do processo se dê primeiramente nas audiências.
O processo "anda" até alguém protocolar alguma coisa... Um papel. Que fazer? Juntar aos autos? Mas, sem ordem de quem dirige o processo (o juiz)? Impossível. Fazer o quê? Mandar ao juiz, que manda juntar. Como o cartório tem muito a fazer, pois tudo é protocolado, os autos ficam aguardando sua vez de ter a "juntada". Depois de "juntado" o papel, é preciso intimar a parte contrária, e aí começa a "via crucis"...
A concentração e a oralidade permitiriam que o juiz ouv! isse as partes simultaneamente, em audiência, nos momentos designados.
Deposita-se hoje a esperança de solução nos meios eletrônicos. Eles ajudarão a minimizar o problema? Talvez não, pois o que se observa não é a supressão das muitas certidões, juntadas, fases e passos do processo. Está-se apenas a fazer tudo isso com a máquina de escrever eletrônica. Assim, é possível que diminuam os espaços necessários para guardar os papéis, mas não sei se diminuirá ou quanto diminuirá o tempo dos processos, pois os passos, que antes eram dados em "papel", continuarão os mesmos, dados agora por via eletrônica.
Finalmente, há uma curiosa disposição constitucional transitória, a do art. 31, que diz, em pleno 1988: "Serão estatizadas as serventias do foro judicial...". Estamos no início do século 21 e o sistema brasileiro abriga ainda uma instituição feudal-corporativa: o cartório privado! A Justiça brasileira ainda hoje nem mesmo é estatal.
Quando olhamos para o que foi o debate a respei! to da reforma do Judiciário, vemos que não houve diagnóstico de coisas tão importantes, que tudo foi discutido ou na esfera da grande política de Estado ou na comparação com modelos estrangeiros em que não há cartórios (como nos Estados Unidos) -ou não os há privados. Foi reformada a Constituição, mas sem a reforma do rés-do-chão do foro talvez não obtenhamos os resultados esperados. Doravante valeria a pena pensar nessas questões mais cotidianas, nas quais estão alguns dos gargalos mais difíceis de eliminar.

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José Reinaldo de Lima Lopes, 53, doutor em direito pela USP, é professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP e da Escola de Direito da FGV-SP. Publicou, entre outras obras, o livro "O Direito na História".

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