domingo, 3 de abril de 2011

Breves notas sobre a Orestéia, de Ésquilo (Nota Primeira)

Em especial, para os meus alunos nesta semana de provas

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Em 598 a.C. Sólon iniciava as reformas sociais mais importantes da história grega com uma profunda reorganização das classes sociais, distribuídas agora segundo sua riqueza, bem como com o estabelecimento de diversas instituições políticas, cujo acesso estava relacionado à estrutura das novas classes.

Assim, a Bulé e o Areópago eram reservados para os membros das famílias mais ricas e a Eclésia era órgão opinativo acessível às classes mais baixas (Thétas), constituída pelos camponeses e artesãos.

As reformas sociais de Sólon serão a influência das modificações que o Rei Sérvio Túlio, etrusco, introduzirá em Roma por volta de 540 a.C, com as centúrias e as comitia centuriata (Fustel de Coulanges. A cidade antiga, pg.141).

O que importa notar para fins desse breve comentário, é que tais reformas nas duas mais relevantes civilizações da antiguidade clássica, operarão a transição entre sociedades organizadas no modelo segmentário (familiar) para um modelo centro/periferia (metafamiliar ou político), cuja lógica é completamente distinta a partir de seus critérios de diferenciação social. 

As sociedades segmentárias são aquelas em que a famílias ou tribos instituem-se elas próprias como diferenças da unidade da sociedade, sendo, segundo Luhmann, a família posterior a sociedade, a qual é marcada pela igualdade da indistinção. As sociedades centro/periferia, por sua vez, funcionam a partir de uma outra distinção fundamental, que é aquela que prestigia pela primeira vez uma tensão daí por diante contínua historicamente, qual seja, aquela que se impõe entre o campo e a cidade. 

Raymond Williams, em estudo fundamental, explica essa oposição nova, emergente da transição acima apontada, da seguinte maneira:

"Obviamente, a cidade se alimenta daquilo que o campo ao seu redor produz. Isso ela pode fazer graças aos serviços que oferece, em autoridade política, no direito e no comércio, àqueles que comandam a exploração rural, aos quais está normalmente associada por vínculos de necessidade mútua de lucro e poder. Mas, então, em pontos marginais, à medida que os processos da cidade vão se tornando até certo ponto autoperpetuantes, e especialmente com a conquista estrangeira e o comércio exterior, surge uma nova base para o contraste entre uma "ordem" e outra. Os agentes do poder e do lucro tornam-se, por assim dizer, alienados, e em certas situações políticas podem vir a tornar-se dominantes. Acima da rede de exploração há o que pode ser encarado como exploração real do campo como um todo pela cidade como um todo" (in O campo e a cidade. São Paulo:Cia. das letras. 2011, 81).

Qual seria, senão a revelação dessa tensão fundamental, o sentido da cautela demonstrada pelo vigia no prólogo da Orestéia, de Ésquilo? Nas palavras de excitação que antecedem a chegada das naus de Agamêmnon, começa a ser descortinado o pano de fundo das intrigas palacianas, observadas pelo povo, que interage no coro, que acusa e amedronta-se com a tirania, que aguarda a justiça do Rei. Diz o vigia:

"Que possa na vinda tomar nesta mão/a mão amiga do senhor do palácio! O mais calo. Grande boi na língua/Pisou. A casa mesma, se tivesse voz, falaria bem claro como eu adrede/A quem sabe falo e aos outros oculto" (Agamêmnon. São Paulo:Iluminuras,FAPESP, 2004:107).

O tom soturno do início da tragédia, repetir-se-á em outras tragédias que terão como cena de fundo a emergência da pólis, do novo modelo de sociedade dominada pela lógica centro/periferia, as quais terão de lidar com a exigência de equilibrar a produção coletiva de bens com critérios de distribuição mais complexos, dadas as diferenças de tarefas e a multipicidade de funções sociais existentes, como a Antígona, de Sófocles, a as célebres passagens do coro reputando o espaço palaciano como inariavelmente inóspito para o povo.

A continuar...
 

3 comentários:

  1. Professor, a questão da família como posterior à sociedade intrigou-me. A pré-história nos contada não entra em consenso quanto ao significado ou objetivo da chamada arte rupestre. Uma vez da impossibilidade de afirmarmos que nesse período o homem já compartilhava um imaginário comum, haja visto que essas gravações poderiam ter tanto um primeiro intuito de "arte" quanto de êxito para a caçada e tendo esta capacidade manifestando-se de forma diversa entre indivíduos - em decorrência da ainda não aparição da escrita -, qual o critério então para a afirmação de que neste momento onde já se evidencia a família, também percebe-se a existência de sociedade?

    Um abraço.

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  2. Caro Bráulio,

    Na verdade, vejo que seu próprio exemplo já contempla uma possibilidade de resposta, pois o que se vê com os grupos caçadores é, precisamente, a existência de uma sociedade, um agrupamento, mas não as famílias, as tribos e as gens.

    Naquele agrupamento as diferenças físicas e naturais de toda espécie não possuem o significado que será socialmente construído nas sociedades segmentárias. É o que diz Luhmann:


    “La diferenciación segmentaria surge por el hecho de que la sociedad se articula en sistemas parciales-en principio igualitarios-que forman recíprocamente entornos unos de otros. Esto presupone, de alguna manera, la constituición de familias. La familia constituye una unidad artificial por encima de las diferencias naturales de edad y sexo-incorporando precisamente dichas diferencias. Antes de existir familias existe sociedad; es la familia la que se constituye como forma de diferenciación de la sociedad y no al revés: la sociedad que se compone de familias” (LUHMANN, Niklas. La sociedad de la sociedad. Mexico:Herder.2007,503).

    Ou seja, não se pode compreender as sociedades compondo-se de famílias porque ambas são diferenças dentro de uma unidade. O que se constitui como família, ou seja, o conjunto de significados e relações socialmente estabelecidas sobre dados físicos e naturais de descendência (natural) que criarão laços de parentesco (social), é constituído como distinção em face da sociedade. Em relação à família, a sociedade está lá fora, e opera com uma lógica totalmente distinta e estranha àquela em que funciona a própria família.

    Um grande abraço. Sua colaboração é sempre benvinda.

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  3. Caro Sandro,

    lendo esse post, a parte inicial acabou me chamando bastante atenção. Um fato, em especial, sobre essa nova disposição social: a clara segmentação das classes de acordo com as suas riquezas, e a sua posterior capacidade de acesso a determinados círculos por conta disso.

    Essa segmentação político-social que os gregos estabeleceram ainda antes de Cristo, sem medo de escondê-las, parece-me que se tomou outras formas ao longo da história e em outras sociedades.

    No Brasil, aí gostaria que você me respondesse, talvez por conta da nossa colonização, ou quais outros fatores?, eu faço uma leitura de que isso ocorreu de uma maneira velada, escondida ao longo de toda a nossa história - mesmo o período de escravidão -, incluindo os dias atuais.

    Qualquer manifestação e representação de opressão social ficou velada no meio das relações sociais na figura de um gesto muito comum da nossa sociedade: o favor. A ideia do brasileiro gentil, a figura que todo o mundo tem de nós, como se todos nós fôssemos "homens cordiais", mas que embutimos uma violência simbólica e a escondendo no favor. Lendo o post, me veio à mente "As idéias fora do lugar", de Roberto Schwarz, chamando atenção para essa representação social do Brasil.

    A nossa sociedade e instituições político-sociais evoluíram e se complexificaram e foram se auto-diferenciando, tal em como muitas outras sociedades. Mas a lógica da violência social velada pelo favor parece que permanece, em que muitos espaços continuam sendo inóspitos ao povo, e outros resquícios disso. Só que outros instrumentos de favor foram sendo criados para esconder isso. Favor e violência, aparentemente se autodiferenciaram através de suas irritações, e permencem caminhando conjuntamente na atualidade.

    Em uma leitura comparativa entre sociedades e as suas organizações, gostaria de saber se essa minha leitura é válida, ou se há algum ponto que eu deva repensar ou fazer outra leitura, outra fonte. Não sei, mas ao que parece, não estamos muito distantes dos gregos em exclusão de classes, mas fazemos questão de esconder isso, fazendo favores às classes mais baixas - desde o governo, até nós cidadãos no nosso dia-a-dia -, ou não?

    Terminando, isso me lembra de uma conversa que tive com o Dimitri Dimoulis - talvez o único grego que eu venha a conhecer -, demonstrando duas mentalidades. Eu e um amigo perguntamos a ele o que ele pensava sobre a Universidade introduzir e acirrar a competição entre os alunos (em termos de notas, por exemplo), argumentando que isso poderia vir a substituir um ambiente de amizade e cooperação por um de concorrência e demonstração de quem seria o melhor. Eis que ele responde: a vida é assim!

    Grande abraço,

    Vitor Martins Dias

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