quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Preconceito e tradição em Hans Gadamer

Texto de resumo de leitura disciplina Filosofia do Direito, neste 2º semestre de 2012, elaborado pelo monitor Diego Vale, a quem agradeço, como material de apoio em sala.
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Em um dos capítulos de Verdade e método, Gadamer se propõe a uma reabilitação de três conceitos fortemente fulminados pela filosofia moderna, mais especificamente por aquele movimento conhecido como Aufklärung[1] (Iluminismo, Esclarecimento): os conceitos de preconceito, autoridade e tradição.


            PRECONCEITO

“Será verdade que achar-se imerso em tradições significa em primeiro plano estar submetido a preconceitos e limitado em sua própria liberdade? O certo não será, antes, que toda existência humana, mesmo a mais livre, está limitada e condicionada de muitas maneiras? E se isso for correto então a ideia de uma razão absoluta não representa nenhuma possibilidade para a humanidade histórica. Para nós a razão somente existe como real e histórica, isto significa simplesmente: a razão não é dona de si mesma, pois está sempre referida ao dado no qual exerce sua ação” (Página 367).


            A história do conceito de preconceito mostra que foi somente a partir da Aufklärung que a palavra assumiu um sentido negativo. O significado originário de preconceito é um juízo que antecede o exame definitivo de todos os elementos determinantes da coisa em questão. Na jurisprudência, significa uma decisão provisória, tomada antes da sentença definitiva. Essa é a origem do termo praejudicium do latim e do préjudice do francês, pois uma decisão tomada antecipadamente acarreta necessariamente em prejuízo, dano ou desvantagem a uma das partes. Mas a negatividade do prejuízo é apenas secundária ante a positividade da validez da pré-decisão.
            Ao contrário do uso que a Aufklärung faz da palavra, preconceito não é necessariamente um falso juízo, uma vez que ele pode se revelar tanto verdadeiro quanto falso, havendo também, ao lado dos falsos, preconceitos legítimos. Préjugés légitimes são aqueles que, ao final do exame, mostram-se válidos. A ciência moderna segue o modelo da Auklärung e, acompanhando o lema da dúvida e do método cartesianos, confere ao preconceito o sentido estrito de juízo não fundamentado. Segundo o pensamento cartesiano, de ampla influencia no Esclarecimento, apenas um uso disciplinado e rigoroso da razão pode nos livrar do erro. A consequência disso é a despotenciação da tradição.
            Mas a superação de todo preconceito, a tese global do Esclarecimento, revela-se ela mesma como um preconceito que deve ser afastado de modo a liberar o caminho para uma adequada compreensão da finitude e historicidade humanas. Para fazer jus a este modo de ser finito e histórico do homem, será preciso ir de encontro à filosofia da Aufklärung e revitalizar o conceito de preconceito e reconhecer que existem também preconceitos legítimos.

 “Na realidade, não é a história que pertence a nós mas nós é que a ela pertencemos. Muito antes de que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica. Por isso os preconceitos de um indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica de seu ser” (Páginas 367-68).

AUTORIDADE

Gadamer começa tratando de uma distinção muito cara à Aufklärung entre preconceitos por precipitação e de autoridade. Conforme esta divisão, ambos os preconceitos têm como origem a não utilização da razão, seja por não ter seguido rigorosamente o método, como no primeiro caso, seja porque nos privamos a nós mesmos do uso de nossa própria razão e apelamos à razão de outrem. Existe aí, portanto, uma oposição excludente entre razão e autoridade. Isto significa que, para o Iluminismo, não pode haver qualquer preconceito ou autoridade que contenham qualquer verdade e, por conseguinte, o uso metódico da razão é a única maneira de alcançá-la. Ao fazer isto, no entanto, o Iluminismo ignora algo que sempre esteve contido no conceito de autoridade – que ela também pode ser uma fonte de verdade. Com isso, o Iluminismo não apenas difamou todas as autoridades, como também deformou consideravelmente o próprio conceito de autoridade, que assumiu a partir de então o sentido oposto de razão e de liberdade, qual seja, o de obediência cega.
Mas nem toda autoridade é necessariamente autoritária e, pelo contrário, a genuína autoridade não se comporta autoritariamente. A autoridade vem primeiramente de um ato de atribuição e, em seguida, do ato consciente de reconhecimento da superioridade ou precedência do juízo e visão do outro sobre o nosso. Dessa maneira, a autoridade deve ser conquistada. Não se trata, portanto, de abdicação ou renúncia da razão, mas ao contrário, a pressupõe – a razão que reconhece seus próprios limites e vê no outro um pensamento mais acertado. Assim, o verdadeiro fundamento da autoridade é um ato de liberdade e de conhecimento que a concede a alguém reconhecidamente superior (alguém que sabe melhor), e não a obediência. Sem o reconhecimento de que o que a autoridade diz é ao menos em princípio razoável e não uma arbitrariedade inaceitável tarefas como a educação seriam impossíveis. Nós não obedecemos e acatamos os preconceitos das autoridades[2] apenas porque quem fala encontra-se em uma posição de superioridade, mas também porque há uma razão ou verdade naquilo que dizem. É por isso que uma correta compreensão do conceito de preconceito deve se desviar do caminho adotado pela Aufklärung.

TRADIÇÃO

Existe ainda uma outra forma de autoridade que é fonte de preconceitos: a tradição. Como já mencionado, toda educação repousa sobre alguma forma de autoridade, mais especificamente a forma anônima de autoridade que possuem as heranças e tradições históricas que nos são deixadas. Tudo aquilo que nos é transmitido tem influência sobre nosso comportamento, e não apenas aquelas coisas que possuem fundamentos auto-evidentes, e quanto mais pensarmos que, nos tornando senhores de nós mesmos com o alcance da maioridade, livramos-nos dessas influências, mais nos surpreendemos com sua ainda constante presença.
Essa correção da Aufklärung, que devolve à tradição seu direito e reconhece a sua determinação em nossas instituições e comportamentos, é atribuída ao romantismo alemão. Mas o romantismo alemão, tal qual a Aufklärung, ainda apresenta uma deformidade em sua compreensão da tradição: a tradição continua sendo o contrário da liberdade racional, já que ela não necessita de fundamentos racionais para se legitimar, uma vez que está aí desde sempre.
É preciso, com Gadamer, compreender que a relação entre tradição e razão não é autoexcludente (se uma se faz presente, a outra precisa necessariamente estar ausente). Estas ideias podem conviver ao mesmo tempo, e isto não foi algo que o romantismo, o historicismo e a Aufklärung conseguiram reconhecer.
O romantismo alemão, tal qual o historicismo, apesar de investirem contra a derrubada das tradições proposta pelo Iluminismo, ainda assim compartilham de um mesmo preconceito ingênuo – o de que na tradição não haveria nada de racional. Para o romantismo, a pertença a um espaço de sentido compartilhado nos tiraria toda a liberdade, o que é uma premissa também do Iluminismo, a despeito dos dois movimentos apontarem em direções contrárias.
O retorno romântico a um modo de vida autêntico, isto é, a busca incessante das raízes da identidade folclórica e cultural de um povo, muito embora se oponha a um ideal de homem universal, observa o mesmo esquema[3] do preconceito do Iluminismo – o de que nestas tradições não haja nada de justificável, racionalizável, mas apenas origens históricas. Que o homem nunca escolhe suas tradições e que, portanto, ele estaria sempre determinado por elas.
“O romantismo entende a tradição como o contrário da liberdade racional e vê nela um dado histórico ao modo da natureza. E, quer se queira combatê-la revolucionariamente ou se queira conservá-la, a tradição se mostra em ambos os casos como o contrário abstrato da autodeterminação livre, já que sua validez não necessita fundamentos racionais, pois nos determina de modo espontâneo” (Página 373).

Só que isso não é verdade e não faz jus à consciência histórica, pois a tradição é também um espaço de liberdade. Talvez mesmo a única condição da liberdade humana... É preciso, portanto, para uma melhor compreensão da historicidade e da finitude do homem, abolir a oposição entre tradição e ciência e admitir que todo o conhecimento humano, até mesmo o científico, acomoda-se sobre um plano de fundo compartilhado e sempre anterior a nós próprios. Admitir, portanto, que jamais somos seres inaugurais. Que o nosso conhecimento não foi criado por nós mesmos, e sim que sempre damos continuidade[4] ao trabalho de homens que viveram antes de nós e que, quando a nossa permanência nesse mundo acabar, outros homens que virão depois de nós também continuarão. A tradição é, assim:

“um momento da liberdade e da própria história. Também a tradição mais autêntica e a tradição melhor estabelecida não se realizam naturalmente em virtude da capacidade de inércia que permite ao que está aí de persistir, mas necessita ser afirmada, assumida e cultivada. A tradição é essencialmente conservação e como tal sempre está atuante nas mudanças históricas. Mas a conservação é um ato da razão, e se caracteriza por não atrair a atenção sobre si. Essa é a razão por que as inovações, os planejamentos aparecem como as únicas ações e realizações da razão. Mas isso não passa de aparência. Inclusive quando a vida sofre suas transformações mais tumultuadas, como em tempos revolucionários, em meio à suposta mudança de todas as coisas, do antigo conserva-se muito mais do que se poderia crer, integrando-se com o novo uma nova forma de validez. Em todo caso, a conservação representa uma conduta tão livre como a destruição e a inovação. Tanto a crítica da Aufklärung à tradição, quanto a sua reabilitação romântica, ficam muito aquém de seu verdadeiro ser histórico” (Páginas 373-74).

É necessário, portanto, um esforço consciente para decidir o que se deve transmitir, uma vez que nem tudo é e nem deve ser transmitido[5]. Queremos transmitir àqueles que prezamos apenas coisas boas. Para aqueles que nos sucederão, de preferência as melhores. Este processo de seleção está longe de ser uma atitude de passividade, em oposição ao movimento dinâmico das pretensões revolucionárias. A tradição também é um movimento dinâmico, pois precisa se reafirmar a todo momento se tem em vista a sua conservação. Ela também é dinâmica em outro sentido: em meio a seu esforço de reinvenção, ela não permanece sempre a mesma, mas precisa, por vezes, incorporar mudanças significativas. Este movimento não está muito distante do âmbito jurídico. É a jurisprudência também um fenômeno profundamente tradicional[6], haja vista que mesmo as mudanças jurisprudenciais precisam levar em conta as decisões anteriores (os precedentes) de um determinado tribunal para acontecer.
Após a reafirmação do conceito de tradição, cabe a análise de alguns trechos posteriores da obra acerca de seu conceito:
“A tradição de linguagem é tradição no sentido autêntico da palavra, ou seja, aqui não nos defrontamos simplesmente com um resíduo que se deve investigar e interpretar enquanto vestígio do passado. O que chegou a nós pelo caminho da tradição de linguagem não é o que restou, mas é transmitido, isto é, nos é dito – seja na forma de tradição oral imediata, onde vivem o mito, a lenda, os usos e costumes, seja na forma da tradição escrita, cujos signos de certo modo destinam-se diretamente a todo e qualquer leitor que esteja em condições de os ler” (Página 504).
“Na forma da escrita todo o transmitido está simultaneamente presente para qualquer atualidade. Nela se dá uma coexistência de passado e presente única em seu gênero, na medida em que a consciência presente tem a possibilidade de um acesso livre a tudo quanto tenha sido transmitido por escrito. A consciência que compreende, libertada de sua dependência da transmissão oral, que traz ao presente as notícias do passado, porém voltada imediatamente para a tradição literária, ganha uma possibilidade autêntica de avançar os limites e ampliar seu horizonte, enriquecendo assim seu próprio mundo com toda uma nova dimensão de profundidade. A apropriação da tradição literária supera inclusive a experiência vinculada com a aventura das viagens e da imersão em estranhos mundos de linguagem. O leitor que se aprofunda numa língua e literatura estrangeiras mantém, a todo momento, a liberdade de voltar de novo a si mesmo, e assim está ao mesmo tempo aqui e acolá” (Página 505).
           
A tradição não é apenas algo que encontramos como uma relíquia do passado e que possamos trancafiar num museu para exposição de velharias. O “sentido autêntico” da palavra é o de transmissão, e por isso o que ela nos diz se refere a nós também e não são apenas um registro do que se disse numa determinada época a algum personagem histórico que não pode ser eu. É por isso que a leitura de um livro antigo, quando lido com a devida atenção e dedicação, a despeito da estranheza que alguns aspectos[7] nos proporcionam, é capaz de nos tocar profundamente[8]. Este livro certamente não foi escrito para ser lido por nós, mas a mensagem que ele carrega nos atinge diretamente. O efeito que ele provoca é, por muitas vezes, muito forte. Não há dúvidas, com isso, de que a tradição tem sempre algo a dizer sobre nós mesmos, e não apenas sobre algo que já passou e não pertence mais ao nosso tempo. Não é acidental, mas essencial o fato de ela chegar até nós – esse é o sentido autêntico da palavra. A escrita também é essencial e não acidental ao fenômeno da tradição, porque para além da simples persistência de resíduos de um tempo passado, a tradição é pura vontade de sobrevivência, de permanência. Desse modo:
“A tradição escrita não é apenas uma parte de um mundo passado, mas já sempre se elevou acima deste, na esfera do sentido que ele enuncia. Trata-se da idealidade da palavra, que todo elemento de linguagem eleva acima da definição finita e efêmera, própria aos restos de existências passadas. O portador da tradição não é este manuscrito como uma parte do passado mas a continuidade da memória. Através dela a tradição se converte numa parte do próprio mundo, e assim o que ela nos comunica pode chegar imediatamente à linguagem. Onde uma tradição escrita chega a nós, não só conhecemos algo individual mas se faz presente em pessoa uma humanidade passada em sua relação universal” (Página 505).
           


[1] Existe também uma Auklärung antiga, que equivale ao movimento que comumente conhecemos como passagem do mythos ao logos, mas as críticas de Gadamer se dirigem frontalmente a sua vertente moderna.
[2] O exemplo é corriqueiro: quando crianças, não obedecemos as ordens de nossos pais apenas porque “papai (ou mamãe) mandou”, mas quando eles nos dizem para não tocarmos no fogo ou na tomada, não precisamos ter tocado ou visto alguém tocar para saber que a ordem que eles dão é razoável e possui o sentido de querer o nosso bem.
[3] Aqui, Gadamer denomina este modelo exatamente de passagem do mythos ao logos. Só que, enquanto o Iluminismo aponta para a direção do logos, a libertação do homem enquanto ser dotado de razão, o romantismo e o historicismo voltam-se para uma espécie de “regressão” ao mythos.
[4] Muitas vezes com descontinuidades e rupturas, é verdade, mas sempre tomando como ponto de partida algo que já estava ali antes de nós.
[5] A formulação “deve ser transmitido” revela também uma forte dimensão ética do transmitir.
[6] Neste sentido hermenêutico de tradição. Não se quer dizer, com isso, que a jurisprudência seja criada, transmitida e modificada oralmente.
[7] Sejam linguísticos, históricos, ou de qualquer natureza, como, por exemplo, a grafia ou o próprio significado das palavras e narração de algum costume ou regra jurídica extintos de um povo.
[8] Quando lemos autores imortais, como Kafka e Dostoiévski, para citar apenas dois. Poder-se-ia alegar aqui que a distância temporal que nos separa destes escritores não é tão grande, então cito mais alguns: Sófocles, Ésquilo, Platão e Aristóteles.

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