sexta-feira, 2 de março de 2012

Teoria da história: terceira aula: tempo e história

Em continuação...

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O tempo, ele próprio enquanto conceito, é um produto histórico. Não é o tempo que gera a história propriamente, mas é a história que cria o conceito de tempo e ele muda ao longo da história. O conceito de tempo não é o mesmo conceito, não diz respeito às mesmas coisas ao longo da história. O conceito de tempo também muda, também se altera. Ele também se relaciona com seus tempos históricos e absorve a visão de mundo que aqueles tempos históricos lhe depositam. O tempo do relógio não é o conceito de tempo – é um conceito de tempo. É o conceito de tempo da modernidade, do capitalismo, da indústria. È aquele que determina que horas nós devemos nos levantar para trabalhar, que horas se dará o intervalo do trabalho e que horas termina o trabalho para recomeçarmos no dia seguinte. Não é o tempo da vida – é um conceito específico de tempo ligado diretamente a um conjunto de relações de produção que são as que dominam já há pelo menos três séculos. A forma como nós nos organizamos socialmente – é uma percepção. A percepção do tempo dos gregos era diferente. A percepção do tempo dos medievais é uma percepção diferente. Então, a que tempo exatamente nós estamos nos referindo? E que percepção nós podemos ter dessas relações entre o tempo e a história?
Primeira afirmação que gostaria de fazer: não há um conceito ou percepção unívoca de tempo. O tempo é também um conceito que convive com pluralidade semântica – nós temos mais de um conceito ou mais de uma percepção possível de tempo. Segunda afirmação: não há um tempo físico. O conceito de tempo é um conceito social. “Sandro, eu não posso acreditar nisso... Um dia eu fui criança e hoje eu não sou mais. Um dia eu fui adolescente e hoje eu não sou mais. Um dia eu tive vinte anos e hoje, infelizmente, eu não tenho mais. Nós nos rescindimos e regozijamos com essas mudanças. Nós observamos as mudanças no corpo, as mudanças nos nosso atos e nossas vontades – logo, há um tempo. Isso não é social, existem mudanças que acontecem em nós fisicamente, biologicamente”. Tudo bem, eu não estou negando que haja mudanças biológicas e físicas. Eu só estou negando que nós possamos nos referir a elas como “tempo”, como se alguma coisa externa atuasse sobre essas mudanças. As mudanças biológicas e as mudanças fisiológicas são como são – simples assim. Que alguma força externa atue sobre isso é uma outra coisa. Isso já é uma derivação, já é algo que criamos para poder nos situar socialmente nessas mudanças. “Antes eu fui criança, depois fui adolescente e agora eu sou adulto”. Nós organizamos socialmente essas mudanças que são psicológicas, biológicas, orgânicas... O conceito não é biológico ou orgânico. O conceito de tempo é sempre social.
Contarei uma historieta que vem de um livro belíssimo, inclusive, chamado A flecha de Deus”, de um importante escritor africano chamado Chinua Achebe, cuja temática diz respeito ao tempo. O que fala o livro? Fala de uma comunidade isolada no interior da África que começa a conviver com uma missão inglesa e procuram manter uma distância entre si - tanto a missão estrangeira como a comunidade africana. Mas isso vai ficando cada vez mais tenso e o que é mais interessante no livro é o confronto entre percepções diferentes de mundo e a linha que o autor escolhe para mostrar o quanto essas concepções que organizam cada uma dessas culturas é diferente é o conceito de tempo. A comunidade africana, cujo líder é o personagem principal – ele é o único na aldeia capaz de determinar o período de início da plantação e o início do período da colheita dos alimentos -, organiza há séculos essa ciência de quando se pode plantar e quando se pode colher através das fases lunares, que é, dizem os antropólogos, a primeira forma de organização de tempo que as comunidades humanas dispõem. E ele mede, de uma forma muito instigante, esses tempos de plantar e colher. Quando a lua sorri eles podem plantar. Quando ela fica triste eles podem colher. Ele se refere desta maneira – hoje nós diríamos, sem nenhum romantismo, é a lua cheia, é a lua minguante. Ele mede que a lua sorri quando ela é cheia e ela está triste quando é minguante, e sabe quantas fases ele tem que medir pra isso. Então ele não chama de lua cheia, lua nova, lua crescente, lua minguante. Ele estabelece uma espécie de relação com a deusa e ela fala alguma coisa para ele - mas não é para todo mundo na comunidade, é uma relação específica com o líder da comunidade. Ele é o que pode interpretar. A história da camisa que o sangue amarela no filme Abril Despedaçado é também uma maneira de medir o tempo. Há uma maneira de medir as vidas: se o sangue amarela ou se não amarela, o tempo que decorre é o tempo para medir a vida de um determinado personagem. E não é toda e qualquer pessoa que pode ver. É uma pessoa que vai dizer se amarelou ou não. Pode haver um monte de gente ao redor, mas é ele, o patriarca, que dirá “amarelou”. Aí há inúmeras relações com as comunidades anteriores à escrita. Do mesmo modo, na obra  de Chinua Achebe, quando os conceitos de tempo são introduzidos e outras técnicas agrícolas são introduzidas na comunidade a partir da cultura dos missionários, o líder começa a perder o seu poder na comunidade. Descola-se a base desse poder, dessa sabedoria ancestral que está ligada a uma relação específica entre o líder e a lua e, portanto, de uma forma específica de medição de tempo, e ela vai sendo progressivamente destituída pelos métodos agrícolas, pelo calendário, e pela forma ocidental de tratar o tempo e a produção. Aquela comunidade começa a deteriorar rapidamente porque a liderança que era baseada nessa forma específica de hermenêutica - de uma interpretação específica do tempo -, vai sumindo de maneira muito rápida e ele próprio começa a se questionar sobre isso: o que ele é. O seu saber não tem absolutamente nenhum valor.
Essa é uma forma específica de tempo porque não diz respeito apenas à medição do trabalho – diz respeito a uma maneira específica de liderança e de convivência com as pessoas da comunidade, coisa que não se compreende hoje na nossa forma de entender o tempo. O tempo é medido de maneira independente. Lá não era uma força sem nome, a força temporal é uma deusa específica e que fala com uma pessoa específica. Essa despersonalização não é uma coisa que a comunidade entendesse. A maneira como nós temos de entender o tempo hoje está ligada a essa concepção específica de tempo: é o tempo cronológico, ou o tempo chronos, ligado ao deus Chronos da mitologia grega. É uma concepção válida de tempo – ela tem uma série de derivações com as quais nós convivemos na nossa mentalidade moderna hoje.
Primeiro: o tempo crônico ou o tempo cronológico é um tempo linear. É uma característica inafastável dele. É um tempo que não volta – por isso “A flecha de Deus”, é a forma tradicional de se definir esse tempo. Lançada a flecha, ela não retorna. A maneira que nós temos de tratar o tempo linear, esse atropelo que o tempo provoca, está impregnada na nossa cultura, nas nossas expressões. Inclusive nos referindo ao próprio personagem mitológico Chronos – ele devorava os seus filhos. “O tempo nos devora, o tempo nos engole, o tempo nos atropela”. “O tempo não volta atrás, não dá para recuperar o leite derramado” e por aí vai. As nossas expressões denotam muito isso.
Denotam também uma outra característica. A primeira é a linearidade. A segunda, a subjetivação do tempo. Dizendo de maneira literal: nós transformamos o tempo em um sujeito diferente de nós. Nós nos referimos a ele na língua portuguesa – e em todas as línguas latinas – desta maneira, como um sujeito, tanto que é precedido de artigo. O tempo. Nós subjetivamos o tempo, transformamos o tempo num sujeito. Isso significa que ele interfere nas nossas relações ou pelo menos nós compreendemos na linguagem que é assim. As nossas expressões denotam isso. “O tempo a tudo cura. O tempo é o melhor remédio, é o melhor conselheiro. O tempo” é alguma coisa estranha a nós e que interfere sobre os nossos humores, sobre as nossas relações, sobre as nossas expectativas... Assim entendemos que ele interfere também na história. O tempo cria a história – que tempo? Quem é esse sujeito? Não há esse sujeito, esta é uma figura da nossa linguagem. Essa é uma forma específica de entender o tempo e a relação que nós estabelecemos em razão dele.
Então a característica da linearidade e a característica da subjetivação eu já expliquei. Uma outra característica também é importante: essa linearidade e essa subjetivação que nos leva a pensar que o tempo interfere nas coisas levam a uma concepção específica de história - concepção de que as coisas de hoje são melhores do que as de ontem. A linearidade importaria num progresso. “Nós melhoramos”. “Por que estamos na história?”. “Porque precisamos melhorar”. O que era ontem é inferior ao que nós temos hoje. O homem de antes era um homem que sabia menos, um homem inculto, bárbaro, selvagem e hoje nós somos melhores, a humanidade avançou, evoluiu, progrediu. Essa linearidade compreende uma noção de progresso, não apenas de transformação, mas de transformação para o melhor. Uma outra concepção aliada a essa da linearidade e da subjetivação é a de que nós estamos indo para algum lugar, assim como uma flecha sai de um arco e vai cair em algum momento – ela pára, em algum momento ela atinge seu objetivo. Então isso aconteceria também com o tempo humano, o das coisas humanas.          Se nós estamos melhorando entre o ontem, o hoje e o amanhã, em algum momento nós atingiremos aquilo que se tornou jargão na filosofia da história do século XIX: o fim da história, um ponto máximo de evolução, a partir do qual nada mais há.
Essas idéias, ainda que aqui e acolá, possam soar um pouco exóticas, estão conosco e são relativamente comuns. No início da década de noventa, tornou-se célebre Francis Fukuyama com o livro denominado O fim da história, e foi proclamado um intelectual extraordinário e virou modismo, inclusive, citar Fukuyama. O fim da história para ele era a democracia norte-americana. Nós atingimos o ápice da história humana com a afirmação absoluta dos conceitos de liberdade e que tornar-se-iam um padrão para todo o mundo e não apenas o Ocidente. O resto seria transformações e adaptações para esse modelo e tínhamos atingido o fim da história. Eu não sei se ele está vivo, pois foi muito contestado alguns anos depois caiu em desgraça, para ver aquilo que a história realmente nos diz: que todos os impérios encontram o seu fim. Todos eles, do romano ao mongol e não seria diferente com o império americano e talvez estejamos neste momento a sua derrocada, que durou muito menos – se realmente estiver caindo agora – que todos os outros que eu mencionei ainda há pouco. Historicamente, todos os impérios têm fim e não será diferente com o império norte-americano.
Essa noção de fim da história é uma noção problemática – como a noção de linearidade e a de subjetivação. Todas elas estão ligadas a uma concepção específica de tempo, que é o tempo crônico. Qual é o problema, efetivamente? Primeiro: a idéia de linearidade é uma idéia equivocada, ainda que fácil e cativante, porque é fácil de explicar e entender. Todos nós conhecemos e já nos deparamos com essas figuras – que se tornaram inclusive parte do marketing hoje, dos anúncios publicitários – como aquela linha de evolução do hominídeo ao homem, que começa com o macaco andando ainda nas quatro patas e vai se tornando bípede até chegar ao homem moderno. Do hominídeo até o sapiens sapiens, um atrás do outro. Essa figura é muito encantadora e muito fácil de entender também – mas ela é tão fácil quanto equivocada. Hoje é absolutamente demonstrado – e ninguém mais acredita no contrário – que a evolução dos hominídeos ao homo sapiens sapiens não se deu na forma de uma linearidade, mas na forma de uma grande árvore. De cada uma dessas espécies pode-se ter inúmeras variações que eventualmente resultaram em algumas espécies que se acabaram e outras que foram prosseguindo e nem todos os elos estão fechados – não se sabe exatamente o que nos traz de um Neandertal para um sapiens sapiens. Então, nem todos os elos se fecharam, a coisa não é tão simples: não é saber quem é o próximo na linha. Alguns deram certo, outros não – alguns desses nós nem sabemos, eventualmente, quem são. Os fósseis não apareceram. Então esta árvore está cheia de buracos. São várias ramificações diferentes – algumas se tocam, outras nunca se tocam. Algumas se encontram lá na frente, outras se encontram aqui, mas não tiveram continuidade. É muito mais complexo.
Eu tenho dito sempre – e isto é uma das outras funções da ciência – as coisas só são simples se observadas de longe. Qualquer coisa observada de perto não é bem assim. Elas nos parecem simples, mas se nós fizermos a crítica, a pergunta da qual nasce uma outra, e uma outra, elas nunca são tão simples assim. As crianças conseguem nos demonstrar isso entre os sete e oito anos de idade. Elas perguntam a primeira vez e você dá uma resposta mal-acabada, perguntam a segunda vez e você tem que elaborar um pouquinho mais, perguntam a terceira e você descobre que nunca pensou naquilo. E aí vai dizer “porque sim” e a conversa acaba rapidamente desta maneira. O que está acontecendo neste momento é precisamente a suspensão da crítica – você nunca se deu o trabalho de pensar, efetivamente, naquilo.
Se pensarmos um pouco sobre a linearidade do tempo (a primeira característica), nós não sabemos exatamente porque definimos isso como linear, como uma flecha, se as duas perguntas essenciais para se definir uma linearidade nós não temos: de onde viemos e para onde vamos. Nós sabemos alguma coisinha do que está, mas não sabemos do início e não sabemos o fim. Em termos científicos - eu não estou falando de fé – nós não sabemos. Temos suposições, e de qualquer maneira, ainda que a ciência tenha suposições sobre o início, ela não tem suposições sobre o fim. A ciência não é prognóstica: quando ela entra na futurologia, aproxima-se mais das profecias do que da metodologia da ciência porque as variáveis são incontroláveis. Então, para definir uma linearidade eu preciso de um início de um fim. Quando eu traço uma linha no quadro, eu tenho um início e um fim e eu vou dizer “isto é uma linha reta. Eu tenho certeza. Eu coloquei um início nela, eu coloquei um fim”. Mas onde é o nosso início e onde será o nosso fim? Nós não sabemos! Como podemos saber, então, que isso é uma linha?
Segundo problema relativo á concepção cronológica de tempo: nós estamos efetivamente progredindo? Quer dizer, nós podemos definir como uma premissa da evolução do tempo histórico que cada passo humano é um passo humano necessariamente para frente? Há problemas nessa afirmação, problemas severos. Como já expliquei que se não sabemos o início e não sabemos qual é o fim – nós não sabemos sequer se é uma linha -, como eu posso dizer que cada passo humano é um passo pra frente, se nós estamos sabe-se lá onde? Como é que nós podemos definir que se trate de progresso? “Sandro, para isso não é necessário fazer muito esforço, é só observar o que nós somos hoje e comparar com o que nós éramos antes, na época em que vivíamos em cavernas”. Eu não estou falando de apropriação de bens primários, eu não estou falando de patrimônio, eu não estou falando de conforto... Eu estou falando de características humanas e da nossa forma de relação e apropriação do que nos cerca. Se nós fizermos uma comparação nessa perspectiva – não se temos mais carros do que os homens das cavernas, porque essa é uma comparação fraca -, se nós compararmos a coisa do ponto de vista da fome ou das guerras, nós perdemos. Perdemos porque a fome na pré-história – e durante boa parte da história – está associada a uma condição natural: a escassez de alimento. A fome hoje não é associada à escassez de alimento porque nós temos pra todos, mas à distribuição de renda. Isso é mais cruel, do ponto de vista moral, do que a escassez. Na escassez eu não tenho o que fazer, então, na fome, o meu pirão primeiro. Agora, se temos pra todos, mas ainda se morre de fome, o problema não é a escassez, o problema é a distribuição daquilo que nós criamos socialmente. A morte nas guerras tribais dos nômades durante a pré-história, ainda que pudesse ser violenta, é uma coisa muito mais selvagem, impulsiva, do que uma guerra que você anuncia há muito com armas de destruição em massa, ou guerras civis que matam milhões de pessoas e mesmo com toda essa mídia nós nem sabemos acontece, nesse exato momento, em dois países do interior africano. Não há um critério para nós medirmos esse progresso – é isso que eu estou querendo dizer. O critério material não serve, ele não nos ajuda em nada. A acumulação de riqueza não pode ser associada a progresso, primeiro porque é um fator econômico absolutamente instável e segundo, porque ele não diz respeito a algo da natureza humana. Diz respeito a uma criação contemporânea presencial. Nós não temos como dizer que a história humana caminha para o progresso a partir de critérios dessa natureza.
A linearidade é um elemento que eu já critiquei. O progresso dessa linearidade eu eliminei – e o subjetivismo? O tempo será entendido aqui nesta disciplina não como um sujeito exterior ao homem, mas como uma criação das relações sociais. O tempo é um conceito, um instrumento - aquilo que o Norbert Elias chama de síntese -, porque é um conceito que muda ao longo da história. É uma síntese criada para denominar e organizar relações sociais. Ele começa em uma coisa bem básica, visível. Suas raízes são, de início, bem visíveis, como a de uma árvore jovem. Na organização da agricultura e nas relações de produção que o homem constrói quando começa a dominar e a desenvolver as técnicas agrícolas – é aí que surge o conceito de tempo. É aquilo – não é um sujeito externo, não é algo que interfira sobre o corpo humano – que eu meço entre o plantar e o colher. É o número de estações da lua. Depois são as estações climáticas. Eu começo a definir quantas luas eu preciso ter para que aquilo que eu plantei hoje possa estar madura pra colheita depois. Essa diferença entre o antes e o depois não é uma diferença para a alma humana nem para explicar o sentido da nossa vida – pelo menos em seu princípio. Esse conceito de tempo é um conceito que organiza uma relação de produção específica entre plantar e colher. É uma técnica dessas relações sociais. Eu crio o conceito para me referir a alguma coisa específica do mundo. Eu crio esse conceito e com ele uma realidade específica. É síntese, como denomina Norbert Elias, porque existem determinados conceitos humanos que nós utilizamos hoje com sentidos tão diferentes que não nos interessa mais saber como nasceram. Nós não associamos mais, hoje, o tempo, a essa raiz dos trabalhos agrícolas, ao domínio da técnica agrícola – isso para nós é até indiferente. Nós nos referimos a tempo de diversas outras formas que não necessariamente essa. Nós já falamos do tempo de vida, do tempo das nossas expectativas, do nosso planejamento de estudo. Isso é uma síntese: é o conceito que muda de maneira tão drástica, mas ele permanece lá, na sua forma, da qual se desenraiza. Nós temos diversos deles no direito. O tempo é um deles. Liberdade, igualdade, propriedade, posse, pessoa – todos esses conceitos não foram inventados ontem, nem anteontem. Esses conceitos migraram com as diferentes gerações da humanidade, mas com sentidos muitas vezes radicalmente diferentes daqueles que tinham na sua origem. Família: o homem romano não entende a família como nós entendemos. Era uma coisa radicalmente diferente. As famílias não estavam sequer ligadas por laços que poderiam ser considerados afetivos. Isso era indiferente para a civilização antiga. O conceito de afetividade ligado à família é um conceito do século XVII. Historicamente isso [a distância temporal] é nada. Bem aqui, nas nossas costas. Nós assistimos os filmes e imaginamos como elas deveriam ser antes... Elas só eram um pouquinho mais toscas e se vestiam de maneiras diferentes, mas é como se fosse a mesma coisa! A gente assiste nos filmes e eu fico sempre estupefato com isso. Papai, mamãe, a mesma forma de relação, as mesmas expectativas... Parece-nos um absurdo que essas relações pudessem ser de maneira diferente, mas eram radicalmente diferentes. Radicalmente diferentes – o papel da mãe, o papel do pai, dos filhos, os animais fazendo parte da família juridicamente. O animal não era um patrimônio. A diferença é brutal.
As sínteses nos ajudam a entender como é que a história acontece e que tipo de observação – de tempo – nós precisamos ter em relação a ela. E nisso eu me aprofundo agora. A noção de tempo que nós precisamos construir aqui está muito distante da linearidade e muito mais próxima de um conjunto superposto de descontinuidades e de simultaneidades. Quero dizer, a concepção linear, em regra, nos lança diante de um vício histórico que é o da sacralização do presente. Nós tendemos a observar tudo o que já passou como se fossem formas menos evoluídas do que nós temos hoje, mas são basicamente a mesma coisa. Nós impomos garganta a baixo do passado a visão do presente. Isso é um pecado histórico. Nós chamaríamos a ele de sacralização do presente ou, de maneira um pouco mais jocosa, mas didaticamente funcional, é o “complexo Flintstone” do historiador – que alguém da pré-história já comemorasse o Natal. Nós imaginamos que eles são a mesma coisa que nós só menos evoluídos, menos inteligentes, vestem-se de uma maneira distinta e não possuem tanta tecnologia. Mas não funciona assim. Os tempos históricos devem ser observados enquanto seus próprios presentes, com todo o horizonte de expectativas que estava diante deles. Hoje, observando as coisas que aconteceram, nós procuramos criar linhas de causalidade entre as coisas que aconteceram e explicar uma a outra e parece-nos que era inevitável que as coisas de hoje acontecessem como são, porque elas vieram disto, disto, daquele outro, outro... É como se fosse uma linha só. Observem: nós utilizamos isso na nossa vida cotidiana, nas nossas justificações proto-históricas.
Eu costumo citar esse exemplo em sala porque nos ajuda a ilustrar um pouco a coisa. Nos relacionamentos afetivos, aquele belo jantar que o namorado oferece à namorada ou vice-versa... e um diz ao outro: “tudo que eu vivi foi exatamente para chegar aqui com você nesse momento”. Aí toca aquela música e fica um negócio brilhante. Nessa hora chega o champanhe e fica extraordinário. Vamos manter esse nível de romantismo – isso é interessante, mas do ponto de vista histórico isso é uma fraude. Do ponto de vista científico isso é uma fraude rematada, absoluta. Agora, existem determinados momentos em que a verdade não cabe. Ou seja, diria eu jamais num momento desses “quando eu te conheci na verdade eu sequer sabia que existiríamos. Nunca me passou pela cabeça que nós pudéssemos estar juntos aqui. Na realidade naquele dia eu estava pensando em outra pessoa. A minha vida era outra, meus planos eram completamente diferentes.” Se você quiser acabar rapidamente com este jantar, vá por essa direção. Não é isto que eu estou recomendando. Agora, historicamente, às vezes, nós cometemos o mesmo pecado – isto que não apenas é permitido mas recomendável na nossa vida afetiva não pode ser transposto para a ciência da história. Eu não posso dizer que necessariamente que aqueles eventos foram a única possibilidade de acontecimento na sua época. O que acontece, a bem da verdade, é que, para tudo o que aconteceu, diversas outras possibilidades de acontecimento foram descartadas, mas cada uma delas levaria a uma combinação de resultados imprevisível. Não é assim a nossa vida hoje? Nós temos expectativas, planos, nós achamos, em algum momento, que dominamos ou temos algum grau de controle sobre esses planos. Todos resolveram fazer vestibular ou vestibulinho em Direito, já estão planejando a vida para daqui a cinco anos e “amanhã eu sei o que eu vou fazer...”. “O que você vai fazer amanhã?”. Eu digo minha agenda... Eu posso morrer! Começando por aí... Posso ser seqüestrado ou, pra evitar ficar nessa linha da premonição do mal, posso receber uma proposta excelente de emprego e o cara me diz “tens dez minutos pra decidir e vinte pra embarcar”. Pode ser isso.
Ou seja: nós temos expectativas e dentre uma série delas algumas se confirmarão e eliminarão as outras que deixarão de existir e sequer serão lembradas. Quando nós narramos a nossa vida pessoal a tendência é nós selecionarmos apenas as coisas que nós achamos que foram relevantes porque nos trouxeram aonde nós estamos e justificamos, às vezes descaradamente: “tinha que ser assim!”. Nós nem temos explicação, exatamente porque aconteceu da forma que aconteceu. “Só podia ser isso”, “estava escrito nas estrelas”. Justificamos dessa maneira.
Historicamente não dá ou, se dá, porque efetivamente é possível, é equivocado. Essa história nova que nos chamamos de uma história de evento é uma história que deve procurar estudar o passado como ele era enquanto presente, ou seja, os atores desse passado desse tempo histórico não sabiam exatamente o que ia resultar dos seus atos, ou se tinham uma convicção inabalável (porque algumas pessoas realmente são assim), eles não tinham controle – era uma possibilidade. As histórias, em regra, não derivam disso, então nós temos que ter muito cuidado nessa descrição. O tempo, aí, não é o tempo linear, é isso que eu estou querendo dizer. Uma coisa engatada na outra e na outra como se fosse uma locomotiva puxando os seus vagões... Porque cada vagão tem a sua história específica. Em algum momento um fato aconteceu e uma série de outros deixaram de acontecer. Nós não podemos encadear os elementos como se necessariamente fosse daquela maneira, como se estivesse “escrito nas estrelas”, ou como se o destino pesasse sobre a história, porque não é assim que funciona. Se nós retrocedermos ao tempo para estudar o passado no seu momento e no seu contexto como se presente fosse, a nossa preocupação não será descrever a linearidade – será a de descrever a singularidade. Nós vamos procurar observar tudo o que está no entorno e não uma linha que me levou ao futuro e que, naquela época, eu nem saberia qual seria. A linearidade me ajuda a explicar as coisas de uma maneira tosca, falsa, no mais das vezes. A circularidade é uma outra concepção de tempo porque leva em consideração a pluralidade dos tempos possíveis que são distintos entre si, inclusive. Um problema do tempo linear é que nós tendemos a massificá-lo para tudo o mais nas nossas vidas. O mesmo tempo linear que é o tempo do relógio, que mede os nossos trabalhos – percebam isso -, hoje é o que mede os nossos afetos, os nossos sonhos, nossas expectativas... Hoje, os nossos afetos são tão lineares e tão enquadrados nessa figura linear que isso já passou pro plano da nossa linguagem. Como os alunos do semestre passado me diziam: “professor, a fila anda”. Quer alguma coisa mais linear do que a fila? É rápido, decida, se não, vá se embora, não fique me impregnando porque eu tenho outra coisa pra fazer. Nós transferimos para os nossos afetos essa concepção que tem se tornado titânica e tirânica de tempo que está ligada ao tempo do relógio da praça que mede o início e o fim do trabalho. Transpor isso pra todos os aspectos da nossa vida é uma das grandes razões das doenças do século XX e que estão aí no século XXI – o stress, a depressão, ligados à ausência de tempo para pensar sobre si, sobre suas coisas.
O tempo é plural: o tempo do relógio não é o mesmo tempo que as nossas consciências se formam, que a nossa maturidade se forma, não é o mesmo tempo que nós temos para aprender ou desaprender. Esses tempos são tempos distintos. Os gregos denominavam um tempo da democracia: kairos é um tempo que se suspende. O tempo da democracia grega se suspendia porque é necessário que amadureçamos o debate para que possamos tomar uma decisão. Não é “pra ontem” a decisão. Não é o tempo do aperfeiçoamento da cultura, do aperfeiçoamento da formação da psique. As crianças evoluem em tempos diferentes. Não dá pra dizer “completastes agora sete anos, daqui em diante já terás isso, isso e aquilo porque a tua mente já está formada nesse e naquele sentido”. Os homens e as mulheres têm tempos diferentes de formação e amadurecimento. Com dezoito anos alguns são protagonistas da sua própria vida e outros esperam o leitinho da meia noite... É diferente. Não dá pra nós medirmos a formação da nossa maturidade, da nossa psique, da nossa capacidade de decisão ou da nossa vontade pelo relógio, pelo calendário. Há tempos diferentes e nós sabemos disso, sentimos isso, mas o que nos domina é uma idéia tirânica de tempo cronológico, e somos exigidos de acordo com ele. Ninguém nos dirá, “toma o teu tempo, quando estiveres bem, tu avanças”. Nos dirão “rápido, tu tens aí uma semana, te vira, dá teu jeito”. São formas de relação de trabalho que a gente tende a espalhar para todo o mais. Os gregos eram muito mais sábios – nesse aspecto e em vários outros – porque a concepção de tempo (nós sabíamos e eles tinham a consciência) não pode ser uma concepção única, mas sim de tempo plural. Na história também é assim – isso que se aplica às nossas vidas se aplica à história, porque a história não está longe daquilo que é a nossa vida cotidiana. Ela não pode estar longe disso. As pessoas de ontem tinham também expectativas e a maior parte delas, como as nossas, jamais se realizará – mas algumas se realizarão. Seja porque fizemos por onde, seja porque demos sorte, mas a maior parte delas não se realizam por uma questão simples, e quase matemática: existem três ou quatro possibilidades e somente uma acontece. Sempre descartamos mais do que temos.
A história tem que recuperar essa forma de entender o evento humano, a participação humana no mundo, para poder reconstruir o tempo histórico como ele era ou o mais próximo disso. A primeira iniciativa é relativizar o tempo linear e considerar a pluralidade de tempos possíveis e a simultaneidade de mundos desses tempos. A pergunta final é: a história dá sentido ao tempo ou o tempo dá sentido à história? A história dá sentido ao tempo – o tempo é uma criação da história e das relações humanas. É ela que dá sentido ao tempo e não o contrário. Entender o contrário seria subjetivar o tempo, seria considerar o tempo um elemento estranho à história e não funciona assim. A história é que significa cada um dos seus tempos e é dentro dela que nós obtemos essa concepção pluralista de tempos possíveis. É com esse referencial que nós vamos trabalhar aqui. Essas duas primeiras aulas de epistemologia da história são para situá-los no meu referencial teórico a que nós vamos voltar de maneira recorrente.

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