sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Teoria da história: segunda aula

O texto a seguir é produto de degravação realizada pelos monitores da disciplina História do Direito e do Pensamento Jurídico, no CESUPA (Belém-Pa), e devido a isso seu tom é eminentemente oral.
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Na aula passada nós tratamos de um tema específico: a pluralidade semântica do termo história. Uma coisa eu gostaria de deixar bastante marcada dentre aquelas que conversamos na aula passada porque será uma preocupação constante da metodologia adotada por essa disciplina. Quando nós nos preocupamos com a precisão semântica de determinados conceitos, quando nós apresentamos a necessidade de definir o conceito sobre o qual estamos falando para depois falarmos alguma coisa a partir dele, nós não estamos simplesmente adotando alguma espécie de purismo metodológico ou excesso de zelo teórico a respeito de um determinado conceito ou de uma determinada linha da ciência. A definição de conceitos é a delimitação daquilo a que esses conceitos podem se referir. É a delimitação, portanto, do horizonte de alcance deles. Dizer o que é história e entender a história por isto ou por aquilo outro não é simplesmente batalhar teoricamente algum cuidado excessivo ou algum purismo teórico. É dizer o que o historiador pode fazer e o que ele não pode fazer. O que faz parte da história e o que não faz parte dela. O conceito traça esse horizonte. O conceito nos permite saber o que nós podemos estudar: o que pode ser tido como verdade e quais são as conclusões possíveis a partir dali. É muito mais do que simplesmente ficar trabalhando um jogo lexical (de dicionário) ou algum exercício de mentalização e memorização. Definir o conceito é, epistemologicamente, definir qual o horizonte de alcance daquele mesmo conceito. Dizendo de outra forma: é definir uma realidade específica. É uma forma de criação de mundos. Definir os conceitos nos permite dizer a que mundo nós estamos nos referindo e o que nós podemos ver a partir daqueles conceitos. Assim, também, quando eu defino o que eu posso ver - aquilo que está compreendido naquele conceito ou naquela área -, eu estou automaticamente dizendo o que eu não posso ver, o que não está compreendido ali.
Não está compreendida no mundo da história, se nós conceituarmos a história como uma ciência do homem no tempo, uma explicação de natureza sociológica. Não está compreendido na história, como seu objeto, como aquilo que ela possa atingir, a explicação das relações de poder dentro de uma determinada sociedade ou a definição de como funcionam os sistemas sociais – não é isso que está compreendido no conceito de história. “A ciência do homem no tempo”, se assim definirmos a história (e é um conceito ao qual eu já vou chegar com mais detalhamento, logo, logo), quando nós o fazemos [definir o conceito de história] nós delimitamos o horizonte daquilo que a história pode fazer e aquilo que ela não pode – aquilo que ela compreende e aquilo que ela não compreende. Foi esse o roteiro que seguimos na aula passada. Foi um roteiro que nos permitiu ver que há uma compreensão da história que é centrada em documentação. A história entendida como ciência – a geschichte histórica –, definida dessa maneira na virada do século XVIII para o século XIX, foi um conceito aurido pelo positivismo histórico. É a idéia de que tudo aquilo que interessa à história (ou está compreendido na história) é única e exclusivamente o que pode ser demonstrado a partir dos documentos históricos. Toda metodologia da história é uma metodologia centrada na análise documental. Quando eu defino a história dessa maneira – a história como uma ciência dos fatos do tempo –, eu estou definindo o que entra nela. Então aquilo que estiver no documento histórico, nos antigos registros, nos arquivos, nos processos da Mesa da Consciência e Ordens ou do Desembargo do Paço em Lisboa, se eu estudar [por exemplo] como funcionava a relação dos processos entre a colônia e a metrópole, como eram julgados os embargos ou os agravos ou as apelações que vinham das colônias do Império Ultramarino português em comparação com os processos que se davam em Lisboa. Os processos físicos, os documentos da época são documentos que podem me ajudar a entender isso. Estão arquivados, existem códices específicos em que esses documentos foram validados – então são documentos válidos. A história eu posso fazer a partir deles.
Mas e relatos folclóricos ou orais a respeito, que foram passados através de uma tradição familiar específica ou de várias tradições orais de uma cidade pequena a respeito de como era entendido o processo judicial no século XVI. Isso não poderia ser considerado, a partir de um conceito positivista de história, como história. O relato oral está para o domínio das lendas, está para o domínio da vida que não pode ser validado – eu não tenho como comprovar a validade daquilo a que ele se refere. Toda história dominada pelo positivismo histórico, por esse conceito de ciência histórica ligado estritamente a documentos, desprezou durante um longuíssimo tempo o folclore e as histórias orais. Desprezou durante muito tempo a tradição oral como se ela não dissesse respeito à história. Quando, no século XX, a revolução dos estudos históricos, seja com a escola de Frankfurt, seja, principalmente, com a escola dos Annales ou a história inglesa, trouxe de volta esses relatos orais e essas tradições como informação e fonte importante da história – como a literatura também, inclusive a literatura popular (no caso brasileiro, a literatura de cordel) -, quando o conceito de história se ampliou para entender a história não só como a história que vinha dos documentos e dos grandes fatos e dos grandes homens, mas uma história próxima do dia a dia, da vida privada das pessoas, ampliou-se a visão daquilo que era ou não história. Mudou-se o conceito, mudou-se a ciência, mudou-se aquilo que eu posso enxergar, aquilo que eu considero parte ou que eu considero fora dessa ciência. Não é, portanto, apenas uma questão de purismo vocabular. Não é uma questão de mentalização de um conceito. O conceito, quanto mais amplo, mais amplo ele define o horizonte daquilo que ele vê. E quanto mais estreito, mais estreito será o horizonte daquilo que ele vê. Então eu estou dizendo claramente pra vocês que hoje em qualquer banca de revista mais ou menos sortida nós conseguimos acesso à boa literatura sobre história. A história se popularizou, no caso brasileiro, de vinte anos pra cá. Existem excelentes publicações de, banca mesmo, sobre história: publicações profissionais como a revista de história da Biblioteca Nacional (excelente publicação) ou a História Viva. E você verá nelas tanto relatos sobre guerras, divulgação de estudos novos sobre a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Paraguai ou o conflito das Malvinas, assim como você verá a história da culinária numa cidade específica do interior do Nordeste brasileiro. E esta história dessa alimentação nessa determinada localidade é uma história que vai considerar as relações estabelecidas entre as classes ali, vai considerar a movimentação das pessoas dentro da cidade, hierarquias que eram estabelecidas, formas de relacionamento familiar. Ou seja, história alimentar era uma coisa impensável em termos históricos no século XIX. Não se acreditava que você pudesse escrever história alimentar. Não que os alimentos não tenham existido ao longo da história humana, mas aquilo não era considerado objeto da história – não era. A história privada não fazia parte da história. A história era “grandes homens, grandes fatos e grandes acontecimentos”. Agora, se há cem anos atrás nós comíamos ou não maniçoba aqui não era objeto histórico – ninguém estudava isso, assim como não estudavam as histórias das minorias, as histórias da vida privada de maneira geral. Uma história baseada em fontes, como exemplifiquei na aula passada, cotidianas para nós – como são dispostos os banheiros dentro das casas em Pompéia. Isso sempre esteve lá, ou pelo menos registrado e gravado historicamente desde que o Vesúvio explodiu numa erupção – isso ficou preservado, petrificado sob aquelas cinzas todas. Isto está lá, há séculos sem que isso pudesse constituir algum tipo de estudo histórico – isso nem passava pela cabeça dos historiadores do século XIX. Eles não são o objeto da história – grandes fatos. Mas como as pessoas se organizavam na casa e tendo como fonte histórica a disposição dos banheiros ou das camas jamais era considerado objeto histórico. O objeto histórico é aquele que está no arquivo – é aquele que está nos documentos. São as cartas entre os grandes generais, são os papiros dos antigos faraós, os contratos dos escribas – esses eram os documentos. Na medida em que o conceito muda a maneira como você vê a história muda também. Hoje nós não fazemos história apenas sobre Napoleão, Hitler ou Stalin. A história é dos anônimos também – há diversos personagens sem nome, sem rosto que compõem um trabalho histórico extraordinário do século XX. Essa é uma revolução conceitual. A
Ao mesmo tempo nós vimos um outro tipo de conceito na aula passada e eu procurei avançar um pouco – ainda que tenhamos que fazer essa consideração outras vezes aqui – quando eu coloquei um sentido de história no final da aula passada referindo-me à história ficção. À história contada – aquilo que é a história dos irmãos Andersen, a história da carochinha, contos populares ou folclore, tradição oral – nós chamamos de história também. Existe alguma proximidade entre a história contada por um Mommsen, por um Toynbee ou por um Marc Bloch e uma história como a da Chapeuzinho vermelho ou são conceitos absolutamente distintos? Hoje a doutrina histórica, que no século XIX afastava absolutamente a ficção – aquilo que se chamava de poiesis -, essa criação, essa invenção, da história dita científica, relativiza a proximidade entre esses dois conceitos. Porque nós entendemos hoje que ainda que a história enquanto ciência dependa da validade do seu objeto – seu objeto deve existir, porque senão não faz sentido o esforço científico histórico - porque é a busca da verdade que funda todo e qualquer esforço científico. Ainda que isto seja absolutamente indispensável, no trabalho do historiador existe sempre uma poiesis. Sempre. É incontornável essa existência. Esse obstáculo, essa dificuldade ou esse elemento são absolutamente indispensáveis ao trabalho do historiador por alguns motivos fáceis de demonstrar: o objeto da história, qualquer que seja ele – sejam os fatos históricos, seja o homem, seja o tempo ou seja todas essas coisas juntas -, não se trata de um objeto alheio ao homem ou externo a ele. Estudar, como exemplifiquei na aula passada, uma descarga elétrica, um raio, o movimento das marés ou a formação de uma tempestade, os cúmulos e os nimbos é estudar alguma coisa externa a quem estuda – é externo ao observador, “isto não nos pertence”. Agora, estudar as repercussões do holocausto para a cultura ocidental no século XX não é alguma coisa exterior ao homem. O objeto histórico se envolve com o historiador e vice-versa. Uma distância não só é possível como necessária, mas jamais a alienação. O historiador não pode alienar-se em relação ao objeto: alienar-se na literalidade da palavra – ele não pode “tornar-se estranho” ao objeto. Isso é uma falsidade epistemológica. Ele não pode se tornar estranho ao objeto que ele estuda e ele não pode se sentir um outro em relação à história porque ele faz parte dela. Por mais distante que esteja o fato que ele está estudando, ele possuirá sempre condicionamentos os quais ele deve reconhecer presentes e tratar de tal maneira que esses condicionamentos não influenciem na deturpação inclusive daquilo que ele está estudando. Dizendo de outra maneira: para que aquilo que o historiador observa não seja uma coisa que convença apenas a ele, mas aquilo que possa ser definido como válido por toda uma comunidade científica. Mas ele traz consigo preconceitos, visões, que ele não tem como evitar porque são carregadas na sua formação e na sua história. É esse o ponto da poiesis. Então o historiador tem um quê de criação de invenção na narrativa histórica porque ele selecionará o objeto – ele selecionará os recortes necessários para o estudo daquele objeto, o que importa e o que não importa – e nisso existem inúmeros condicionamentos pessoais. Isso não invalida a conclusão histórica, não nos afasta da possibilidade de termos uma verdade histórica. Contanto que saibamos reconhecer esses condicionamentos, identificá-los e nos afastar deles na medida em que o método científico o permite. Agora, ignorar esses condicionamentos é o que levaria inevitavelmente ao fracasso da pesquisa histórica. Reconhecer o objeto e reconhecer os condicionamentos e tratá-los é uma condição de possibilidade da verdade histórica. É como se fosse quisesse utilizar uma bicicleta pra percorrer uma trajetória de Belém a Castanhal em quinze minutos – isso não é possível. Agora se você reconhece os limites do seu objeto, os limites do seu método e os seus próprios limites você pode dizer “em quinze minutos eu não chego, mas posso chegar em tanto tempo”. O objetivo é possível se você reconhecer a limitação do seu método. Se você ignorá-la completamente é inevitável o fracasso.
Isso são algumas informações e considerações de cunho epistemológico que eu procurei fazer na aula passada, entendendo a epistemologia como o estudo da verdade ou das possibilidades de uma determinada ciência. Epistemologia é o estudo dessas possibilidades de uma determinada ciência – das suas conclusões, das suas afirmações, da sua verdade. Então a verdade histórica é possível, mas sob determinadas condições, compreendendo que não há uma distância de alienação entre o sujeito que conhece e o objeto que será conhecido ou estudado.
Hoje nós partiremos para uma outra consideração. Nós vamos entender a história como a ciência do homem no tempo. Esse é o conceito que eu escolho utilizar aqui – é um conceito de Marc Bloch. Bloch define e explica em sua Apologia da História a história como ciência do homem e do tempo a partir de seus dois elementos conceituais principais: primeiro, o homem. Nada do que é humano é estranho à história. Aquilo que, entretanto, for indiferente ao homem é também indiferente à história. Como disse no princípio: o conceito define para nós não apenas um elemento de memorização – ele define o alcance, o horizonte, o limite daquela ciência. Para Bloch, a história se ocupa exclusivamente daquilo que toca ao homem. Utilizarei dois exemplos para que isso fique mais claro – exemplos da obra de Bloch.
Primeiro exemplo: um evento geológico que tenha ocorrido há milhões de anos atrás numa área desértica e isolada ainda hoje do mundo. Uma explosão de dimensões apocalípticas, um terremoto de dimensões titânicas... Por maior que tenha sido o evento, se não havia nenhuma comunidade humana, ninguém para ver, e aquilo não afetou o curso de vida de nenhuma civilização ou nação, aquilo é indiferente à história. Não quer dizer que seja indiferente para a geologia, mas é indiferente à história. Se, eventualmente, milhões de anos depois, alguma comunidade habitou aquela região e aquele solo se abriu e todo mundo caiu dentro e morreu um monte de pessoas naquele desastre e as razões deste desastre remontarem à formação daquele terreno (lá de milhões de anos atrás), aí sim aquilo terá algum tipo de repercussão histórica. Um exemplo que ele [Bloch] dá: na região de          Bruges, hoje ainda uma cidadezinha medieval do interior da Bélgica que foi congelada no tempo no seu auge comercial. Foi uma região de intensa comercialização na época do Renascimento Comercial da Idade Média por volta dos séculos XIII e XIV. Todo comércio flamenco se dava pela região de Bruges. Só que, ao longo de uma centena de anos, a sedimentação por aluvião na foz do rio foi afastando cada vez mais o porto da cidade. A cidade foi se interiorizando e porto se afastando dela a tal ponto que já não compensava comercializar naquela região – ela foi perdendo a sua utilidade histórica – e outros portos foram ganhando maior importância: Rotterdam, Amsterdam, e que depois todo também foram se arrebentando ou perdendo a sua importância maior com a descoberta da navegação atlântica. Enquanto a navegação era essencialmente um combinado entre mediterrânica e fluvial esses portos todos tinham uma importância enorme – os portos italianos, principalmente, e os portos que desaguavam em foz de rio. No momento em que um fenômeno físico-  que foi a sedimentação da foz daquele rio – foi atacando a viabilidade comercial do rio, esse fenômeno tem uma importância histórica. Se fosse só um aluvião, a mudança de terras de um lugar pro outro, isso poderia não ter absolutamente nenhum importância – quantas vezes isso acontece por semana no rio Amazonas? Enquanto isso não interfere com algum processo histórico, enquanto isso for indiferente ao homem, é indiferente à história. E diz Bloch, numa frase absolutamente forte e significativa – emblemática. Ele diz que a história é como o ogro da lenda, onde fareja carne humana, lá ele está. É a mesma coisa com a história – onde ela fareja a carne humana, lá ela estará. Ele se refere aos ogros das lendas francesas do século XVIII e XIX – monstros carnívoros. Onde está a carne humana, lá está a história. Se é indiferente ao ser humano, é indiferente também à história.
O primeiro elemento do conceito já define um horizonte – mas isso não basta, porque a antropologia também é uma ciência do homem. A sociologia também é uma ciência do homem. No que efetivamente elas se distinguem da história? Qual é o elemento distintivo da história em relação a todas essas outras abordagens importantes? A história é a ciência do homem no tempo. Enquanto o elemento tempo não é introduzido a história não se individualiza de maneira completa em relação às outras ciências. O que a distingue das outras ciências é precisamente o elemento temporal. Mas então nós estamos diante de uma outra questão: como nós podemos conceituar o tempo? Como podemos entendê-lo? Porque observem comigo um detalhe importante: uma das tarefas de toda ciência é fazer com que aquilo que entendemos cotidianamente, aquilo que nos parece absolutamente simples, aquilo que de tão simples e cotidiano para nós é até invisível se torne consciente e perceptível para nós. O exemplo maior disso é o da nossa respiração: o conjunto de músculos e de operações físicas e fisiológicas que nos permitem respirar. A respiração para nós é uma coisa tão cotidiana e tão banal, repetitiva, que nós não nos pegamos maravilhados a todo e qualquer segundo nos dizendo “estou respirando”. Nós só nos lembraremos de que respiramos quando a respiração nos faltar. Quando for mais difícil para nós, nós nos lembraremos como era bom respirar direito. Esta é mais ou menos a função das ciências – provocar uma espécie de asfixia, providenciar uma suspensão do momento, para que nós possamos perceber, de maneira consciência, aquilo de que nós somos constituídos, ou aquilo que nos cerca, elementos que ficam invisibilizados no cotidiano para todos nós. A função de toda e qualquer ciência implica também epoché, numa suspensão, como se ela nos tirasse da linha normal dos acontecimentos para nos devolver à maravilha dos acontecimentos – noção a qual nós perdemos quando os acontecimentos se tornam repetitivos para nós, quando eles se transformam em rotina.

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