sexta-feira, 1 de julho de 2011

Minicurso sobre hermeneutica do vazio: continuacao

Apenas esclarecendo, na continuacao da postagem, que coloquei a transcricao das aulas gravadas tal como foram feitas. A linguagem e claramente oral e ha diversos erros de grafia no texto que comprometo-me a rever na primeira oportunidade. Como nao impedem a leitura, o texto se presta a divulgacao de ideias, que e o proposito eminente desse espaco. Os mais suscetiveis, deem-me a licenca, por cortesia.
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No dia seguinte (dia 19 de outubro)
Outros elementos (os Vazios representados na obra) (continuação):

Eu queria propor que fizessemos uma retomada de um ponto de ontem que talvez eu tenha atropelado com uma velocidade grande, este que é um dos pontos delicados aqui da representação desse vazio. Eu quero voltar ao item do Padre Vieira, falar novamente do Bandarra, mas principalmente do significado do quinto império.
Vejam lá: essa história, que às vezes a gente ouve falar no ensino médio (pelo menos na minha época eu ouvia; não sei se isso ainda é mencionado hoje), do sebastianismo, de uma doutrina que estave presente lá em Canudos, com Antônio Conselheiro (no nosso caso, por exemplo), da volta do rei Dom Sebastião, do milenarismo, de um misticismo popular (presente na grande Canudos) … em regra se menciona, quando do episódio de Canudos, o sebastianismo (às vezes a palavra milenarismo aparece também). A sensação viva que eu tinha quando eu lia alguma coisa a respeito, ou o professor de história falava no ensino médio, se me produzia a seguinte impressão: “tá bom, mas é uma coisa louca isso, não faz sentido nenhum. Acreditarem que o rei Dom Sebastião voltará. O rei voltando dos mortos... qual o significado disso? Quem é louco o suficiente para acreditar num disparate desse? Por que Dom Sebastião? Que história essa de rei voltar?”.
E depois eu vi o romance “A pedra do rei” (do Ariano Suassuna), o qual tem várias referências ao sebastianismo e ao milenarismo, incorporados a um folclore, a uma cultura popular nordestina. “A coisa deve ser mais séria, deve estar faltando algum elemento da explicação para que eu possa entender direito isso”, eu dizia para mim. E, de fato, alguns anos depois, eu aprendi – e até chegei a escrever sobre isso na dissertação, na época, do mestrado – que nós não tivemos, no Brasil, uma Idade Média cronologicamente datada: quando o país foi colonizado, já estavamos, cronologicamente, na idade moderna (o Brasil e a época das colonizações são um fenômeno moderno). Mas uma questão que é importante mencionar é que nunca (NUNCA) a idade cronológica, a história cronológica coincide precisamente com a história das ideias ou a história das mentalidades. E, do ponto de vista da história das mentalidades, nós tivemos uma idade média relativamente longa.
Explicando-me melhor. A velocidade com que as coisas mudam deve levar em conta o poder inercial que está nas mentalidades e na cultura de um determinado povo. As datas mudam rapidamente, mas a maneira de nós alterarmos o nosso hábito e a visão de mundo que temos é muito mais lenta – ela é inercial – em relação àquelas mudanças que são institucionais, que podem resultar em rupturas políticas. Dizer que hoje caiu a Bastilha e que, a partir de amanhã, somos da idade contemporânea; e que, por outro lado, dizer que partilhamos, todos, da visão de que somos todos iguais perante a lei, são coisas bem diferentes. O marco político não implica necessariamente numa mudança nas mentalidades. Estas mudanças, em regra, são muito mais longas e funcinam sobre – ou a partir de – outros processos muito mais complexos.
O Brasil é uma colônia nova, uma terra nova dentro de um continente absolutamente novo, num processo que mudou a maneira do mundo ver a si próprio, ou dá europa ver o mundo: se desloca um certo eurocentrismo para uma visão de mundo mais larga. Mas a cultura que se implantou aqui era uma cultura medieval, e não uma cultura moderna, com as características que nós costumamos atribuir a essa racionalidade moderna. Vieram, junto com os colonizadores, as crenças, os mitos, as visões de mundo, os hábitos e as tradições, que aos poucos vão se implantando nessa terra também, como uma espécie de espelho da terra portuguesa.
Richard M. Morse, que é um brasilianista (um estrangeiro estudioso da história brasileira), escreveu um livro chamado de “Espelho de próspero”, no qual ele compara a colonização ibérica com a colonização espanhola. E, aqui no Pará, um belo livro que leva o título também de espelho é o “Espelho da natureza”, do Geraldo Mártires Coelho, historiador extremamente poderoso intelectualmente, e que foi publicado no passado.
Eu começarei a explicação sobre esse milenarismo a partir da palavra “espelho”. O espelho, etimologicamente, se liga a uma outra palavra, que é maravilha: a origem etimológica da palavra espelho é a maravilha, o “mirroar”: é a ideia de que na contemplação existe uma descoberta (contemplar algo implica em uma descoberta). Quando nos vemos no espelho, nós estamos nos descombrindo, estamos vendo como somos. Não é, portanto, apenas a reprodução de uma coisa que nós conhecemos; é a representação de algo que nós ainda não conhecemos, é isso que o espelho mostra. Devemos comparar isto com a maneira cotidiana, individual, de encararmos o espelho, como apenas descritivo do que você observa; na verdade, ele é constitutivo. E ele nos ajuda a produzir uma descoberta, a qual não teriamos condições de fazer sem o reflexo, sem essa comparação, sem a externalidade que a imagem do espelho reflete, que ela constitui.
O obeservar-se dentro do espelho implica, portanto, numa maravilha. As descobertas são maravilhas, no sentido aristotélico da palavra. Elas mostram algo que nós não conhecemos, elas fascinam, dislumbram, nos alegram ou nos entristecem: o que nós não somos é indifetentes em relação à descoberta.
Quando a América foi descoberta, ou colonizada (ou, pelo menos, quando ela entra para o imaginário do homem europeu), ela é um espelho, para o homem europeu. Não é que ela esteja reproduzindo o homem europeu, descrevendo o homem europeu, porque a América não é a Europa; mas o que o homem europeu consegue ver, no espelho, que a América representa? Ele consegue ver aquilo que ele não é. E, a partir do que ele não é, ele consegue identificar os parâmetros do que ele é. A descoberta do eu suscede a descoberta do outro. Nós só descobrimos o eu depois de termos descoberto o outro. Essa é uma base da psicanálise jungana – a descoberta do outro sempre precede a descoberta do eu. Observando como as pessoas são, eu começo a imaginar como eu sou. Eu posso ser igual e, assim, me aproximar do que eu vejo; ou eu posso ser desigual e, dessa forma, me distanciar do que eu vejo. A aproximação e o estranhamento são duas possibilidades do maravilhamento provocado pela descoberta dessa representação do eu, que está no espelho. A América é o espelho da Europa: quando ela é descoberta se oberva que o mundo não era do tamanho que estes imaginavam e que, aqui, havia uma série de coisas que nem nas fantasias mais delirantes dos europeus existiria. Os rios do tamanho que eles são; o clima extremamente violento; o indígena e os seus hábitos; a descoberta do selvagem – que reintroduz o conceito de barbárie (e a relação entre civilização e barbárie) entre os europeus. Os europeus começam, diante do espelho, a produzir novamente o maravilhamento a partir das descobertas.
E, dentre todos estes espelhos que a América representa para o europeu do século XV e XVI, a Amazônia é um capítulo especial, um espelho especial. Porquanto a Amazônia, ao mesmo tempo, confirma e surpreende toda a ficção medieval (parte dela derivada da antiguidade) sobre o que seria o paraíso edênico, sobre o que seria o paraíso na terra, depois do homem ter caido dele.
Há vários relatos de viajantes medievais sobre ilhas fantasiosas – e, nisso, muitos dos relatos de Marco Polo. A palavra Brasil vem de uma lenda medieval irlandesa que nada tem haver com o “Pau-brasil”. Esqueçam, portanto, a história que lhes foi contada, se ainda foi esta: o nove vindo da madeira. A palavra Barsil vem de “Haibrasil”, que é uma ilha edênica, a que os medievais atribuiam a uma localização para além da Irlanda. Quais eram as características do “haibrasil”, dessa ilha edênica que seria o paraíso na terra? Correriam rios imensos de leite, os alimentos dariam nas árvores (o pão daria na árvore); a ideia aí é muito simbólica: o pão é a representação simbólica do esforço e do suor do trabalho humano depois que o homem cai do paraíso (“agora, para alimentar-se, você terá que suar”; terá que transformar o trigo no pão, ou seja, sem a indústria e o trabalho você morrerá; mas, nesta ilha paradisíaca (simbólica), o pão dá nas árvores). E quando o europeu chega aqui, ele nomeia uma delas como “fruta-pão” – isso é indicativo, simbólico. Os rios, imensos, onde há uma fartura de peixes que nunca foi vista na Europa.
Então, tudo isso é espelho, tudo isso é maravilha. Eu me maravilho, por que tudo aquilo, de alguma maneira, confirma a ideia de que há um paraíso na terra; mas que, ao mesmo tempo, desconfirma esta mesma ideia (uma vez que, logo depois das primeiras tantativas de colonização, surgem outras expressões para designar esta nova terra bem diferentes de “paraíso” para designar isto aqui: “inferno verde”, “hileia”, “horror” etc.).
Euclides da Cunha, no livro “À margem da história”, tem uma descrição bastante interessante que eu marquei aqui:

Assim, o Ang hou [um dos rios principais da China] aumentou a China com um delta [há três deltas no mundo: um deles é na China, o outro é aqui no parnaíba, e o terceiro é lá no Egito], que uma provincia nova. E ainda mais expressivo: o mississipi assombra o naturalista com a expressão secular do aterro desmedido que em breve chegará às bordas da “alcunputura” [não entendi qual é a expressão professor] onde se encaixa o golf spring. Nas suas águas barrentas andam os continentes dissolvidos [toda aquela sedimentação do mississipi acaba provocando os aluviões e criando novos territórios, a medida que a terra vai se depositando ali], mudam-se países, reconstituem-se territórios, e há um encadeamento tão lógico nos esforços contínuos desses rios, onde incidem grandes energias naturais que se implica em alguma vez em acompanhar-se o próprio rumo de um apelo qualquer da atividade humana. Das páginas de Heródoto às de Máspero, contempla-se a gênese de uma civilização que parte de um delta, e o paralelismo é tão exato e se justificam os exageros, porque, a exemplo do “Echini Kov” [não sei se está certo], vêm nos grandes rios a causa preeminente do desenvolvimento das nações [ou seja, acompanhar o curso dos rios é acompanhar, geograficamente, o desenvolvimento da história das civilizações, como acontesse com o Tigres e com o Eufrates. Todo o comércio se desenvolvem alí, as grandes cidades começam em torno daquela área, que é o crescente fértil… todos que foram meus alunos se lembram de eu ter mencionado em algum momento isso. E aí vem a virgula...]; ao passo que no Amazônas, o contrário. O que nele se destaca é a porção destruidora, exclusiva. O enorme caudal está destruindo a terra (…).

“Todos os rios constroem”; para Euclides, o Amazonas destrói. Nenhuma cidade dura muito tempo às margens do Amazonas, por que as terras caem, os aluviões mudam de lugar. É tanta terra misturada àquela água que não adianta tentar controlar a força do rio, ou imaginar que aquilo vai formar um delta lá na frente, ou um aluvião, porque as águas avançam muito pra dentro do oceano, e depois as correntes marinhas, principalmente as do golfo do México, levam tudo aquilo lá para a Flórida – no golf spring –, e se disperçam por ali... ou seja, nem a construção de um delta se pode aguardar do Amazonas.
Havia alguns autores que descreviam o Amazonas, na época mais insólita, dizendo: “The king is builting his kingdom” (o rei está construindo o seu reino) – quer dizer, o rei é o Amazonas; Euclides diz que não: o Amazonas não está construindo reino nenhum. Ele simplesmente destroi essa terra e faz com que, aqui, não se possa criar nada. Enquanto o curso de todos os rios é o curso civilizatório; o curso do Amazonas é o curso anticivilizatório, para o Euclides. E o que é impressionante é que em várias passagens do “Safra”, é esta imagem que aparece: o rio é invencível, as terras que vão caindo passam em enormes pedaços, boiando ao longo do rio… e a imagem do rio, no momento das inchentes, é da destruição. É como a visão de um mundo que vai mudando de lugar para lugar: “hoje eu estou aqui, mas amanhã vou ter que me mudar por que a erosão já comeu aqui os pés da minha casa”. Você não pode construir nada verdadeiramente sólido e durável, por que o rio não permite, o rio muda tudo.
Então, o rio é um dos elementos desse espelho. É aquele em que nós temos o portento titânico que se imagina nos momentos iniciais da humanidade, no paraíso, porque ele é quase como uma entidade gigantesca, titânica, do início de todos os tempos; uma entidade mitológica: e isso é maravilha, é deslumbramento e fascínio; mas, ao mesmo tempo, ele não permite que se construa nada. Aí já entra o desespero e o horror que não fazem parte do sonho edênico, paradisíaco, do sonho da construção civilizatória que, em regra, se conta da história dos outros rios. Então, ele produz uma imagem de disolação, destruição, e não uma imagem de construção. Essa é uma referência importante.
Você tem, nessa imagem da representação do espelho, ao mesmo tempo, essa maravilha da descoberta daquilo que imaginavamos existir; mas também da surpresa da disolação que essa realidade provoca. Então, é o paraíso e o inferno ao mesmo tempo.
Ele [Euclides da Cunha] tem outras passagens aqui muito fortes também, e essas imagens vão se reproduzindo ao longo do “Safra”.
Ontem eu mencionei uma passagem em que o Valentim esta citando o Major Leocádio, e ele diz que “aqui tem tudo, mas não tem muita coisa para fazer com isso; tá tudo aqui, mas nós somos sós, não tem muita coisa a se fazer …”.
Na releitura do texto do Euclides (“À margem da história”), tem uma passagem que começa assim: “Na Amazônia, tem tudo e falta-lhe tudo”: é quase a mesma lógica que o Valentim está usando para descrever o pensamento do Major Leocádio, no “Safra”.
Uma outra que é fortíssima, falando sobre a hileia prodigiosa, a imagem do paraíso edênico que tudo dá, que é imenso, que é intenso e absolutamente gigantesco etc. ... Euclides diz, logo depois desta primeira:

“Além disso, sobre o conceito estritamente artistico, isto é, como um trecho da terra desabrochando em imagens capazes de se fundirem harmoniosamente na síntese de uma impressão impolgante é de todo inferior a um cem números de outros lugares no nosso país. Toda a Amazônia, sob esse aspecto [o artístico], não vale um segmento do litoral que vai do cabo frio à ponta do munduba; é, sem dúvida, o maior quadro da terra, porém chatamente rebatido num plano horizontal, que mal a levantam de uma banda à feição de resto de uma enorme moldura que se quebrou, às serranias de arenito do monte alegre e às serras graníticas das Guianas. E como lhe falta a linha vertical, pré-excelente na movimentação da paisagem, em poucas horas, o observador sede às fadigas de monotonia inaturável e sente que o seu olhar, inexplicavelmente, se abrevia nos sem fins daqueles horizontes vazios e idefinidos como os dos mares”.

A passagem é enorme, o quadro é o maior da terra; mas é absolutamente monótono. Tudo acaba se assemelhando, todo acaba sendo a mesma coisa, a paisagem não muda: não tem as grandes montanhas, não surgem os vales as surpresas escondidas na paisagem…
Quando, ontem, descrevemos a morrinha, a partir do Valentim, vimos que é justamente isto: é não buscar detalhes na paisagem. Você observa a paisagem, e ela é assim todos os dias. Mas há uma outra passagem que me lembra muito essa descrição: é quando se fala do lago. Logo depois do episódio em que chega a rainha do café ele faz a descrição do lago [é quase exatamente isso que diz Abguar]: quando o Mário Dalmata [aquela brincadeira com o Mário de Andrade] observa com o binóculo a paisagem, alguém vai dizer “bem, aqui tem um lago, o ponto turístico da nossa localidade”; e Mário Dalmata pergunta a um dos vereadores que o acompanha: “e não tem mais nada aqui além do lago?”. “Não, não tem; é só o lago”. E o Abguar Bastos faz a seguinte consideração: é nesse lago plácido que acabam sempre sucumbindo todas as nossas esperanças, inclusive as esperenças geográficas”.
Isto ser um lago é bastante indicativo para esse ponto que eu li ainda há pouco para todos nós aqui. A imagem é monótona; você não espera que um lago tenha ondas, ou que ele aumente, ou que ele diminua, ou que ele mude de lugar... o lago é sempre uma fronteira em contraposição ao mar. No mar, se você se direcionar para ele, na sua profundidade, você não sabe exatamente onde vai parar: tem as correntezas, os movimentos inesperados, tem as distâncias às vezes invencíveis... mas o lago não; ele é predeterminado, tem início, meio e fim: o lago não mudo, o lago é monótono. Existe uma descrição desse vazio geográfico aqui também no romance.
Mas ontem eu fiquei de mencionar outros vazios. Quero, para isso, voltar a história do Vieira. Acabei fazendo um desvio longo, mas quero retomar à história do Vieira (para se falar do vazio corrozivo).
Há uma citação do Padre Vieira que diz o seguinte, sobre como é que os Jesuítas e os Beneditinos viam os selvagens aqui, e nós mencionamos isso ontem:

Em 1762, o bispo do Grão-Pará, aquele estraordinário Fr. João de São José – seráfico voltairiano que tinha no estilo os lampejos da pena de Antônio Vieira – depois de resenhar os homens e as cousas, “assentando que a raiz dos vícios da terra é a preguiça”, resumiu os traços característicos dos habitantes, deste modo desalentador: “Lascívia, bebedice e furto”. Passam-se cem anos justos. Procura-se saber se tudo aquilo melhorou; abrem-se as páginas austeras de Russel Wallace [um dos viajantes estrangeiros que eu emncionei ontem], e vê-se que alguma vez elas parecem traduzir, ao pé da letra, os dizeres do arguto beneditino, porque a sociedade indisciplinada passa adiante das vistas surpreendidas do sábio – drinking, gambling and lying – bebendo, dançando, zombando – na mesma dolorosíssima inconsciência da vida… (À margem...)

A frase última aqui me esteressa um pouco mais... “inconsciência de vida”... é o ambiente em que Valentim está, e que estão os pés de boi. Lembrem-se que ontem eu citei uma passagem em que ele fala sobre os destinos dos pés de boi: alguns vão para o comércio, tentar se endividar um pouco mais e obter algum crédito; outros passam direto para o cemitério [estão mortos]; outros acabam sendo presos; e outros, os que vão para a taberna, acabam se embebedando.
A lascívia é representada aqui por outras duas personagens, a China e a Maria preta: China é uma prostituta que se entrega apenas aos presos. Há duas categorias de presos no “Safra”: aqueles que são soltos e vivem sob a ordem da justiça para servir aos delegados, promotores e juízes [eles trabalham como escravos desses funcionários], e em troca disso o juiz libera: ele está cumprindo pena, mas cumpre pena trabalhando. O único condenado que está preso é o Valentim (aliás, acusado; não é nem condenado). E é uma situação absolutamente desigual: ele não pode sair mas os outros todos saem; e a China é a prostituta que se entrega a todos os outros presos. É, inclusive, interessante a história dela: de quando ela se sente maior que alguém. Porque por mais que, na cabeça dela, ela ocupe o nível do chão nas atividades, com os presos ela sabe que tem um buraco mais baixo, mais fundo que aquele onde ela se encontra: eles são mais miseráveis que ela, é por isso que ela só vive com os presos. E a Maria Preta materializa um outro tipo de lascívia, que está ligado ao personagem manduca – o filho do Valentim.
Mas voltando ao ponto propriamente do Vieira: essa descrição de lascívia, de bebedeira, de mentira e furto, desta inconsciência de vida, é o obstáculo ao estabelecimento do quinto império. E este é um ponto importante e impacífico. O que é o quinto império? Onde entra o sebastianismo e o milenarismo?
A história de Portugal é uma história marcada por aquilo que se chama de “o milagre de Ourique”, que eu mencionai rapidamente ontem. A criação do reino Português, após a vitória de Dom Afonso Henriques, na batalha de Ourique, que salva lisboa do cerco (ou quebra o cerco de Lisboa), e eles invadem a cidade e espulsam os mouros, com um exército muito pequeno, e um ano depois morre Dom Afonso Enriques: nós estamos falando de 1139 – ano da libertação de Lisboa e da fundação do Reino Português.
O início de Portugal é um início místico: a história tem esse confroto com o misticismo muito grande. Porque é como se Dom Afonso tivesse sido dotado especialmente de poderes para a libertação de Lisboa, uma vez que na batalha de Eurique, ele teria visto, como Constantino, o símbolo da cruz; e também teria sido dito a ele, com a voz do além, que “oxi signu vincis”, ou “com este signo/símbolo vencerás”. A mesma história da conversão de Constantino ao cristianismo na época do Império Romano, por volta de 313 d.C. Logo depois da retomada, Dom Afonso morre. Então, o início de reino Português é profundamente marcado por essa ideia mística de que aconteceu um milagre em Ourique. Milagre foi o aparecimento da cruz e a destinação que foi dada ao infante de Ourique, da libertação de Portugal.
Séculos depois, com Dom Sebastião, já na época de franca expansão de Portugal (depois da criação de um Império Português realmente, o Império Ultramarino), na batalha de “Acásia e Kirbe” [não sei se são essas as batalhas], no norte da África (com Portugal expressando pretensões de expansão muito claramente definidas, com o intendo de compor um império fora daqueles limites territoriais que, para Portugal, são muito difíceis de manter: Portugal sempre se viu apavorada pelo domínio espanhol, porque não havia alternativas, só o mar. Então, foram para a África e de lá expandiram para o resto do mundo… ). Dom Sebastião era herdeiro desta pomessa manuelina, de expansão territorial, que estava envolvida profundamente com a história da contra-reforma: como Portugal tinha uma delegação cristã mística (católica), os herdeiros dessa obrigação eram todos os reis portugueses, e Dom Sebastião sucumbe também numa luta contra os mouros no norte da itália; mas niguém viu o corpo de Dom Sebastião. Volta-se da batalha aguardando-se que Dom Sebastião retorne, e isso acaba espandindo-se numa grande crença popular, e mística, porquanto como ele não volta logo de início (e não vai voltar nunca) inicia-se um período traumático para os Portugueses, que é o da união ibérica. Ou seja, o domínio espanhol legítimo sobre as terras de Portugal. Então, o Dom Fellipe acaba assumindo o governo com a união das duas corroas, sendo que o herdeiro da coroa portuguesa seria um espanhol. Isso era o maior pesadelo dos portugueses, que a Espanha efetivamente conseguisse dominar o reino português (o que acaba acontecendo com o não retorno de Dom Sebastião).
Um elemento unificador da resistência portuguesa tanto nas cortes mas principalmente entre os populares era esta ideia de que o rei, um dia, retorne. E aí já não se está falando propriamente do Rei Dom Sebastião, da figura pessoal e individual deste rei, mas sim se está falando do retorno do reino português: o que se tornou uma crença e um desejo popular de resistência. Isso permitirá aos portugueses articularem golpes, resistências, suas estratégias de expansão territorial – inclusive, ou principalmente dentro da Colônia. Vocês devem lembrar que durante o período da União Ibérica a resistência portuguesa – chamemos assim, apesar de não ser uma resistência como a francesa da revolução, da guerra – aproveitou para expandir o território para além – muito além – do tratado de trodesíllias aqui na Colônia. “Ora, Portugal e Espanha, somos todos a mesma coisa...”: então, avança-se para dentro do território. E isso numa ação mais ou menos coordenada.
Onde é que entra o milenarismo nisso? O milenarismo já era uma crença popular, medieval. Sua ideia era que depois dos primeiros mil anos de história todos os reinos da terra iriam sucumbir, e se levantaria um império que duraria mais de mil anos – o Império de Deus na terra. Esta é uma crença que se tornou profundamente popular a partir das profecias de Daniel, dentro da Bíblia. O milenarismo, portanto, vem da exegese, da hermenêutica das profecias de Daniel. O tempo de duração – Daniel decifra o sonho de Nabucodonozo (que era o rei da Babilônia, e escravizava os hebreus) – de todos estes reinos na terra é por ele descoberto, professando ,assim, o fim de todos eles. Aí ele será jogado aos leões, aí vem toda uma história mais conhecida… e que era ensenada no teatro popular, e cantada pelos menestreis medievais como a grande grande novela de seu tempo, de séculos. Isto era sempre representado nas festas do Divino, que vêm ao Brasil também – e vão se enraizar profundamente no Nordeste. E, inclusive, a festa do divino aparece no “Safra”, só que na Amazônia ela vai se misturar profundamente com o batuque, com as traduções do candomblé, dos descedentes de indios e escravos daqui… a festa sempre tinha a representação do Daniel na cova dos leões, logo depois de ter decifrado o sonho. E a ideia era de que isso seria o ano Mil, que era o ano das grandes preocupações dentro da Idade Média, das primeiras ideias e esterias sobre apocalipse, porque no ano mil, a princípio, a coisa toda aconteceria: seria o primeiro prenuncio do fim do mundo e, depois, o reino de Deus se estabeleceria.
Apesar de isto não ter acontecido no ano mil, este é um pequeno detalhe: isto não importa para a profecia e para o misticismo. O fato era que em alguma momento aconteceria – e quando acontecesse teria mil anos. E isso tudo é recuperado e misturado com o sebastianismo, porquanto o sebastianismo, como disse ainda a pouco, ele transcende a figura de Dom Sebastião e vai se imaginar o retorno de um outro império, que é o Império português. Só que aí entra o “pulo do gato”, com o Padre Antônio Vieira alguns anos depois, depois da Restauração (com Dom João IV, em 1640). Quando Dom João IV restaura o governo português, Vieira que era seu principal assessor e o intelectual da corte vai dizer “esse é o império que nós estavamos aguardando”. Era o império milenarista; é a restauração do cristianismo católico, porque os portugueses nasceram com este signo, nasceram com o símbolo, e agora o Império está sendo restaurado, expalhano-se pelo mundo inteiro (os portugueses estavam nos cinco continentes). Um povo e um reino que tunham sido fundados sob o signo da cruz, que consegue escapar da expoliação e do domínio espanhol e que se restaura já estando no ultramar. Então, para Vieira, tudo fazia muito sentido: “isso está acontecendo com os portugueses por uma missão muito específica: esse é o Quinto Império – depois dos quatro Impérios (dos fenícios, dos babilônicos, dos romanos e dos hititas) terem acabado, agora entra o Quinto Império, o português. Nós temos o mundo”. E ele tem o espelho em que essa maravilha é representada, que é esta colônia aqui, a colônia brasileira – especialmente esta área de domínio absolutamente insólito, que é a Amazônia. Aqui é o grande desafio do Império.
Por que ela é o grande desafio do Império? Porque é aqui onde todas as forças serão testadas; é aqui na Amazônia é que se dará a luta entre o bem e o mal. Ele vê isso com muita clareza: a mesma clareza que o levará a Inquisição – o homem que era o braço intelectual de Dom. João IV. Ele mesmo que apodrecerá nas prisões da inquisição, sempre pedindo revisão de processo, mas sem retificar nada do que ele disse. Por que ele acredita que é aqui que essa luta se estabelecerá? Porque nós temos o confronto, como disse ainda a pouco me referindo ao espelho, entre o gigantismo titânico das forças da natureza e o intuito civilizatório de resgatar aquelas almas a partir da catequese, do desafio da implantação de núcleos civilizatórios com a lei, com o governo, com a implementação das magistraturas, das ordenações portuguesas, enfim... de todo um sistema de trabalho e indústria que poderia regatar o homem dessa “incosnciência de si”. Ou seja, essa inconsciência de si seria resgatada através do valor do tarbalho, sublime para os jesuitas. Eles lhe davam com a catequese dessa meneira, ela era feita através do trabalho: da incorporação dos índios primeiro aos aldeamentos (eles saiam do interior da terra eficavam nos aldeamentos, bem próximos das vilas) e, a medida que fossem assimilando a cultura do português, eles iriam sendo chamados dos aldeamentos para as vilas. Era nos aldeamentos que se dava o aprendizado das técnicas de agricultura, principalmente com a rotatividade de culturas que o indígena não tinha (e a ideia era estimular isso: essa tese da monocultura foi revista na déc. de 90 pela Maria Hieda Linhares, e hoje se sabe que eles insistiam muito na rotatividade das culturas ao invés da plantação de culturas únicas, que prosperou sim em dados momentos e em certos ciclos econômicos), rotatividade de culturas para que a terra fosse aproveitada como um todo, e ensinavam os “resites” [não sei se é esta a palavra] e a língua portuguesa (eles próprios falando em Guarani e em Tupi). Para aqueles indios que se civilizassem – isto quer dizer, em termos da legislação das ordenações portuguesas, aqueles que jurassem fidelidade e homenagem (que é um instituto tipicamente feudal) ao rei – viriam às vilas: eles não poderiam ser incorporados antes de prestarem homenagem e se colocarem como súditos do rei.
Depois da expulsão dos jesuitas daqui, na época pombalina, o sistema de aldeamento continua, mas ele vai ser transformado naquilo que o Pombal implanata como o Diretório, a princípio – sendo realizado na Amazônia pelo irmão dele, Francisco Mendonça Furtado, que vai mudar o nome dessas localidades todas aqui: aparecem Obidos, Breves, Santarém, cidades que, antes, tinham todas nomes indígenas, passando a adotar o nome de cidades portuguesas.
Então, a ideia do milenarismo é de luta entre o bem e o mal nesta terra, que é onde os jesuitas irão se concentrar de maneira muito forte (jesuitas e beneditinos).
Há uma passagem do “Safra” em que um personagem português, que é o Teotônio, o advogado, tem uma conversa com um homem – um indio – que está sendo espoliado por um homem branco, que era um agiota (o índio tinha contraido uma divida com ele, já tinha pago cinco vezes a dívida, e deu, inclusive, a filha dele para o agiota; e o Teotônio ficou absolutamente revoltado com isso). E ele espelha uma filosofia que o Teotônio chamará de “filosofia da natureza”: logo após o Teotônio ter dito como iria resolver o problema da dívida, que é para ele não pagar mais, o advogado pergunta para o sujeito expoliado “e você não quer processar o agiota por ter seduzido a sua filha?”. O indio baixa a cabeça e diz que não, porque a mandioca que já foi arrancada não se planta mais. E ele começou a discorrer uma pouquinho mais sobre isto, sobre a filosofia da natureza. O Teotônio fica profundamente imprecionado com isso porque ele diz “a mandioca é uma raiz: no momento em que ela é arrancada não se planta mais, porque ela deixa de ser a raiz e não dará mais, não volta para o solo de onde foi arrancada”. Teotônio vai dizer que todo o pensamento do indígena é baseado nessa comparação ou nesse espelho de natureza onde ele está: pensar os valores e as ações de acordo com aquilo que dá e aquilo que não dá, e aquilo que não dê para fazer não se discute, você se resígna diante daquilo.
O que é interessante é que, no mesmo momento em que ele está tendo esta conversa, tem uma outra pessoa na sala, que é a esposa do Valentim, estando aí para pedir ao Teotônio que livre o Valentim da prisão. E aí nós entramos em outro dos vazios, que é o vazio que eu quero tratar agora: o vazio da justiça.
As perguntas que o Teotônio vai procurar se fazer (e se ele tem algo efetivamente para fazer pelo Valentim: ele sabe que o Valentim está preso em condições que os demais presos não estão, mas ele não quer, por sua vez, pedir favor político para o Dalvino para poder liberar o Valentim. Ele, em nenhum momento, raciocina sobre a prisão do Valentim em termos jurídicos, mas apenas em termos políticos) mostram que trata-se, aquela situação toda, de uma grande farsa entre os poderes políticos que disputam os cabras ou os pés de boi da região (um pé de boi está protegido por este, ou, senão, por aquele, mas sempre protegido por algum; caso contrário, é preso).
A passagem em que nós percebemos isso é a passagem do Chico Polia ( o soldado, metido a filósofo; ele lia alguns livros que emprestavam e teve convivência durante algum tempo com o marujo Tobias, um carioca que viajava o mundo inteiro, e era o máximo que ele conseguia ver de uma pessoa que era cosmopolita: a imagem que vinha a mente do Chico Polia sobre o marujo era a de um sujeito cosmopolita, que conhecia o mundo. E o Chico tinha uma veneração quase que sobrenatural pelo Tobias, porque o mundo que este via era o mundo que aquele nunca poderia ver. Ele conhecia apenas aquele mundo que ele via imediatamente, limitado pelos rios solimões e cuaribe e Manaus.), logo no inicio do livro, que fala o seguinte:

“Então, nós, soldados, que arriscamos a vida para que os outros vivam em paz, nós fedemos; eles, que não tem essas obrigações é que cheiram – dizem essas beatas e esses carolas frouxos. Os indios não param de matar os pobrezinhos. Sim, também tenho pena, mas por que choram mais pelo Frade do que pelo soldado? Olha aqui, eu sou ignorante mas não ingulo na primeira bocada o que o freguês me empurra: olho primeiro e me certifico; não estrago a língua por precipitação; não engulo anzol. Por isso é que sei que, de dez em dez anos, enquanto morrem dez frades, morrem meio milhão de soldados. Seu promotor me disse que na guerra do alemão [a Segunda Guerra Mundial], uns cinco ou seis milhões foram pra debaixo da terra, e o que escapou valeu que tem no corpo alguma coisa inteira. Na sepultura, todos nós somos iguais, o frade e o soldado. Isto é que é; nesta justiça eu acredito; a outro, eu reneno”.

A justiça, para o Chico Polia, é uma justiça que só pode ser compreendida de uma maneira, ela só tem uma natureza: é a justiça como igualdade, uma justiça constituida aí, e que lembra o pacto abstraido pela teoria da justiça rawlsiana. Nós imaginamos toda uma situação original, que é uma situação de igualdade, e nesta condição – e apenas nesta condição – nós teriamos a possibilidade de constituir um pacto sobre o que é verdadeiramente importante, sobre quais são os valores e bens básicos da constituição de uma determinada sociedade [a sociedade democrática]. Essa decisão sobre este pacto, essa decisão civilizatória, é uma decisão sobre justiça, porquanto se trataria das condições e dos critérios em que os bens produzidos coletivamente poderiam ser distribuidos. Então, tudo aquilo – todos os bens e valores que são produzidos coletivamente – deveriam ser distribuidos de alguma maneira, e cada sociedade tem a possibilidade de constituir, na “tonta” [também não sei se era esta a palavra] do pacto, essa decisão de justiça. A primeira decisão seria sobre os critérios de distribuição – uma decisão de justiça. Uma frase de impacto na teoria de justiça rawlsiana é justamente aquela que diz: “Enquanto, para a teoria e para a ciência, a verdade é o valor principal, fundante [porque não há teoria sem verdade]; para a sociedade, é a justiça”. Não há sociedade sem justiça, sem uma decisão sobre o que seja o justo, e uma decisão que possa ser racionalmente compreendida por todos nós.
A descrição desta sociedade (desta pequena sociedade) feita pelo Chico Polia e pelo Valemtim, mas aqui principalmente pelo Chico Polia, é de uma sociedade me que esta decisão [sobre a justiça] não tem lugar: não há lugar para uma decisão desta natureza nesta sociedade, porque não há aí uma lógica de funcionamento desta sociedade baseada na igualdade; a única coissa que impera aí são as forças da natureza. Mesmo aqueles que integram essa sociedade humana se submetem de alguma forma a essa força: mesmo aqueles que são considerados os poderosos, porque eles também são considerados poderosos dentro de um limite muito restrito, absolutamente restrito, daqueles grupos. Quando a Rainha do Café aparece na cidade, se perguta: “bem, quem é o Rei da Castanha?”. E cadê uma daquelas pessoas da comunidade que saiba dizer quem é o rei da castanha? Quando a Rainha do Café sai é que eles vão começar a mimetizar estes hábitos, aí o Dalvino manda fazer um cartão: “Chefe Dalvino, o Rei da Castanha”. Aí compra uma Kodac para a mulher dele, um alvinho também para ela, e as filhas começam a utilizar determinadas roupas que vieram na “entona en turragie” [não sei se está certo] da Rainha do Café... aquilo não é do lugar, não tem um sentido específico naquele lugar. Os poderosos, desse ponto de vista, são iguais a todos os demais quando em confronto com a natureza. Esta confronto invencível que ele procura descrever aqui, entre Natureza e Cultura, é invencível, porque o obstáculo era a Natureza: as casas não conseguem se estabelecer por muito tempo (disse ainda há pouco a vocês); o pasto não tem lugar; a castanha é um ciclo (todos eles sabem disso) … e o desfecho grande da história é que, depois de uma noite de bebedeira, uma véspera de natal, o Chico Polia resolve, ele próprio, tomar uma iniciativa de liberar o Valentim: o promotor não dá queixa; o juíz não quer se meter; o delegado empurra para os outros dois; e o Chico Polia diz “vou eu fazer”.
Então, na véspera do natal, ele se enche de cachaça, acaba dormindo, mas na madrugada ele acorda e toma a decisão de abrir as portas da cadeia e libertar o Valentim. Ele diz para o Valentim fugir para um lugar distante, porque depois ele vai dar uns tiros para cima e fazer de conta que estava perseguindo o Valentim, mas ele não conseguiu apanhá-lo etc., e ele faz um relatório e tudo se resolve. Aí, ele efetivamente liberta o Valentim. Ele passa o dia pensando o que ele vai dizer para o tenente, que é superior a ele. Pela tarde, a mulher do Valentim procura o Chico Polia perfuntando o que ele vai fazer, o que ele vai dizer, como é que ele vai se livrar desse problema. E ele diz o que está pensando: “bom, simulamos uma fuga e uma perseguição …”; e a mulher vai se embora. De noite, quando ele está prestes a se apresentar ao tenente, quem chega na cadeia é o Valentim. E o soldado, pressionado, pergunta o que ele está fazendo alí, enquanto ele deveria estar muito longe. E o Valentim disse que não, que ele não queria fugir naquelas condições: se ele fosse fugir para prejudicar o Chico Polia, ele não aceitava esse benefício, porque o Chico Polia ia acabar sendo definitivamente punido. Aí ele entra na cadeia, ele próprio fecha as portas e entrega a chave para o Chico Polia, e fica lá dentro. E o Chico Polia fica sem saber o que dizer.
O desfecho daqui do livro é que a decisão sobre o justo veio precisamente da vítima da “Justiça” (entendida como instituição): a vítima da “Justiça” é a única aqui que consegui realizar essa mesma justiça que ele está procurando, porque ele se considera numa situação de igualdade com o Chico Polia; o Chico Polia não é o carrasco, é aquele capaz de reconhcer o outro no romance, é o único até o final que tem esta capacidade: de reconhecimento do outro e do estabelecimento de uma ética a partir da auteridade. Eles são os personagens que conversam (Chico Polia e Valentim); a condição que o Chico Polia estabelece para si próprio de libertar o Valentim é uma condição auto-imposta, uma condição de dever em que ele se coloca, já que o sistema não vai se manifestar: o “soldado filósofo” é dominado por uma outra linguagem que é uma que passa muito longe da linguagem legal, qual seja, a linguagem da igualdade. A lógica com a qual ele funciona não é a lógica do pensamento do Chico Polia. A lógica com a qual a justiça deve funcionar para o Chico Polia é a da igualdade, e ele se coloca nesta condição de igualdade que o deixa em face de uma dever de empatia. A empatia em que o Chico Polia se coloca, de reconhecimento da dignidade do Valentim, é a mesma com a qual o Valentim vai devolver a ele o reconhecimento: a relação de alteridade vai se desenvolver efetivamente entre eles dois – os únicos que tem deveres reciprocamente um com o outro.
É esso o ponto em que quero chegar aqui: não há um dever ou um reconhecimento do dever de Chico Polia em relação aos seus superiores; não há uma relaçãode dever e de obrigação – e, ao mesmo tempo, de direito (é uma relação sinalagmática) – do Valentim em relação ao Dalvino, em relação ao Leocádio, ao Bento; não há também uma relação de dever entre Juiz e o promotor, entre o Juíz e o delegado, entre eles e os seus coronéis: eles apenas obedecem aos seus coronéis, assim como os pés de boi obedem a eles também. Mas não é uma relação de dever, e sim de submissão: a mesma relação que o homem tem em relação à natureza aqui. Assim como quando a maré seca, eu não tenho como baixar a castanha, e eu me resígno; assim como quando a mandioca é retirada do chão, ela não pode ser plantada novamente, então o mal que se produziu na raíz é o mal que fica, ele não muda – é isso que o indio está querendo dizer –, e a única coisa que eu tenho a fazer é me resignar… enfim, isso tudo não é uma relação de dever, não é uma relação na qual eu reconheço uma obrigação perante o outro; eu simplesmente faço porque eu sou mandado e não tenho como resistir a isso…
A única relação que se estabelece de dever é na única relação de alteridade que se estabelesse aqui, que é entre o Chico Polia e o Valentim. É por isso que dá uma reciprocidade aí: Chico Polia reconhece que só ele pode libertar o Valentim, e que é justo que ele o faça, ainda que ninguém faça o mesmo. E, igualmente, o Valentim reconhece que é justo que ele permaneça na cadeia, não porque ele não tinha razão em matar o Bento, mas porque ele não pode produzir o mal para o Chico Polia: ele não pode retribuir o bem com um mal, e sim com outro bem.
O Emanuel Levinas, um filósofo francês de primeira grandeza, aí da segunda metade do século XX [pelo menos a maior parte da obra dele foi produzida nesse período], elege a ética como uma filosofia primeira, porque, para ele, a filosofia não é uma filosofia do ser; ela deve ser pensada como uma filosofia do outro: é a partir do outro que nós podemos estabalecer algo sobre o ser.
O que acontece no final desse romance me lembra muito esta proposição da filosofia de Levinas: as únicas relações de dever, as únicas obrigações de direito, o único reconhecimento do justo, o único pacto, sem palavras, um pacto silencioso, que permite o estabelecimento do justo, aqui, aparece entre Chico Polia e o Valentim.

Um tema que muito me agrada é o da desisntitucionalização do Direito. Eu quero dizer que a realização da justiça não se dá pela instituição Justiça; a realização da justiça se dá pelo reconhecimento da inviolabilidade do outro. Quem realiza a justiça aqui não é o delegado, não é o juíz, nem o promotor. E nem o Teotônio – que é sábio e digno –, porque ele não vai se manifestar, não vai se mexer: quando o Teotônio fala sobre o caso do Valentim, ele começa a fazer um discurso muito interessante sobre a injustiça no mundo – a injustiça dos poderosos etc. –, e o Abguar Bastos descreve a esposa do Valentim num canto da sala, e o Teotônio começa a discursar para si, esquecendo completamente que ela está lá. E é interessante que a outra descrição é que ela ficou tão deslumbrada, porque as palavras eram tão bonitas, e ele falava tão bem, e ele estava gastando um tempo enorme com ela … na verdade, ele não esta gastando tempo nenhum com ela: ele estava discursando sobre uma ideia, mas ele não fez nada a partir daí: ele não entrou em confronto com os coronéis; ele não se dispôs a pedir um favor para um deles, nada disso.
Ele tinha guardado no escritório dele um balão de Álcool, e sempre depois dessas visitas ele cheirava o balão de álcool e lavava as mãos com álcool, ou seja, uma figura isolada, absolutamente rígida. A única vírgula que o Abguar Batos coloca nesse comportamento de Teotônio é que, depois dele ter feito aquele discurso todo e ela ter ficado enlevada por ele ter se preocupado com a questão dela, como se o discurso representa-se essa preocupação, ele não lava as mãos depois que ela sai. Em uma única frase, o Abguar Bastos escreve isso: ele não cheira o balão e não lava as mãos, como ele sempre fazia. Ou seja, a única coisa que me ocorre é que o Teotônio, pelo menos na sua dignidade, tenha a coragem de ter vergonha: ele teve vergonha de manter o mesmo comportamento que ele sempre tinha, da sua relação íntima com as ideias e com os discursos. O sujo ali era ele, e não ela. E ele se sentiu sujo, e nem utilizando o álcool ele se tornará limpo. O sentimento dele era de vergonha: ele não consegue estabelecer com ela a relação que o Valentim estabelece com o Chico Polia, e vice-versa. Teotônio não se sente obrigado, ele se sente envergonhado.
Todas as instituições são instituições que reproduzem um modelo que prende “Valentins”, na mesma lógica em que a floresta também não respeita quem está lá: as pessoas que estão lá são intrusos na floresta, que não tem dever nenhum para com eles, os quais, por sua vez, também não tem dever nenhum com a floresta, eles são extrativistas; eles não tem deveres entre si, porque eles são “bebedores”, eles são “lascívios” e eles são “mentirosos” – eles fazem perte desse vazio todo.
Mas Valentim e Chico Polia refletem um parêntese. Quando eu refletia sobre isso, a partir inclusive de uma proposição da professora Bárbara, me corre que talvez aqui, Bárbara, é que esteja a única representação no final do que não seja um vazio. Tudo aquilo que é institucional, tudo que é da natureza, tudo isto submete o homem a uma foça titânica, a forças e coisas contra as quais ele não consegui lutar. Mas quando nos afastamos desse mundo da natureza, e esse mundo das instiuições, estes dois homens conseguem se reconhecer um ao outro, aqui no final do romance. Ainda que Valentim esteja dentro da cadeia, e que Chico Polia esteja dentro, a sua moda, de uma outra cadeia também, ambos estão presos em algum lugar. Mas a diferença toda é que eles conseguem se libertar pelo reconhecimento dessa auteridade. A Justiça aqui é um vazio, a Justiça institucional é um vazio, mas que consegue ser preenchido – não institucionalmente – através do reconhecimento do valor do outro, do reconhecimento dessa auteridade, que é onde essa justiça se realiza. E é a única possibilidade de realização dela.
O interessante é que, do ponto de vista da posição das pessoas, nada muda, mas ao mesmo tempo tudo muda. Há um toque que não é de desesperança, que não é de representação do vazio, mas de alguém ou alguns que conseguem reconhecer esse vazio e, por reconhecerem esse vazio, já não fazem mais parte dele. O reconhecimento dessa alteridade é o caminho de superação dessa vazio nesse romance; o reconhecimento de que, através dessa metáfora da cadeia, através da relação entre natureza e cultura, através da metáfora que representa essa safra ( a safra representa essa força da natureza, e que os homens se comportam de acordo com os períodos, os homens são sazonais, porque as safras são sazonais, porque a maré do rio é sazonal, porque a castanha é sazonal … tudo é sazonal, tudo é muito temporário; mas aquilo que eles conseguem estabelecer ali de alguma maneira não é temporário. Existe um toque dessa representação que não é mais do vazio. Então, coloquem na sazonalidade as instituições, a falácia do positivismo [o que é a falácia do positivismo? A compreenção de que o conceito do justo suscede o conceito da lei; quando, na verdade, a coisa é bem o contrário: o justo nasce de um pacto, que por sua vez implica no reconhecimento da auteridade primeira. Depois, a lei. Só que uma outra falácia – e esta eu poderia estar provocando se eu não esclarecesse um ponto – é que as coisas não se suscedem aí numa relação calma e tranquila – do pacto à justiça, e daí à lei –, porque entre a lei e este pacto inicial a tensão nunca sumirá, ela nunca desaparece. O reconhecimento da alteridade, o reconhecimento do outro, entre Valentim e Chico Polia, não vai fazer desaparecer a cadeia e nem as instituições: elas continuarão lá, mas numa tensão absoluta, que agora eles já têm capacidade de reconhecer, mas isso muda, e essa já é uma mudança grande – a relação não é de continuidade entre lei e justiça, mas sim de descontinuidade entre a lei e a justiça: isso precisa sempre reentrar no círculo da discusão.
Nós discutimos muito pouco o justo nos cursos de direito; nós discutimos as instituições dentro dos cursos de direito. E, de alguma maneira, nós entramos, portanto, nesse debate, que é um debate de sazonalidade, porque as leis são sazonais, as instituições são sazonais, e toda esta natureza amazônica é sazonal e uma natureza de destruição, que é o que determina essa sazonalidade. O que se viu não é, portanto, um rio civilizatório; é um rio de destruição das margens, mas ele permite uma compreenção, dentro deste universo, dos drama verdadeiramente humanos: o drama de Valentim é verdadeiramente humano, e que coloca esse debate sobre a relação entre o justo e o legal, entre o outro e o eu, o reconhecimento dos deveres e das obrigações entre pessoas capazes de se reconhecerem numa posição de igualdade, coloca esse debate como um debate sim atual e que pode ser compreendido, dentro dos seus parâmetros iniciais, a partir dele.
Este é um romance clássico, portanto. No sentido mesmo que Italo Calvino e Harold Bloom postulam sobre o que são os clássicos: o elemento regional é o ambiente em que o drama verdadeiramente humano se dá – que é o reconhecimento da auteridade e da tensão entre a justiça e a lei, entre a cidade e o campo, entre a natureza e a cultura, entre os heróis épicos e os seus vilões, entre aqueles que resistem contra o destino e aqueles em que o seu heorismo está precisamente em se resignarem ao destino … Valentim é um herói dessa natureza, é o herói que tem a coragem de se resignar àquilo que ele não consegue modificar, mas ele permanece dentro de si com a disposição da resistência passiva, de observar esse mundo mas sem estar parado também, porque ele volta para a cadeia, ele age, só que o agir dele não é de fugir, o agir dele é reconhecer a necessidade dele permanecer.
É basicamente esta a discussão que este livro suscitou. Há alguma coisa que ainda precisa ser profunda e longamente organizada na minha cabeça e na maneira como eu pretendo escrever este minicurso aqui: ele foi feito, pensado, para que eu pudesse anunciar algumas ideias, ainda que um pouco caótica, de maneira a ver também nesse espelho [o livro] a representação dessas ideias. E a nossa intenção, pela editora do CESUPA, é reeditar o “Safra” prescedido de um estudo crítico da obra, e que vai mais ou menos na direção dessa ideias ainda confusas e que precisam ser organizadas de maneira mais sistemática e refletida, nesse sentido falta um amadurecimento. Encerro por aqui aquilo que tenho a falar; fico a disposição de vocês e agradeço enormemente a paciência e o fato de terem escolhido esse minicurso, e de terem vindo no segundo dia, ainda que o mistério sobre a hermenêutica do vazio já tivesse sido relativamente solucionado. Obrigado pela atenção: saibam que isso me comoveu bastante.

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