Os conceitos possuem a propriedade de fazer-nos crer que existem por referirem-se descritivamente ao “mundo lá fora”. Não é diferente com o conceito de “tempo”. Ao nos referirmos “ao tempo”, logo de saída subjetivamos o conceito, ou seja, estabelecemos que ele é um sujeito, um ente, ao que existe e é exterior a nós mesmos. A nossa linguagem está repleta de percepções “subjetivadoras” do tempo, como, por exemplo, “o tempo é o melhor conselheiro”, “o tempo cura todos os males”, “o tempo se vinga daquilo que se realiza sem sua colaboração”, etc.
Para nossa cultura, portanto, o conceito de tempo refere-se a uma realidade externa ao homem e que interage em certa medida com ele. O conceito refere-se a um tempo “lá fora”, no mundo. Esse é o primeiro equívoco que distorce nossa capacidade de entender os elementos importantes da relação entre história e tempo.
Assumo, secundando ELIAS, que o tempo não se refere a uma realidade extrínseca ao homem, mas é, ao contrário, fruto das relações sociais. Na própria física uma das diferenças mais significativas entre as posições de Newton e Einstein diz respeito ao fato de que este considera o tempo uma relação e não um fluxo contínuo, como defendia o físico inglês.
Na subjetivação do tempo temos presente um hábito cultural consistente na separação entre natureza e sociedade e isso nos obstaculiza a percepção daquilo que está implicado nos conceitos que utilizamos, no caso específico, o tempo.
Explica ELIAS, ao procurar responder quem é o sujeito e o objeto dessa relação a que se refere o tempo, bem como suas finalidades, esclarecendo que a palavra “tempo” designa:
“...simbolicamente a relação que um grupo humano, ou qualquer grupo de seres vivos dotado de uma certa capacidade biológica de memória e síntese, estabelece entre dois ou mais processos, um dos quais é padronizado para servir aos outros como quadro de referência e padrão de medida” (ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1998:39).
A finalidade de tal relação para a qual o conceito de tempo funciona como um mediador é estabelecer um quadro de referência e uma medida para que as operações visadas por dadas relações em sociedade sejam possíveis. Trata-se de estabelecer um “antes” e um “depois” que seja capaz de dividir e organizar um determinado fluxo contínuo de acontecimentos.
Niklas Luhmann ressalta que a memória tem uma relevância central na possibilidade de tais operações sociais, pois todas elas dão-se sempre no presente. Nenhum de nós realiza qualquer ação social no passado ou no futuro, pois elas são possíveis unicamente agora. Entretanto, pensamos, agimos e tomamos decisões com base no passado e no futuro enquanto referências sociais, e isso apenas é viável pelo estabelecimento das distinções a que o conceito de tempo se refere (o “antes” e o “depois”, dentre outras) e a seleção de sentidos que cada sistema social é capaz de fazer. É o caso da agricultura quando no domínio crescente das técnicas agrícolas, as comunidades passam de um estágio de observação e experimentação errática a outro em que ficam estabelecidos costumes e um conhecimento tradicional que padroniza as decisões do que plantar, quando e como. É o que ocorre com o sistema jurídico quando prevê que certos comportamentos serão punidos ou disciplinados desta ou daquela maneira segundo o costume. O próprio verbo “prever” apenas pode ser utilizado por essa operação específica que a memória, enquanto organização das relações a que o tempo se refere, permite, dado que não temos capacidade preditiva comumente distribuída e a sociedade humana, ipso facto, não baseia sua organização nessa qualidade.
Entretanto, é difícil para nós empreendermos essa percepção em razão da tendência humana de deixar progressivamente de notar aquilo que se rotiniza, o que se repete cotidianamente. É uma espécie de “invisibilização” de conceitos, diante da qual constitui uma das tarefas mais significativas das ciências humanas combatê-la. É a esse esforço que denominamos crítica. ELIAS, novamente, explica tal fenômeno da seguinte forma:
“Quando os símbolos atingem um grau sumamente alto de adequação à realidade, torna-se difícil, num primeiro momento, distingui-los dessa mesma realidade. É o que acontece hoje em dia com símbolos cronológicos como os calendários, que, embora sejam suscetíveis de aperfeiçoamento, atingiram um grau sem precedentes de adequação à realidade. Essa equivalência, aos olhos de muitos, confunde a distinção entre, por um lado, as sequências de acontecimentos que balizam a própria vida e, por outro, a relação construída pela civilização humana entre essas sequências e aquelas em que repousam os calendários. Assim, muitos não conseguem impedir-se de ter a impressão de que é o próprio tempo que passa, quando, na realidade, o sentimento de passagem refere-se ao curso de sua própria vida e também, possivelmente, às transformações da natureza e da sociedade” (ob.cit.:22).
Ademais, para além da advertência de ELIAS, há que se considerar, a partir da observação de OST (cf. OST, François. O tempo do direito. Bauru:EDUSC.2004), que vivemos dominados por uma única, totalizante e tirânica concepção de tempo, que é a do tempo crônico ou cronológico. É o tempo mensurável dos relógios, linear, irreversível e titânico, que, se muito bem acomodou-se às exigências de organização do trabalho na sociedade moderna, dividindo as jornadas e dimensionando a remuneração por horas; se esse tempo mensurável e crônico pôde constituir-se, pela mensurabilidade, uma visão de mundo que assinala para nós que se todos os fenômenos humanos dão-se no tempo, se o tempo é mensurável, tudo o que é humano é também passível de medida; se buscamos aplicá-lo na sua voracidade aos afetos, a nossa psique, a formação de nossos desejos e expectativas, à educação e à justiça e às virtudes, cabe, entretanto, atribuir a culpa a nós e não ao conceito. Fomos nós que transformamos o método aplicado ao estudo das regularidades –e o tempo crônico tão bem se presta a isso- em uma espécie de racionalidade inata ao homem. E se os antigos já conheciam a idéia do tempo crônico, foi apenas com a modernidade que ele elevou-se a um conceito unívoco, aplicável a tudo, sem distinções. E na modernidade, um capítulo a parte enquanto fator predominante, cabe à revolução cultural que representou o método científico com a idéia central de mensurabilidade e padrão.
Sobre isso, escrevia ELIAS, reportando-se ao método científico de Galileu:
“Tendo sido, inicialmente, um simples meio destinado a um fim –a descoberta de regularidades imutáveis, baseadas em medidas sistemáticas e exprimíveis por símbolos matemáticos de conotação eternizadora, como as ‘leis’ da natureza ou da lógica, ou pelos resultados de operações puramente matemáticas-, acabou encarnando, durante algum tempo, a mais alta legitimidade da tradição física e filosófica e, em conseqüência disso, representando a finalidade mais elevada e mais prestigiosa da atividade científica” (ob.cit.:102).
Para a história, a concepção de um tempo único e linear, o qual exclua tempos simultâneos, tem efeitos funestos. Dentre eles, mormente, a percepção de que os elos causais entre os acontecimentos é necessário, ao invés de contingente. Ou seja, tudo aconteceu PARA que chegássemos onde chegamos...São extirpadas dessa concepção de história as inúmeras possibilidades de acontecimentos e as expectativas que estavam diante do contexto histórico, que compunham seu horizonte e formavam as dúvidas, os desejos, os sonhos e os medos dos atores históricos daquela dada época. É como se o que não aconteceu não importasse, mas a realidade é que PODE importar e, em alguns casos, decerto importa. Um exemplo, é a história da vida privada ou as biografias. Ninguém sabe exatamente o que acontecerá a partir de uma decisão, mas, no máximo, o que pode derivar dela. Excluir as possibilidades que não se realizaram do horizonte do personagem empobrece e falseia o horizonte histórico.
A validade de uma afirmação sobre dado fato histórico depende da concepção de que a observação do historiador é uma dentre diversas observações possíveis e, portanto, sua narrativa é oriunda de uma seleção inevitável. E isso não é uma crítica que resulte na conclusão da inviabilidade da narrativa histórica ou da verdade na história, mas ao contrário, a afirmação de que ela é epistemologicamente possível a partir da assunção de tais premissas.
O fato histórico é “poliédrico” e deve-se considerar essa complexidade consistente na composição simultânea de diversos elementos na observação do historiador. Nesse sentido, assim como na interpretação do quadro “Las meninas”, de Velásquez, feita por Michel Foucault no primeiro capítulo d’As palavras e as coisas, não se trata de descrever o que se vê, mas representar conscientemente o próprio ato da observação, tomando-se em conta uma pluralidade de olhares sobre os fatos do mundo, a cultura e o homem.
Para esse intento metodológico, a concepção linear do tempo como “a flecha de Deus”, é estreita e reducionista e seria necessário admitir o próprio tempo enquanto conceito –e não como realidade física e externa -, na sua condição plural e complexa e, assim, explorar as observações diversas que daí derivam.
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