quinta-feira, 29 de março de 2012

EX FABULA ORITUR IUS

Transcrição de aula em 26.08.2011 feita pelo monitor Gilberto Guimarães Filho, a quem agradeço.
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Eu começo explicando essa frase, que é uma referência teórica que nós adotamos nesse programa: EX FABULA ORITUR JUS é uma contraposição a um brocardo que se tornou famoso e que é muito comum nos manuais da introdução ao estudo do direito e da sociologia do direito também, que diz EX FACTO ORITUR JUS, ou seja, o Direito nasce dos fatos. Estou dizendo aqui outra coisa, o Direito nasce das histórias, nasce das narrações e das histórias que contamos a nós próprios, aquilo que surge na frase célebre do Sófocles, em Antígona: “As paixões que instituem as cidades, o homem as ensinou a si mesmo”. Nós contamos para nós mesmos as histórias e as narrações que fundam os valores (entendamos aí o termo paixões de maneira ampla, pois a nossa época é restritiva em relação a alguns conceitos). O conceito de paixão, para nós, está quase que identificado com uma questão sexual, sensual,  que diz respeito aos sentidos.
Durante boa parte da História do pensamento, o conceito não era esse. O conceito envolvia também a sensualidade, mas o conceito de paixão diz respeito a tudo aquilo que nos motiva. É muito mais amplo, portanto. Não é apenas a sensualidade que nos motiva.  O conceito de paixão como tudo aquilo, como as forças que nos movem, é o conceito que Sófocles está referindo aqui. As motivações que instituem as cidades, somos nós que nos ensinamos, sejam essas motivações a justiça, a liberdade, a igualdade, todas essas motivações não são dados da natureza, elas são construções humanas e nós as concebemos, as definimos, as consolidamos e transmitimos através de histórias, através de narrações. É a única maneira que nós dispomos para, enquanto animais políticos e sociais, conseguirmos ter uma visão relativamente comum sobre aquilo que comunicamos. Não é possível comunicar senão o que nos seja comum, por isso, o comum está na raiz etimológica de comunicar. Falar sobre o que é comum e, na história humana, nós tornarmos comuns essas paixões, estas virtudes, através das narrações.  De narrações como as Bíblicas,  como as tragédias  e as mitologias sejam nos gregos e romanos  ( a mitologia greco-romana, que é comum) seja a mitologia nórdica, sejam as histórias que estão presentes que eram repetidas e ensinadas nas escolas  gregas e que vem lá de Homero, de Hesíodo. 
O conceito do herói e as virtudes que definem o seu heroísmo, são transmitidas através de poemas contados oralmente e transmitidos de pai para filhos, de professor para os alunos, que posteriormente serão professores e transmitirão a outros alunos, e assim sucessivamente. Essas estratégias comunicativas são aquelas que nos permitem tornar comuns os elementos que nos motivam, que moldam a nossa maneira de pensar, aquilo, por exemplo, que achamos engraçado, que nos dá medo, estimula, revolta, todas essas coisas fazem parte essencial da comunicação humana, daquilo que nos é comum. E apenas dessa maneira, através desse caminho, que nós temos a possibilidade de estabilizar as expectativas sobre o comportamento humano. Diante de um gol de um time, para o qual nós estejamos torcendo, de maneira comum, nós esperamos uma reação feliz da torcida, nós esperamos os gritos, os palavrões, as manifestações de euforia e às vezes, até, de histeria. Se a coisa não é assim nós perguntamos ao torcedor macambúzio e sorumbático que está ao nosso lado: O que lhe preocupa?  Ele não falou nada, ele não disse se algo o preocupava, ele, enfim, não cortou o pescoço, mas ele simplesmente não agiu como nós achamos, de maneira comum, que ele deve agir.
No estrangeiro, o personagem principal é condenado pelos jurados não porque assassinou, sem motivação, duas pessoas na praia. Ele é condenado porque o promotor convenceu os jurados que ele era ruim, mau, frio, porque ele não chorou no enterro da própria mãe e realmente não chorou. Havia circunstâncias para isso, mas o que o condenou foi ele parecer uma pessoa, em razão de um descumprimento de um comportamento, que era esperado, como é esperado de qualquer um de nós. Esses  são os elementos comuns. O que é um bom filho? As virtudes de um bom filho não são as virtudes que cada um de nos tenha individual e isoladamente nas nossas cabeças. Cada um de nós é bom filho da maneira de bem entender? Não. Nós temos o conceito que é comum do que é ser um bom filho. Até o ponto em que esse filho bate na mãe, nós não vamos aguardar que ele justifique o seu ato através da bondade. E nós temos histórias em comum, que nos são contadas há séculos sobre o que são ou quais as virtudes de um bom filho, sim, temos. Essas histórias nos são contadas desde a infância, a família as reproduz, a escola as reproduz. Nós temos essas narrações na religião, a história das virtudes de uma boa mãe em relação ao seu filho contadas também largamente pelas historias, que são transmitidas e que formam os valores que nós temos. E não é manipulação, porque essa é a maneira que nós dispomos para sermos formados. São as histórias que nos são contadas, ao mesmo tempo nós  sabemos quais devem ser as virtudes de um herói, Aquiles não é um herói mas Heitor é um herói, em Homero. Aquiles simplesmente não tem como ser um herói, como nós valorizamos, porque ele é praticamente um imortal. Qual o valor de lutar com alguém, sabendo que ele não pode te matar? E o valor de Heitor, que aceita o desafio sabendo que vai morrer? Esse é o herói, não é Aquiles. Aquiles é um covarde ao matar Heitor, é egoísta, mas Heitor é valoroso.
 Nós choramos por aqueles que entregam as suas vidas por nós. Os aclamamos como heróis, nós homenageamos os que se lançam ao fogo para resgatar bebês ou pessoas indefesas de uma situação de risco colocando a sua própria vida  depois da vida daquela pessoa e como isso dá noticia imediata até hoje porque nós identificamos nisso imediatamente  uma virtude superior, nós identificamos nisso um exemplo, essas histórias são contadas e formam  o que acreditamos ser o bem e o mal, assim também acontece na História do Direito e do Pensamento Jurídico. O que a justiça? Não é algo que possamos ver ou tocar, descrever, portanto, a partir dos sentidos, apropriar e entender através dos sentidos e como podemos ter uma ideia do que ela seja? Através das histórias que nós ensinamos a nós mesmos e que fundamentam o exemplo da justiça enquanto virtude. A história de Salomão, das duas mães que disputam o bebê e Salomão diz, então, que o repartam e que seus guardas tracem no meio o bebê e cada mãe ficaria com uma parte, a verdadeira mãe vai dizer não, que fique todo para a  outra. Quem não conhece essa história de sabedoria? Essa é uma virtude, a justiça está ligada à sabedoria e nós incorporamos a ideia de que seja o justo, não porque vimos, mas porque ouvimos, não porque apreendemos pelo tato, pelo gosto, pelo paladar, mas porque entendemos como a história foi contada.
A virtude de Ilíada, o rei virtuoso não é Agamenon, pelo menos não na sabedoria, sensibilidade, justiça. O rei virtuoso é o rei de Tróia, é o pai de Heitor,  porque vai sozinho ao acampamento inimigo resgatar o corpo do filho. Essas histórias são de leitura obrigatória para nós entendermos o conceito que é o homem e a cultura ocidental, tudo aquilo em que nós acreditamos, a maneira que temos de entender os nossos valores vem dessas historias. A partir do capítulo I do François Ost, contar a lei, algumas histórias estão sendo trazidas e são essas histórias que nos são contadas e onde identificar-se-á pela primeira vez essas virtudes que conformam as paixões, que ensinamos a nós próprios. São duas histórias aqui, são histórias sobre a justiça dentre outras virtudes. A primeira é o Protágoras, que era um dos diálogos de Platão, pois ele escrevia através de diálogos, como uma peça de teatro, pois para o homem grego a peça de teatro é a mais sublime das manifestações do pensamento  com os seu conceitos de diké e aidos (conceitos gregos) e a segunda historia que vai nos dar o conceito de pré-compreensão, adesão e aliança é uma história também escolhida por Ost que é a história do êxodo e da formação dos 10 mandamentos, há hoje um movimento bastante forte dentro da História do Direito que procura buscar nessa narração as primeiras formulações de justiça, tanto Ost que é um autor um pouco mais conhecido e que elege essa via como outros autores importantes. É uma outra forma de pensar a historia do direito, é muito comum nós encontrarmos nos manuais o problema de crer que o inicio da História do Direito  coincide com o inicio da história da escrita isso é um equívoco, não apenas não coincide com a história da escrita como também não coincide com Grécia e Roma, é muito anterior a isso. O inicio do direito ou da intuição jurídica como irá chamar Ost está com a sedentarização do homem e a criação, portanto, daquelas  condições de complexidade social, que formam um ambiente nomogenético, um ambiente de aparecimento da norma e por isso nós retrocedemos em termos de documentos escritos. Esse retrocesso é muito bem documentado nos livros históricos do antigo testamento, no pentateuco, os cinco primeiros livros da bíblia e que compõe a Torá hebraica,  especificamente no êxodo. Esse pentateuco será o foco de uma das histórias que será contada aqui.
O objetivo de hoje é o Protágoras. É um diálogo Platônico onde Platão irá contar a historia dessas virtudes que estão ligadas ao conceito de justiça que são a diké e a aidos. Zeus determinou a Hermes, o mensageiro, que distribuísse as  virtudes entre os homens mas não havendo a mesma quantidade de virtudes para todos que ele distribuísse desigualmente as virtudes, mas duas deveriam estar obrigatoriamente presentes em todos nós e para essas haveria quantidade suficiente. São elas: aidos e diké  as outras são distribuídas de maneira desigual, ou seja, nem todos nós temos talento musical, alguns têm, outros, não tem e outros passam muito distante da possibilidade de ter. Isso é um talento ou uma virtude distribuída de maneira desigual. Alguns têm uma virtude que lhes possibilita um pensamento abstrato, rápido, refinado, outros não. Outros têm virtudes atléticas, poderosas, outros não. Alguns têm absoluta temperança, sangue frio; outros são, entretanto, desesperados, se assustam com qualquer coisa. Nós somos distintos em relação a esses talentos e essas virtudes: Hermes os distribuiu de maneira desigual, mas aidos e diké todos temos. O que isso significa? Aidos e Diké são denominadas virtudes cívicas, são virtudes essenciais e indispensáveis, que permitem a criação das cidades e através das narrativas nós ensinamos a nós o sentido de aidos e diké. Aidos significa o respeito à lei antes dela, antes da lei existir e nos obrigar pela sua sanção nós temos a noção e a consciência de que é necessário fazer algo, é necessário disciplinar. Quando uma pequena associação se forma e alguém diante de problemas como os de organização da turma, da distribuição das bolsas rotativas, do contato com a coordenação do curso, problemas na condução de coisas rotineiras, alguém propõe que deve haver uma organização, precisamos eleger um representante para nos auxiliar na condução de alguns processos decisórios internos, constituir a autoridade. A autoridade apenas se constitui posteriormente ao momento em que nós tomamos consciência da necessidade da autoridade, antes existe a ideia da ordem e depois a constituição da autoridade política, antes de termos o estatuto do idoso, nós tomamos a consciência de que não era mais possível manter aquele estado de coisa, de desrespeito aos idoso, de ausência de direitos  que os diferenciassem e protegessem de maneira especial nos tomamos a consciência do estatuto que ,ao estar numa determinada fila, você de menor idade tem melhores condições de aguentar na fila do que a gestante ou a mãe que está amamentando com o filho no colo, ou de que a pessoa de 65 anos ou mais. Antes da lei essa consciência vem: "isso é errado, isso não pode continuar" antes da lei dizer que as pessoas não podem estacionar  na frente de rampas porque prejudicam o acesso do cadeirante, a consciência vem de que isso é errado e se o ato se repete nos precisamos reprimir. Antes de nos reprimimos o homicídio o roubo o furto nos tomamos a consciência de que esses atos prejudicam a sociabilidade Eles desestabilizam a sociedade quando não se dá a eles a resposta  adequada porque as pessoas resolvem tomar essa justiça com as próprias mãos  e vão fazê-la sem limites. Antes da lei, nós temos a consciência dela, o que nos traz, portanto, um respeito prévio à norma. Eu a aceito e a ofereço porque entendo a sua necessidade, mas esse entendimento é anterior a ela, como por exemplo, os dez mandamentos. Antes deles existem outras coisas necessárias, por exemplo, antes dos 10 mandamentos o povo hebreu precisava ser libertado, porque só pode firmar um contrato e voluntariamente obedecer a ele e a lei também é um contrato, aquele que é livre. Os escravos não podem contratar, tampouco os loucos ou menores sem orientação superior. Só o "livre" pode contratar. Essas condições antecedem a lei, são anteriores de fato à ela e permitem o aparecimento das condições tanto da lei como da sua obediência, isso é Aidos.  é uma ética cívica. A frase da vovó e que nos repetimos pela tradição: "O seu direito termina, onde começa o meu", significa em primeiro lugar o respeito, em segundo lugar a consciência de que se cada um de nos  fizer tudo o que nos dá na cabeça, nós não temos nenhuma possibilidade de vivermos juntos. Nós só podemos viver juntos se nos limitarmos. Nós não temos a possibilidade de fazermos tudo o que quisermos a liberdade, socialmente dita, só é liberdade através da sua limitação. Isso é Aidos, é essa consciência, quando se toma a consciência de que é necessário que eu seja limitado pelos meus direitos para que eu possa exercer os meus direitos , porque se você puder fazer tudo pode inclusive matar. Portanto, assim como você obedece a lei, eu também obedeço e se todos obedecerem então todos ficaremos bem. Eu não estou dizendo que lei é essa, quais são os seus artigos, quais são seus termos, mas todos nós podemos concordar que em sociedade é necessário haver regras.  Sem os conceitos de Diké e Aidos nós não teríamos como ter a pólis, as cidades. Eles são conceitos agregativos, são conceitos cívicos e que nos permitem, portanto, a convivência, vivermos lado a lado.

Um comentário:

  1. Maravilhoso o post, professor Sandro Alex!
    Agora entendo melhor algumas questões em Ricoeur quando fala sobre a "narrativa". Obrigado! Parabéns pelo texto! Abraços!

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