domingo, 29 de maio de 2011

Crime e castigo e a ontologia da desgraça em Dostoiévsky

 A propósito de uma palestra que proferi na UFPA na última sexta-feira, dia 27/05. Agradeço a atenção e participação de um auditório repleto de alunos e professores, bem como, especialmente, ao convite do amigo Prof. Dr. Luiz Otávio Pereira.
_______________________________________________________

Tanto no livro “Memórias do subsolo” como em “Crime e castigo” se impõe a desconfiança fundamental de Dostoiévski acerca da possibilidade da conduta humana ser corrigida pela educação e pelo exemplo. Raskólnikov é incorrigível “de fora”. Seu processo pedagógico é essencialmente interior e isso fornece a pista mais fundamental sobre a história que o autor pretende contar.
                Desde Mikhail Bakthin estabeleceu-se o dogma exegético de que os romances de Dostoiévski são tramas polifônicas, ou seja, várias tramas que se desenrolam através de distintos personagens, próximos, mas separados, e que em algum momento do romance encontram-se em um ambiente complexo, a partir do que suas vidas entendidas como linhas individualmente conduzidas pelo autor passam a ser ressignificadas pelo encontro (M. BAKTHIN. Problemas da poética de Dostoiévski. São Paulo:Forense Universitária, 2008).
                Mas a própria forma polifônica consistente em tramas distintas de cada personagem propõe que seus caminhos não são ligados por eventos exteriores, pelo menos na sua semântica, e cada qual segue diante de seus próprios desafios internos.
                Ademais, a educação é um signo civilizatório e a civilização em Dostoiévski é um conjunto sofisticado de vícios, como refere Pondé em “Crítica e profecia” (Ed.34, 2003). A educação e a pedagogia para o autor podem nos aperfeiçoar nessa trajetória decadente ao invés de nos libertar. Assim que, com Raskólnikov, estudante de direito e dotado de certa reputação acadêmica enquanto pensador libertário, a formulação axiomática maior era a da classificação dos homens entre ordinários e extraordinários. Essa era uma tese, uma proposta teorética para educação dos novos tempos. Os homens ordinários obedecem, resignam-se, reproduzem e permitem a manutenção das coisas e, ainda que sejam importantes, seu desenvolvimento é limitado pela sua carência constitutiva de vocação para a grandeza. São como insetos laboriosos, como formigas ou piolhos que são capazes de formar colônias, de operar com o que existe, mas jamais poderão criar, porque isso depende da capacidade de ver além, de romper e assumir que as leis que nos cercam pertencem aos demais que com elas dêem lidar, mas não se aplicam a quem tem a virtude para superá-las, mostrar-lhes as deficiências e criar outras no seu lugar. Sem os homens extraordinários não haveriam revoluções. Sem os homens extraordinários andaríamos em círculos inesgotáveis.
                Para Raskólnikov, a virtú era privilégio daqueles que conseguiam compreender mais que os outros, ver além e desvandar o chamado do futuro. A virtú, nesse caso, é uma clara referência a Maquiavel, para quem a vida humana não tem um sentido intrínseco, nenhum valor inato, mas sempre decorrentes da ordem política, a qual deve ser dominada pelos homens extraordinários. A vida é uma concessão do Estado.
                O homem extraordinário é o homem “absolutamente capaz”, o modelo de Pavel Aristov, o criminoso referido por Joseph Frank como modelo para Dostoiévski, durante seu exílio, de alguém capaz de realizar qualquer coisa, qualquer tarefa, sem nenhum constrangimento exterior de ordem física ou moral. Em oposição ao homem extraordinário está o homem ordinário, que é “absolutamente incapaz”, cujo modelo na constelação de personagens de Dostoiévski é o Príncipe Michkín, d’ O idiota.
                Aqui temos as inversões que o Mestre Russo trabalha no Crime e Castigo. O homem de ação representado no conceito extraordinário, como Napoleão, referido expressamente no livro, revela as fragilidades de elevar o fazer a um status de valor. A ação não tem um sentido em si mesma, ela não se dirige necessariamente ao bem. Ser absolutamente capaz, apto a fazer tudo, significa ser apto a fazer do bem uma escolha aleatória e de igual valor que realizar o mal. Ser absolutamente capaz é eleger o “poder” como critério decisivo do “dever”.
                Isso nos coloca diante do problema de ação que vai ser desenvolvido em uma progressiva linha de tensão do início do romance até o assassinato de Aliona e Lisavieta. Raskólnikov propõe-se matar a agiota sob o pretexto sincero de agir em razão de uma idéia, provar-se capaz, absolutamente capaz tal como estabelecia sua teoria. Ela não agiria como um assaltante, mas como uma força da natureza, um agente dos novos tempos, algo como as teses de Chernichevski e Pisariev, filósofos políticos radicais muito em voga no sec.XIX, defendiam. As leis humanas apenas condenavam o assassinato por aplicarem-se aos homens comuns, que agem com propósitos utilitários e imediatos, como camundongos em um labirinto. Os homens extraordinários são senhores absolutos de suas decisões e o sentido delas apenas pode ser estabelecido por eles próprios.
                Em um acesso febril e famélico, Raskólnikov mata a machadadas a velha agiota e uma infeliz testemunha ocular, tendo conseguido evadir-se após roubar as jóias guardadas no apartamento.
                Mas o personagem não conseguirá encontrar na sua ação o sentido auto-instituído que buscava. Cai em febres e delírios, nos quais acredita, inclusive ter-se denunciado. Contudo sua doença não é física, senão espiritual. Valho-me do conceito de “catolite” como o filósofo romeno Constantin Noica define a doença espiritual aplicável a Raskólnikov. Trata-se de dizer que o mundo, doravante, deveria ter um sentido, mas não tem. Que a ação, se não encerra qualquer teleologia ou escatologia, deveria ter-se esgotado ao lavar-se o sangue do machado, ao ter Raskólnikov fugido do lugar com êxito, ainda que precário. Entretanto, a cena do duplo homicídio e sua brutalidade não lhe saem da lembrança, aprisionando-lhe. Algo saiu muito errado, mas não foi a ação, dado que elas estão mortas e Lisavieta foi um “dano colateral”. O que deu errado foi a teoria...
                Diz Luiz Felipe Pondé, com base na teologia medieval, que o inferno pode ser descrito como uma festa que não acaba nunca e, na sua infinita repetição, revela seu vício. A festa aqui, aquela a que está irremediavelmente atado Raskólnikov, é a aposta em que a liberdade apenas assim pode realizar-se se for absolutamente. Trata-se de liberdade para tudo, de irrestrito horizonte de ação e de escolhas. É a liberdade do homem extraordinário, absolutamente capaz e, portanto, acima da lei e da moral. A ela não corresponde nenhuma responsabilidade, nenhum dever. Não há limites, assim como não há excessos, dado que não há alteridade qualquer, não há o reconhecimento do outro. Raskólnikov menciona, recorrentemente, que a velha agiota é um piolho.
                Ao agrilhoar-se à lembrança do homicídio, na sua agonia, na dúvida, Raskólnikov sente-se fracassado em razão da culpa. Repito, não estamos diante de um fracasso no plano das ações, mas no das expectativas. O assassino não proclama sua liberdade com o homicídio, ao revés, pega-se lutando para não proclamar sua culpa, ou pior, seu pecado... Talvez, melhor do que “castigo”, a narrativa dessa maior parte do romance encaixe-se mais finamente com a palavra “expiação”. É no reconhecimento tumultuoso e fragmentário, mas progressivo de sua condição agônica que a trama complexifica-se, pois no entorno do homicídio cada linha melódica dos distintos personagens encontram-se em sinfonia. Dúnya, irmã puríssima de Raskólnikov; Svidrigáilov, que busca seduzi-la, ele inegavelmente um “homem de ação”, absolutamente capaz e Sonya, a prostituta sacrificada, filha de Marmiéladov, bêbado típico das narrativas de Dostoiévski desde Humilhados e Ofendidos (1861).
                Será a presença de Sonya e Dúnya que ajudará Raskólnikov, por si mesmo, entender o sentido de seu fracasso. Que havia fracassado, era evidente na sua doença. O jogo de “gato e rato” com Porfíri era estimulante intelectualmente e o personagem, ainda que inseguro, sabe que o policial somente poderia alcançá-lo se ele mesmo o permitisse. O próprio Porfíri sabe disso e concentra-se em criar uma atmosfera das mais elaboradas para convencer Raskólnikov de que ele sabe não apenas do crime, mas de que tudo no estudante é uma farsa, a começar pela imagem auto-atribuída de “homem extraordinário”.
                Não será, portanto, Sonya a convencê-lo do seu fracasso, mas pela sua fragilidade absoluta que incita o amor de Raskólnikov, ao descobrir-se incapaz de suportar magoá-la, ofendê-la e usá-la, no reconhecimento dessa alteridade ele estabelece o princípio do sentido de seu fracasso.
                Na doutrina da Graça de Sto. Agostinho, a ontologia da desgraça que constitui os seres humanos, decaídos do Éden e da plenitude do convívio com Deus, onde podiam contemplar Sua face, não significa uma maldade intrínseca, mas uma falibilidade inevitável. Sempre iremos falhar. A condição de “absolutamente capaz” não nos é possível e, mais que isso, não é desejável. Esperar que não falhemos, que não tenhamos fraquezas e comportar-se de acordo com esse projeto é aprofundar o erro e criar as condições amplas para o mal. A idéia de que a razão, finalidade mais do que instrumento, do humanismo naturalizante que tanto incomoda Dostoiévski e também, depois, Tolstói, possa elevar-nos acima das nossas paixões e suplantar nossa condição ontológica de falibilidade é, ela própria, um mal. Raskólnikov mata envolvido por uma idéia de afirmação de civilização, fundada profundamente neste humanismo naturalizante, armado sobre uma contradição que somente não é visível por estar cego dos vícios dessa mesma civilização.
                A expiação de Raskólnikov é um trajeto longo, simbolizado pelo desterro na Sibéria, para o qual acompanha-lhe a doce Sonya. Ele começa na sua condição agônica de reconhecimento do fracasso e da busca do sentido desse fracasso, na destituição da razão de seu trono e, ao invés de negar veementemente suas paixões e motivações, Raskólnikov as acolhe em toda a dor e agonia que seus espinhos carregam. No caminho do perdão ele deve atravessar essas paixões, reconhecendo-as como constitutivas de sua condição de desgraça, ou se preferirmos o jargão psicanalítico atual, o qual vale-se de idéias já presentes na doutrina agostiniana, deve-se reconhecer incompleto e cindido. Tudo, portanto, menos absoluto.
                Mas diz o Mestre Russo, que essa é uma outra narrativa, pois a que ele desejava contar já estava finalizada. Poderíamos crer que Dostoiévski almejava que no sec. XX à sua frente, fosse possível uma outra história para Raskólnikov, para todos nós, na contramão das ideologias infernais que atormentavam seus personagens?
               
                

4 comentários:

  1. Sandro, boa noite. Adorei a sua postagem, pena não estar presente na palestra, pois eu teria feito muitas perguntas. Enfim, queria comentar que tenho a tendência a interpretar a obra "Crime e Castigo" como uma discussão da relação entre liberdade e lei, um assunto que toca aspectos jurídicos e valorativos, só que na obra não se desenrolando totalmente de modo exterior (nas instituições e nos seus ritos) e sim no interior do homem. Como bem o faz Dostoiévski em várias obras, procurando mostrar o que se passa lá no interior de um homem, aspecto esse normalmente não acessível ao outro, mas que se descortina nas páginas e nas descrições que o autor faz. Claro, essa descrição de estados subjetivos é outra característica das obras de Dostoiévski, tanto quanto a polifonia que você bem destacou. Aliás, será que a polifonia não ocorre também subjetivamente? Será que a obra não poderia ser lida como um exercício de Dostoiévski perguntando a si próprio como se sentiria no caso de ceder à tentação de cometer um crime, quando em estado de necessidade? Será que ele próprio se perdoaria ao realizar uma ação contra uma pessoa que considerava repulsiva? Será, finalmente, que a necessidade e a repulsividade que o outro parece causar, justifica uma ação como a praticada pela personagem? Evidentemente a situação do livro é hipotética, mas Dostoiévski exerce tão bem sua atividade reflexiva ao longo do enredo, que ficamos pasmados diante do fato da liberdade. Bem, não fiz nenhuma pergunta mais objetiva, então, sinta-se a vontade para escolher sobre o que comentar.

    ResponderExcluir
  2. Cara Débora, é indiscutível que há uma discussão estrutural na obra acerca de liberdade e lei, mas vejo que esse não é um debate conduzido por Dostoiévski apenas nas suas repercussões e implicações na vida civil e no Estado. A estrutura narrativa e sua condução colocam Raskólnikov diante de uma questão que aponta bem mais para dentro. Trata-se da metanóia ou da "conversão" que lhe é proposta e que vai obrigá-lo a ressignificar os próprios conceitos de "lei" e "liberdade" que ele define a partir dos modelos do homem ordinário e extraordinário. Vejo que o exílio para a Sibéria e a relação com Sonya criam a verdadeira ruptura nos termos do debate inicial, mesmo porque são propostos a partir de dentro da culpa. É nesse ponto que Raskólnikov vai bem mais adiante que o personagem de "Memórias do subsolo", que se consome no cinismo e na indiferença.
    Quanto à sua sugestão interpretativa de que Dostoiévski pode ter colocado a si mesmo a situação de Raskólnikov, creio-a verdadeira se ampliarmos o espectro de seu alcance. Acho que é uma questão posta aos homens de seu tempo e de um certo pensamento crítico radical que Dostoiévski bem conhecia e do qual partilhou, ainda que com reservas, na época de sua prisão. Lida assim, e não apenas no limite de uma composição meramente biográfica e datada, fronteiras que a diminuiriam, caso o Mestre tivesse aceitado seus contornos simplesmente, a obra eleva-se a condição de clássico definitivo.

    Abs e prazer em dialogar com vc,

    ResponderExcluir
  3. Caro prof. Sandro,

    E o que achas da passagem do Envagelho de São João lida por Raskólnikov no final da obra? Seria ele o próprio Lázaro, que teve suas chagas curadas e resussitou depois da expiação? O curioso é que, se for assim, fora Aliocha, não teríamos além de Raskólnikov um triúnfo sobre a cisão do ser nos personagens de Dostoiévski.

    ResponderExcluir
  4. Caro David,

    Penso que a passagem refere-se a ele sim, e cabe lembrar que a associacao da prisao como "casa dos mortos" e absolutamente recorrente em Dostoievsky por razoes autobiograficas. Entretanto, a despeito de estar na casa dos mortos, Raskolnikov sente-se vivo, amado e capaz de amar. Ha o reconhecimento consciente de uma alteridade que ele se negava a admitir em si, em varias passagens de piedade na obra, mas que ele atribuia aos homens vulgares, jamais aos extraordinarios. A classificacao inicial de Raskolnikov horizontaliza, planifica e reduz tudo ao seu redor, mas a sua "queda" para dentro de si restituiu-lhe o sentido do humano.

    Mas nao concordarei com vc acerca da comparacao com Aliocha, pois note que a obra "crime e castigo" termina com o inicio de uma outra jornada de Raskolnikov. Nao ha transcendencia ainda, senao uma nota de esperanca que e amplificada se entendermos a vanidade de todas as opcoes anteriores do personagem.

    Ele vai mais longe que o egoista cinico do "Memorias do subsolo", porem nao chega a superar a cisao a que vc se refere como padrao canonico dos individuos dostoievskianos.

    Aliocha, na minha opiniao, somente nao reina sozinho por causa da companhia iluminada do Principe Michkin, d'O idiota.

    Vou ler seu texto sobre Os humilhados e ofendidos, mas ja mereces todos os cumprimentos pela escolha refinada do tema.

    Um abraco e volte sempre, David!

    ResponderExcluir