"Depois de empenhar minhas energias no estudo da organização social da sociedade do futuro, que substituirá a atual, convenci-me de que todos os criadores dos sistemas sociais, desde os tempos mais antigos até o nosso ano de 187..., foram sonhadores, fabulistas, tolos, que se contradiziam e não entendiam nada de ciências naturais nem desse estranho animal que se chama homem. Platão, Rousseau, Fourier são colunas de alumínio - tudo isso só serve para pardais, e não para a sociedade humana. Mas como a forma social do futuro é necessária precisamente agora, quando finalmente nos preparamos para agir sem mais vacilações, então proponho meu próprio sistema de organização do mundo. Ei-lo! -bateu no caderno- . - Gostaria de expor meu livro aos presentes na forma mais sumária possível; mas vejo que ainda é necessário acrescentar uma infinidade de explicações orais, e por isso toda exposição vai requerer pelo menos dez serões, de acordo com o número de capítulos do livro. (Ouviu-se um riso.) Além disso, anuncio de antemão que meu sistema não está concluído. (Novo riso.) Enredei-me nos meus próprios dados, e minha conclusão está em franca contradição com a idéia inicial da qual agora parto. Partindo da liberdade ilimitada, chego ao despotismo ilimitado. Acrescento, não obstante, que não pode haver nenhuma solução da fórmula social a não ser a minha" (Dostoiévsky. Os demônios. Trad. Paulo Bezerra. Ed. 34:São Paulo, 2004, 391).
Essa fala de Chigáliov em um dos romances mais combativos do Mestre Russo impressiona-me por diversos motivos, mas não me deterei em cada qual deles, dado que prometi-me uma mensagem breve aqui. Chama-me demasiada atenção da absoluta facilidade com que o ímpeto criativo e irreverente do personagem desfaz-se de toda uma linha de tradição do pensamento político ocidental. Ele defenestra sem cerimônia o "horizonte cultural" a partir do qual pode ter alguma chance de criar, ressignificar ou mesmo rejeitar os sentidos e os conceitos que lhe antecedem, os quais constituem, assumindo ele ou não, a teia semântica dentro de que inscreve-se o discurso político que busca construir.
Eu não acredito que possamos avançar culturalmente sem o diapasão da tradição ou das tradições. Como enfatiza Gadamer, estamos sempre inseridos em alguma tradição e não é isso que nos impede os avanços, ao revés, é o que os torna possíveis. Não construímos sentido a partir de nada, mas sempre de algum lugar e desde que tenhamos matéria nas mãos. Do nada, nada surge (ex nihilo nihil).
A perspectiva de Chigalióv, portanto, não pode criar nada, mas apenas destruir. Não é apta a afirmar, mas apenas a negar tudo. Ele, ao invés de propor um novo sistema, empenha-se tão somente na iconoclastia que em vários livros do Mestre Russo é denominada de niilismo.
Não se trata, assim, de significação, mas de um esvaziamento de sentidos. Pergunto-me, para além do simbolismo político de Chigalióv, que formas assume hoje o niilismo?
Deveras a concepção de um mundo, ou mais especificamente, de uma sociedade sem tradição, sem o resgate de sua cultura predecessora, do arcabouço epistemológico a partir do qual galgamos um posto mais elevado na linha evolutiva do pensamento humano soa um tanto quanto utópico. COmo se desprender das "amarras" que me constituem e q, portanto, me permitem cogitar dessa intentona, dessa revolução?
ResponderExcluirO quadro se reverte quando trazemos à baila o niilismo, o famigerado "nadismo". Como nele se verifica um sistema de negação, onde "tudo" se resume a "nada"; árdua é a tarefa de se construir positivamente um novos sitemas, novos paradigmas. Contudo, a única ressalva que se faz é a do sistema niilista, o qual tenta se erguer sobre algo, o que, por seu turno, é nada; a confusão toma conta quando omitimos o artido definido "o" como formo de definir "esse" "nada" como algo.
Da assertiva "do nada a lugar nenhum" inferir-se-ia que o a cultura e as tardições ruiriam dada a sua proveniência ("o nada"); e assim cederia espaço ao "nada" que sempre "existiu", agora sob a roupagem de uma nova cultura independente, de novas tradições.
Sandro, como vai? Bem, você falou de um autor de literatura que me é muito caro, então não posso deixar de fazer comentários. Com relação especificamente à passagem que você escolheu, pergunto-me o seguinte: você considera que a crítica do personagem faz referência direta à opinião do próprio Dostoiévsky? Pergunto, pois acho que sua postagem leva a crer que sim. No entanto, recentemente ouvi comentário durante aula da pós-graduação de o plano da obra 'Os irmãos Karamazov’ tinha o objetivo de mostrar a vida de Aliéksiei como modelar para seus leitores. Uma espécie de herói trágico que começa a trama sem conflitos no noviciado, para uma vivência mais conflituosa. Não sei, posso estar errada, mas essa me parece uma postura de um autor que apesar de apresentar uma biografia cheia de traumas e revezes, ainda guardava alguma esperança humana e social.
ResponderExcluirCom relação ao conteúdo da passagem, acho que as palavras-chave para entender a passagem estariam em sistemas sociais, nos autores citados e a crítica de que tais autores não conhecem nada de ciências naturais, nem do estranho animal que é o homem. Então, acho o seguinte: (1) Especificamente quanto a Platão, acho que a passagem refere-se à República em que, digamos, existe uma elaboração teórica sobre a cidade ideal. (2) Quanto à Rousseau, o que é idealizado é o homem, que seria perfeito no seu estado de natureza e corrompido pela vida em sociedade. Quanto à Fourier eu não conheço, então não vou falar sobre ele. De qualquer maneira, as palavras-chave que indiquei somadas aos comentários (1) e (2) me levam a crer que o problema principal do personagem (a questão de se ele expressa ou não a visão de Dostoiévsky ficou para a primeira questão) está com sistemas filosóficos idealistas, ou seja, aqueles que de algum modo prescrevem o dever-ser, deixando de lado o modo como as sociedades realmente se desenvolvem ou o modo como o ser humano realmente se apresenta. Parece-me que assim estaria justificada a afirmação de que tais autores não conhecem de ciências naturais, nem do estranho animal que é o homem, porque mesmo quando consideramos o homem um “animal”, ele ainda assim se mostra capaz de ações em grande medida imprevisíveis, o que a um só tempo rebate a objetividade e previsibilidade da ciência natural e o encaixe do próprio homem como natural.
ResponderExcluirTentando responder a sua pergunta, considero que uma das formas em que o niilismo se apresenta hoje é no relativismo epistemológico, uma vez que decorrem dele: (1) não há posições teóricas certas, apenas pluralidade de posições; tais posições são defendidas por (2) grupos mais ou menos interessados em mantê-las, sendo assim (3) o que seria considerado objetividade ou intersubjetividade, seria apenas uma espécie de perspectivismo para o relativismo. A propósito, não defendo o relativismo e considero que essa posição epistemológica está equivocada.
ResponderExcluirCaros Débora e Rômulo,
ResponderExcluirQue bom poder lê-los por aqui e agradeço as suas participações.
Não tenho dúvidas que a posição de Chigalióv não é a de Dostoiévsky, masprecisamente o que o Mestre Russo busca criticar pela caricaturização. E não apenas nesse romance, pois essa é uma voz com ecos no Crime e Castigo, nos Irmãos Karamázov que a Débora citou, e no Idiota. Para Dostoiévsky, o niilismo é um mal e uma corrupção, no sentido literal da palavra. Pior que Chigalióv é o jovem Vierkhoviénsky, ideólogo do caos e um patife rematado! Se dei a entender que Dostoiévsky falou por Chigalióv, esteja certa que a intenção era a de afirmar que foi pela fina ironia e pela negação.
Estou de acordo com vc, Débora, que trata-se do relativismo a resposta à pergunta, mas não apenas o epistemológico. Todos os relativismos que, usualmente, confundem a tolerância e o respeito ao multiculturalismo com o esvaziamento me são hostis. Creio que aí se opta pela negação de tudo para que todas as posições sejam possíveis e igualmente válidas. Científica e culturalmente, digo. Mas a tolerância e a diferença não sugerem negação, mas ao contrário, afirmação. Caminham na direção oposta à "nadificação" dos relativismos. Essa impostura de negação da verdade que está na base dos relativismos, eu não consigo admitir porque pode representar um autoritarismo tão corrosivo e sufocante como o absolutismo da verdade. É isso que, creio, está no profetismo literário de Dostoiévsky.
abs,
Fora que, pela descrição que faz do seu "sistema", ele é só uma cópia do Leviathan hehehe ;-)
ResponderExcluirExemplo recente é o livro didático de português adotado pelo MEC que ensina a escrever "Nós pega o peixe", "Os livro"... É exatamente o que falaste, confundir pluralismo, neste caso linguístico, com o vazio linguístico.
ResponderExcluirEu entendo, Sandro, gostei muito da sua resposta. Acho que encontramos um ponto de interesse literário em comum. Devo dizer que também considero que o multiculturalismo pode levar a uma interpretação de que a tolerância é passiva. Estou de acordo com você de que mesmo a tolerância precisa ser ativa, especialmente no âmbito social. Concordo também que o relativismo, que talvez seja uma das "novas formas" do niilismo, não se apresenta apenas na epistemologia. Utilizei-a apenas como exemplo relevante, pois se pensamos de modo relativista, o que dissermos sobre a teoria do conhecimento ou sobre a sociedade estará "contaminado" por essa posição. Aliás, um lugar onde o relativismo parece pairar como perigo quase constante é na interpretação da linguagem. Parece-me que um exemplo que podemos usar é o da interpretação das normas jurídicas, que às vezes pode soar como um "tudo vale", gerando um desconformo social em relação à aplicação das normas. Por outro lado, sabemos que a boa aplicação, seja da interpretação, seja da aplicação de normas, requer um intérprete/jurista, muito bem formado, eu diria não apenas em técnicas jurídicas, como também nas humanidades, pois uma das conclusões que pode ser retirado do seu exemplo literário é que a crítica de teorias sociais (no caso, de dois filósofos, um da antiguidade e outro do início da modernidade) clama pela alternativa. Requer uma resposta de que se não devo pensar dessa maneira, que outra seria mais apropriada? Dessa maneira, continuamos a pensar como Aristóteles, ou seja, para que uma afirmação seja feita é necessário partir de algum ponto (que inclusive pode ser um conceito). O que indiretamente rebate a tese relativista/niilista, que tenta mostrar um tudo vale. Abraço.
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