terça-feira, 10 de maio de 2011

Um olhar sobre si ou a literatura além dos Cárpatos



                A chamada época de ouro da literatura russa tem como seus representantes que, com justiça, podem ser considerados divisores de águas Liev Tolstói e Fiodor Dostoiévsky. Como escritores de dimensões titânicas, entretanto, foram capazes de influenciar-se, aprofundar e ressignificar os avanços literários que herdaram e começavam a constituir o universalismo da narrativa produzida nesse país tão contraditório que era a Rússia do sec.XIX.
                Refiro-me a alguns pontos que posso expor, ainda que brevemente a título de início de uma discussão, como o desafio posto pela intelectualidade russa entre criar uma identidade eslavófila, verticalizando a compreensão de sua história enquanto diferença da história européia, um contraponto e uma antípoda. A ruptura proposta pelo governo europeizante do Czar Pedro, o grande, em relação ao legado anterior tártaro-mongol, foi consubstanciada politicamente pela participação intensa da Rússia nas guerras napoleônicas e pela atenção inevitável que o Império russo começou a atrair, mesmo em função da sua magnitude territorial, que se estenderá até o oceano pacífico.
                Esse pêndulo entre uma identidade eslava e européia marcará as artes no sec.XIX, mormente suas maiores expressões na Rússia, como a literatura e a música. Tchaikovsky, por exemplo, será conhecido na história da música como um compositor cosmopolita, fortemente sinfônico, mas com indisfarçável apelo teatral para o qual procurou trazer os padrões estéticos europeus. Assim o faz n’ “A donzela de Orleáns” (1881) e na deslumbrante “Eugene Onegin” (1879), baseada em poema de Pushkin, poeta russo profundamente influenciado pela estética alemã de Schiller e Goethe. A obra de Tchaikovsky opunha-se às diretrizes do chamado “grupo dos cinco” formado pelos músicos mais renomados da época: Balakirev, César Cui, Mussorgsky, Rimsky-Korsakov e Borodin, que repudiavam as criações francesas e alemãs, além da condenação ao teatro lírico italiano que entendiam por grosseiro. Na sua proposta, deveriam dedicar-se a expressar uma “identidade” eslava característica.
                Na literatura, desde a obra pequena, mas extremamente influente de Liermontóv, e me refiro ao extraordinário “O herói de nosso tempo” (1840), que é considerado por Paulo Bezerra “um dos mais belos textos da prosa clássica russa”, a peculiaridade das paisagens e da diversidade étnica desse país gigante que é a Rússia, seu clima inclemente, seu relevo mitológico e a vida de sua gente vão compor o cenário de histórias que se universalizarão na medida em que seus mais talentosos escritores saberão inscrever tais elementos nos cânones narrativos dos dramas humanos. Essa grandeza desvela, na minha opinião, a mesquinharia que me incomoda profundamente nos modelos nacionalistas e regionalistas: o experimentalismo lingüístico que não raro, por pretender a auto-justificação, tende a uma pirotecnia; e uma aura blazé dos grupos intelectuais que pretendem fazer e dizer muito, mas pouco avançam além dos salões em que discutem entre si, dentro de um tempo absolutamente datado. Nosso nacionalismo brasileiro e nosso regionalismo modernista, por exemplo, inegavelmente produziram obras notáveis e pronunciaram talentos autênticos, mas naquilo em que sobreviveram tais movimentos, tal vivificação ocorreu em obras maiores que esses mesmos movimentos. A grande literatura permaneceu não por causa do nacionalismo e do regionalismo no Brasil, mas apesar dele. Não preciso ir muito longe, para os propósitos desse texto despretensioso, senão exemplificando com Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Graciliano Ramos e, no lado oposto, apesar da “foguetaria” histórica, não me parecem fazer parte de nossas leituras hoje, pelo gosto e pelos dramas humanos, o “Macunaíma” ou a “Paulicéia desvairada”, pelo menos não mais que o “I Juca pirama” ou “O Uraguai”...
                Em Dostoiévsky temos a introjeção da narrativa do sujeito, o olhar de dentro, a confusão e a dúvida corrosiva. A escolha do escritor é a de entender o mundo da única perspectiva que lhe resta, dado que tudo ao redor está sendo desmontado. A quebra do ciclo simplificador em que essa trajetória pode redundar consiste em que os personagens vão nos permitindo compreender que não há nada na desordem do mundo, nada, que não tenha lugar antes na nossa própria desordem, em uma voragem interna e internalizante. Isso torna a inconsciência uma alternativa imponderável, porque não há onde esconder-se. É isso que permite aos personagens proféticos e místicos em Dostoiévsky serem inatingíveis ou loucos, o que talvez signifique o mesmo (Zózima, em “Os irmãos Karamázov” e Sémion Yakólievtch, n’Os demônios).
                A forma do romance adotada pela grande literatura russa dos novecentos, que envolve a trama simultânea de narrativas distintas, não foi uma alternativa circunstancial, mas necessária enquanto eleição estrutural e estruturante diante do desafio da busca de uma identidade pela via universal. Postulo que a grande literatura russa trilhou o caminho de constituir um olhar sobre si e não por uma tautologia. Explico-me: os russos possuem um longo e multifacetado mosaico de tradições e uma história em que são maiores as distâncias que as proximidades com o legado da antiguidade clássica. Isso vincula uma identidade isolada e incomunicável? Um autismo consciente? Isso constitui a identidade ou uma desumanização excludente? É tautológico, afinal, dizer que nossa identidade é sermos idênticos a nós próprios... Como definir o “próprio” senão através do recurso a um certo distanciamento em que a diferença seja perceptível em relação ao outro? O olhar sobre si supõe o distanciamento porque devo supor-me fora, mirando o que está dentro.
                A forma narrativa do romance para Dostoiévsky e Tolstói consiste nesse olhar sobre si, nesse distanciamento. É a forma de contar várias histórias, constituir tramas complexas, que às vezes somente se tocam no texto como que por um acaso, recurso utilizado com abundância n’ “Os Irmãos Karamázov”. Ora, não é assim que tal grande literatura propõe que seja a identidade russa, uma trama complexa de histórias distintas, de distintas etnias que, como que por acaso encontram-se? Que a despeito do acaso, que afinal pode presidir o próprio mundo, essa trama possa ter algum sentido elevado? Que seja essa a mais humana das narrativas porque mais completa e universal?
                Quantos não são os ecos dos heróis da “mitologia humana” na narrativa de Raskolnikóv e  Nekliudóv... Os dramas do ódio, da culpa e do perdão, da cegueira e do vazio das vaidades, da ignorância de si e do esquecimento. Esses são alguns dos universais a partir dos quais essas histórias procuram pautar-se, o que permite que a literatura russa dos novecentos ultrapasse o empobrecimento a que a magnificência de sua variedade poderia, paradoxalmente, conduzi-la: narrativa russa para os russos.
                Graças às inteligências de Dostoiévsky e Tolstói, principalmente, poucos são aqueles que na leitura dos russos não possam ver a dinâmica dos espíritos de todos nós, na mais plena riqueza dramática que a arte possa alcançar. 

2 comentários:

  1. Professor, data venia, sugiro que altere o layout do blog, pois as figuras da imagem em contraste com as letras dos textos dificultam a leitura.

    Att.

    Marcel Dias

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  2. Prezado Marcel,

    Pôxa, gostava do ambiente nostálgico do layout anterior, mas talvez provocasse alguma dificuldade mesmo. veja lá se este melhora as coisas.

    Grato pela sugestão.

    Sandro

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