terça-feira, 9 de agosto de 2011

DE ONDE VEM O MAL?

                A pergunta instigante é a capa da Revista Galileu, nº240, cuja leitura vale a pena pelo cuidado com que o tema foi tratado.
                Ocorre-me, entretanto, aproveitar a oportunidade para ampliar alguns aspectos desse debate, acerca da visão de mundo da ciência.
                A proposta que motiva a pergunta acima diz respeito aos resultados de pesquisas que tem indicado que determinadas deformidades em áreas do cérebro (o córtex pré-frontal medial, por exemplo)  responsáveis pela empatia, ou seja, a capacidade de projetar um evento de outrem como se fora seu, estão associadas à maldade, entendida aqui como os crimes violentos. A identificação física da área afetada, bem como a compreensão das operações neurofisiológicas presentes na reação empática, tem levado às sugestões de terapias medicamentosas capazes de corrigir o problema, liderando as novas drogas a oxitocina.
                A identificação de problemas cerebrais associadas à violência novamente propõe alguns temas já recorrentes no final do século XIX e século XX: que a intervenção médica pode ser o caminho mais adequado para o tratamento da criminalidade, ou pelo menos, de determinada intercorrência de criminalidade; que o criminoso pode não ser responsável pelo crime, dado que não se trata propriamente de vontade, mas de uma incapacidade ou doença e; é possível desenvolver uma política de prevenção da criminalidade a partir de critérios médicos.
                Isso que parece ser uma projeção de ficção científica já acontece, entretanto. Um exemplo é o desenvolvido pelo Programa Para Pessoas com Severos Transtornos de Personalidade, o DSPD, do governo britânico no qual, dentre outras coisas, 12 unidades monitoram crianças com distúrbios de conduta com a finalidade de prevenir psicopatias. Investiga-se também nestas crianças o a presença de genes específicos ligados à “maldade”.  O psicólogo Simon Baron-Cohen, de Cambridge, é um dos líderes desse nova versão da tendência “patologizante” do mal e sugere –ele que é judeu- que o mal funcionamento cerebral que dificulte a empatia pode estar por trás dos eventos que transformaram pessoas comuns em torturadores na segunda guerra mundial.
                Bem, feito o resumo da tese, gostaria de levantar uma ou outra consideração.
                É notável a tendência atual de transformar a psicologia e sua metodologia em um a extensão da biologia. De subverter sua metodologia pela dosimetria farmacológica e questionar epistemologicamente o binômio consciente e inconsciente. Essa é, propriamente, a maior novidade nessa abordagem atual da “patologização” do crime e da “maldade”, porque a associação do crime a características fisiológicas ou morfológicas não é absolutamente nova, mas remonta, pelos menos, aos trabalhos de Beccaria, com enorme repercussão no mundo, e Raimundo Nina Rodrigues no Brasil. É de nefasta lembrança a lobotomia como forma preconizada de tratamento para criminosos violentos e, mais simpática e picaresca, a moda da frenologia no final do sec.XIX e primeiro quartel do sec. XX.
                Não desejo negar os avanços que possam significar as descobertas diuturnas da neurofisiologia, mas preciso deixar claras as minhas infinitas reservas às repercussões que se tem procurado dar a elas, sempre em um sentido inaceitável de reducionismo e alienação do homem.
                Em primeiro lugar, a associação da “maldade” à violência e a agressividade é um reducionismo inadmissível, em grau exponencial quando a relação é estendida à criminalidade. Isso porque: a) A maldade é a ausência do bem e está presente tanto na mutilação que alguém inflinge a outrem, quanto na omissão em denunciar uma fraude; b) A assunção da violência como uma manifestação patológica influenciada por uma deformidade neurofisiológica ou neuromorfológica não explica as manifestações coletivas de violência, nem o holocausto, nem as rebeliões que acontecem desde sábado passado (06.08.2011) em escalada em Londres; c) Há, inevitavelmente, uma desumanização na consideração da “maldade” nessa “patologização”, bem como o fortalecimento da lógica contemporânea que exclui a responsabilidade pela explicação exterior. Trata-se do “encapsulamento” do bem, o qual pode ser fabricado, exposto e comercializado nas farmácias, na mesmíssima linha da felicidade sintética da fluoxetina, ou do prazer com o Viagra ou o Cialis... Isso me parece mais grave ainda se entendermos que a “desumanização” implica não apenas na alienação de si mesmo, mas na “desumanização” do outro, em um tipo de discurso, agora, qualificado de indiferença. Paradoxalmente, se considerarmos que a questão inicial trata sobre empatia!
                Em segundo lugar, e isso vem bem demonstrado pela revista, se um número significativo de pessoas com transtorno borderline, que acentua a agressividade, possui deficiências associadas a determinadas áreas do cérebro, também é verdadeiro que de 60% a 80% delas têm histórico de maus tratos, dentre os quais de 40% a 70% do mesmo grupo foram vítimas de abuso sexual na infância.
                A tese “patológica” desassocia perigosamente a violência da própria violência, da cultura do mal e da agressão, do controle sobre si, da auto-consciência e do auto-exame. Robert Darton em um belo livro chamado “O beijo de Lammourette” diz-nos que uma das características da época moderna é, a despeito da nossa convivência com o crime, a cena pública ter-se limpado da violência extrema. Não andamos mais nas praças sobre o sangue dos executados ou não vemos pelas ruas suas cabeças expostas como exemplo. Entretanto, digo eu, cercamo-nos por todos os lados na nossa cultura dessas imagens na busca de satisfazer tais sensações provocadas pelo embate violento, pelas execuções e guerras. É essa a mídia bilionária dos filmes, dos jogos e dos jornais populares. Desejamos coletivamente trazer tudo isso de volta e com tais cenas reinventamos nossos heróis, sempre armados, indiferentes e distantes, implacáveis e inabaláveis. Qual a distância entre os heróis dos “Bastardos Inglórios” e os psicopatas, de levada em conta a indiferença à dor e à mutilação do outro? No atual cinema temos que acentuar a diferença entre o horror e o terror. Aquele estava mais para as histórias de Allan Poe adaptadas ou para as célebres adaptações do inesquecível conto “O caso da mão do macaco”, ou ainda o notável seriado “twingligth zone”. O terror é quando não há motivo, quando a desrazão e a crueza imperam. Não se trata do susto, mas da desesperança. Não o suspense, mas a imagem e o inegável. É a glória dos zumbis, por exemplo...
                Não quero defender a tese pueril de que o cinema, os tablóides populares e os jogos transformam, por si, nossos filhos em criminosos sem coração. Contudo, afastando-me completamente da tese “patologizante” e assumindo uma idéia de Sto. Agostinho, quando se perguntava sobre aquilo que nos liga ao pecado ou mal original, diria que se trata dos hábitos. A infindável cadeia dos hábitos na qual reproduzimos nosso agir cotidiano, a maior parte de nossas decisões e reações e pelas quais costumamos orientar nossas expectativas e sentimentos, aí temos o mal.
                É pelo hábito que uma comunidade vê o diferente como “estranho e hostil”. O estrangeiro é aquele e aquilo diferente do que vemos todos os dias, daquilo a que nos acostumamos. A xenofobia e a violência em diferentes matizes que ele gera não se pode explicar pela deficiência morfológica do córtex pré-frontal médio...Nem a discriminação de negros no mercado de trabalho ou a mutilação do clitóris em certos países africanos. Trata-se da cadeia dos hábitos que nos torna indiferentes ao bem, que nos permite deixar de considerar o outro simplesmente porque não o vemos enquanto tal. Os mendigos de rua não seriam vistos como humanos, nem os antigos escravos, nem os homossexuais ou os estrangeiros...
                Quando nos cercamos, portanto, das imagens da violência, seja do sangue, seja da indiferença ao outro, ao pobre, ao excluído, ao estrangeiro, etc., não consideramos a própria exclusão uma violência, mas algo do dia-a-dia, ou mesmo um dever de auto-defesa ou de segurança do país ou da comunidade. A história humana está repleta de exemplos que demonstram o quanto tais discursos prosperam rapidamente. Um vídeo ou um jogo, isoladamente, não é capaz de transformar ou incitar alguém. Mas uma cultura de indiferença e de exacerbamento do individualismo, sim. Dos pequenos aos grandes gestos e atitudes. Das pequenas concessões de irresponsabilidade em relação ao outro nos relacionamentos afetivos, das pequenas concessões éticas, da inércia e das omissões nascem hábitos poderosos de indiferença.
                Por todos os lados, a violência e a indiferença parecem ser respostas mais adequadas ou,  pelo menos, comuns aos desafios da sobrevivência, das carreiras e do mercado. Isso nas comunidades pobres de Totenham, em Londres, ou em Wall Street. Nossos afetos tem-se configurado pelas mesmas atitudes acima descritas, transcritas das ruas para as casas. O desejo afigura-se como a exaltação e afirmação plena de si em detrimento do outro ou com sua instrumentalização e reificação, portanto. E são essas as imagens que desenham nosso horizonte dominante, formam nossas expectativas e desejos?
                Não responderei a pergunta, a qual, por si só, já me demonstra quão reducionista pode ser um perspectiva “patologizante” e a reversão biológica das dimensões da mente e da alma em um discurso dosimétrico. O mal é muito mais complexo do que operações neurofisiológicas podem individualizar, porque a vida não pode ser medida por meio de tais operações.
                Talvez, o verdadeiro mal com o qual estejamos lidando nesse artigo seja a própria redução do homem a uma fórmula...
               

               

7 comentários:

  1. Também me interessei muito pela matéria da Galileu, que segue sendo uma publicação de curiosidade científica um pouco mais séria em sua linha editorial, ao contário da outrora gloriosa Superinteressante, que se rendeu a um lamentável estilo adolescente, mesmo possuindo a Mundo estranho para cumprir esse papel.
    Não sou adepto de teorias conspiratórias mas, diante de tudo o que vemos, penso que deveríamos considerar a possibilidade de esses estudos serem encomendados pela indústria farmacêutica, uma das mais covardes do mundo, desejosa de colonizar a humanidade com remédios para tudo, inclusive para a felicidade e para assegurar comportamentos elementares.
    A par disso, penso que também deveríamos refletir sobre a irresponsividade daquele que apresenta algum tipo de transtorno psicológico/biológico. Se ele comete uma ação tida por desviada a partir de peculiaridades orgânicas, pode-se mesmo dizer que isso é maldade? O conceito de mal não pressupõe um juízo de valor que depende de uma vontade livre?
    Espero que esta discussão prossiga, porque é rica.

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  2. Olá professor!

    Mt boa sua explanação sobre a critica do gene determinante quanto à questao da psicopatia.

    Entretanto, acredito q vc esteja tendo uma ideia mt unitária dos proprios peskisadores da área biologica sobre o assunto.

    Peskisando rapidamente na internet sobre isso, dá para achar, entre tantas coisas, esta entrevista com um médico com bastante experiencia na área:

    http://super.abril.com.br/ciencia/ele-quase-nasceu-psicopata-614404.shtml

    Ele mesmo diz q nao ha nem ambiente determinante no disturbio de personalidade, e nem gene determinante.

    E ainda diz q pessoas q tem um gene guerreiro, ou falta, ou pouca, atividade na area do cerebro responsavel pelo sentimento de culpa, remorso, etc, podem, inclusive ser mais social q pessoas sem estes problemas.

    http://super.abril.com.br/ciencia/mente-mata-442855.shtml

    Este outro link relativiza mais ainda a ideia de transformar o ser humano em uma formula.

    Este outro profissional da area biologica, com ótima experiencia, tb diz q é uma pobreza afirmar q apenas o gene é determinante, apesar de ajudar na tendencia.

    Nao pretendo aqui, vestir camisa, com argumento do tipo: o q a genetica nao pode explicar é cultural. Ou: o q as teorias culturais nao podem explicar é genetico.

    Entretanto, apenas percebo q há 3 tipos de influencias biologicas:

    1 - Akelas q sao puramente ambientais. Exemplo disso é o nosso sotake. Pq eu falo com sotake de brasileiro, e um chines fala com sotake de chines? R= Pq eu fui criado no Brasil, e o Chines foi criado na China. Simples. nao há genetica aí. Se eu fosse criado na China, eu falaria com sotake chines. logo, há apenas neste caso, influencia 100% ambiental.

    2 - Akelas que sao puramente geneticas: Exemplo: Cor dos olhos: Vc pode chorar, clamar, gritar, mas a cor dos seus olhos nao poderão mudar.

    3 - Akelas q sao tanto geneticas como ambientais: Exemplo: Diabete ->

    Uma pessoa q tem gene da diabete, mas se cuida, cria um ambiente cuidadoso no sentido de nao apresentar a doença, fazendo dieta, praticando exercicio, nao fumando, se alimentando de forma balanceada, etc.. Pode nao apresentar a doença em nem um momento da vida, e ter uma vida normal, como alguem q nao tem o gene da Diabete.

    Assim como, por sua vez, uma pessoa q nao se cuida: Bebe, fuma, nao pratica exercicio, come, diariamente, comida gordurosa, nao saudavel, e é extremamente sedentária, pode se safar da diabete, caso não tenha o gene da diabete.

    Neste caso, a pessoa jamais terá diabete, já q nao tem o gene da diabete... Pode morrer de qualquer coisa, devido à vida desregulada: Menos de diabete :P

    Logo, a diabete é um problema tanto genetico, como ambiental.




    Entao, percebi q houve uma confusão sua, ao dizer q todos os q defendem o gene da psicopatia, consequentemente, defendem q o gene dos disturbios mentais se enquadram no 2º tipo de influencia biologica.

    Vc fez um silogismo dizendo q:

    Defender um gene da psicopatia = dizer q psicopatica é puramente genetico, assim como a cor dos olhos.

    Nao, nao. Todos q defendem esta tendencia genetica da psicopatia, defendem q ela faz parte do 3º tipo de influencia: Q ela é tanto genetica, como ambiental.

    Nao consegui achar nem um estudioso sério da area biologica q defenda q o comportamento sádico, sem sentimento, sem remorso, seja 100% genetico. Seria até infantil afirmar isso.

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  3. Caro Luciano,

    Excelente seu comentário e cuidadosas as observações, mas veja que não tive a intenção de explorar o assunto com toda sua amplitude, mas apenas de levantar um comentário acerca das abordagens da revista. Seu comentário acrescenta dados e, corretamente complementa várias informações com vantagens.

    Estou de acordo com a afirmação de que não há nenhum pesquisador seja da biologia, seja da psicologia evolutiva ou das neurociências que ignore a influência de fatores ambientais no desenvolvimento de tendências as quais podem ser geneticas, e se me fiz entender diversamente foi um equívoco. Meu ponto é outro: primeiro, que tais fatores genéticos ou morfológicos sejam preponderantes a tal ponto que, a despeito dos ambientais, um remedinho resolva...Segundo, também a despeito dos fatores ambientais, se a questão está ligada a um gene ou a uma má formação do córtex, existe uma inimputabilidade a ser levantada...Terceiro, que a identificação de um screening genético ou de uma tomografia computadorizada gere, independente dos fatores ambientais, estigma a ponto de provocar a necessidade de acompanhamento deste ou daquele indivíduo, inclusive crianças como já citei que existe, como uma espécie de Minority report ou pré-crime!
    Desta maneira, creio que meu argumento de preocupação ainda resiste.

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  4. Caro Yúdice,

    Que bom ler seu comentário e, de fato, como observei ao Luciano, minha maior preocupação reside seja na idéia de um pré-crime e estigmatização, bem como no esvaziamento do conceito moral de "mal" como resultante da vontade humana em um conceito biológico ou neurofisiológico. Trata-se da distinção hoje relevante entre a mente e o cérebro, sendo aquela mais próxima da tradição ocidental de "alma", onde a vontade e o aarbítrio são prevalecentes, e esta associada aos neurônios e morfologia orgânica.
    Meu argumento, portanto, não cuida da defesa das penintenciárias versus os hospitais, de forma alguma, mas da preocupação acerca de uma versão melhorada e vertida em outra linguagem da"s explicações absolvidoras" da sociologia das décadas de 60 e 70 nas quais quase não havia mais crime, porque tudo era culpa do sistema e da sociedade. A bem da verdade, culpa seria também um conceito inadequado, dado que era moralizante e repressor...
    Se tudo é patologia e doença, se há sempre uma razão´para nossas ações inscrita nos nossos genes ou no nosso cérebro (e não mente), vamos para o mesmo esvaziamento e desconfio dos resultados dessa tendência.
    Excluir a responsabilidade do homem, em boa teologia, é desumanizá-lo.

    Grato pelo comentário, amigo.

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  5. resumindo de forma extremamente grosseira:todo ser-humano é o que é, por conta da genética e do ambiente em que é criado,além do livre arbítrio.minha mera visão da coisa toda.

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