quarta-feira, 23 de março de 2011

Considerações acerca de uma história preterintencional.

(PARTE DOIS DE TRÊS)
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2. Preterintencionalidade em Rousseau.

                   Em Rousseau a história da humanidade assume um aspecto curioso, sendo o curso de sua própria decadência numa proporção direta ao seu progresso, ou por outras palavras, quanto mais o homem progride na sociedade mais ele decai moralmente. A arquitetura rousseauniana é assim a reconstituição no campo da filosofia moral e política do mito da queda de Adão do paraíso, tal como nos conta o livro do Gênese.

                   Sua obra maior na exposição dessa teoria é, sem dúvida, o Discurso sobre a origem e os fundamento da desigualdade entre os homens, escrito para responder à pergunta de mesmo teor lançada pela Academia de Dijon e publicado pela primeira vez em 1754, obtendo de imediato grande repercussão, inobstante ter sido preterida na Academia  pela obra do Pe.Talbert, hoje esquecido completamente. De acordo com Paul-Arbousse Bastide em comentários preliminares ao Discurso: "Em dois pontos especiais a repercussão do discurso foi considerável: a) Rousseau instaurou, definitivamente, na literatura o mito do selvagem livre, feliz, robusto e puro, a superioridade da vida simples na natureza em oposição à vida doentia das cidades civilizadas; b) voltou a dar forma à doutrina da igualdade, ao ideal de vida comunitária, que foi o dos espartanos e dos primeiros cristãos".[1]

                   Mas um ponto que precisa ser destacado em Rousseau e que já foi objeto de muita má interpretação, inclusive por seus contemporâneos como Voltaire, e que ele não é um defensor do retorno ao estado de natureza, um civilizado bucólico que desejava não meditar por vergonha de sua depravação. A leitura de sua obra de maneira alguma autoriza essa interpretação, ainda mesmo que nos deixemos surpreender pelas passagens mais radicais do Discurso: "...as fadigas e o esgotamento do espírito, as tristezas e os trabalhos sem-número pelos quais se passa em todos os estados e pelos quais as almas são perpetuamente corroídas - são, todos, indícios funestos de que a maioria de nossos males é obra nossa e que teríamos evitado quase todos se tivéssemos conservado a maneira simples, uniforme e solitária de viver prescrita pela natureza. Se ela nos destinou a sermos são, ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um estado contrário à natureza e que o homem que medita é um animal depravado"[1]. Obviamente, essa depravação a qual Rousseau refere-se e que tamanha pândega provocou é apenas uma instigação àqueles que não compreendem que o conhecimento não torna o homem melhor por si próprio. Se ele for incapaz de fazê-los entender que as imensas desigualdades das sociedades da época desafiam a arrogância da filosofia pura, meramente metafísica, tal sabedoria de muito pouco vale, e é aí que a obra rousseauniana impregna-se do pragmatismo iluminista, que via nas idéias um instrumento de intervenção e transformação da sociedade, o que tanto empolgaria um Kant ao avaliar o alcance da Revolução francesa e levaria o próprio Rousseau a redigir seus projetos de constituição. Mas ao mesmo tempo, é o teor de uma idéia como essa que torna Rousseau um pensador desviante no contexto do iluminismo, pois a razão e o conhecimento que dela pode advir apenas podem trazer ao homem as "muletas" para uma decrepitude moral que teria sido evitada se o estado de natureza não houvera sido defenestrado.

                   Rousseau é um argumentador exaltado no mais das vezes, e diga-se de passagem, um excelente debatedor. Seu argumento é feito para chocar, deliberadamente eu direi, provocando controvérsia e arrebatação, que é e sempre foi a melhor forma de conseguir atenção sobre uma obra. Agora, seu pensamento não se esgota aí, ele é bem mais elaborado. Se ele afirma que a sociedade civil é corrupta, no sentido radical da palavra, é porque centra na bondade original da natureza humana a razão central para sua tese revolucionária e, assim, ele recria para o âmbito político a velha escatologia religiosa do bem vs. Mal, na qual aquele deve sempre prevalecer.

                   Mas decorre da leitura do Discurso que o estado de natureza não pode subsistir, pois está na própria natureza humana o germe evolutivo que inevitavelmente  conduzirá a sua superação, queira o homem ou não. Os resultados das ações humanas, as circunstâncias em que os homens encontram-se e precisam de cada qual para contornar problemas eventuais como a alimentação, a satisfação do desiderato natural de reprodução da espécie, dentre outras coisas obrigam o homem a sair de seu individualismo original, que por mais que fosse bom por ser um estágio de igualdade, era insustentável. Daí que o homem, diferentemente dos animais, que passam milhares de anos sem apresentar nenhuma mudança no seu modo de vida original, é o único animal que possui a capacidade de tornar-se imbecil[1].

                   O estado de natureza fixa, portanto, fundamento do argumento individualista de Rousseau, sendo que enquanto o homem precisou apenas de si próprio para manter-se totalmente, todos foram iguais. A inexistência de linguagem, os conúbios eventuais (pois o amor moral é invenção da sociedade civil), sendo  necessidades circunstanciais, impediam que fosse possível no estado de natureza qualquer progresso. Rousseau destila todos seus argumentos contra aqueles filósofos que vêem no estado natural elementos e paixões que apenas a sociedade pode criar. Assim, a passagem desse estágio foi preterintencional, isto é, o conjunto das ações circunstanciais e isoladas dos homens foi progressivamente gerando novas necessidades e as ações para satisfazer àquelas foram gerando outras e assim sucessivamente. Ilustrativamente: "Desde que se tornaram necessários homens para fundir e forjar o ferro, precisou-se de outros para alimentar a estes. Na medida em que se multiplicou o número de trabalhadores, menos mãos houve para atender à subsistência comum, sem que com isso houvesse menos bocas para consumi-las, e, como uns precisam de comestíveis em troca do ferro, outros por fim encontraram o segredo de empregar o ferro na multiplicação dos comestíveis. Nasceram assim, de um lado, a lavoura e a agricultura e, de outro, a arte de preparar os metais e multiplicar-lhes o emprego"[1].                
                   Essas investigações de Rousseau dão-se bem ao gosto difundido na época de fazer a reconstrução da história a partir da introspecção, consoante o dístico "conhece-te a ti mesmo" que simboliza a tendência bem presente no filósofo iluminista de trazer para a imanência, por sob a tutela do homem, elementos que antes se continham na esfera do pensamento teológico de maneira absoluta. Tal característica é que irá permitir ao iluminismo investir-se de um pensamento crítico radical, atacando dogmas, avançando por campos outrora vedados à investigação (apesar desse ser sempre um limite desrespeitado pelos mais ousados pensadores), problematizando e autonomizando os diversos campos em que a ciências dividiam-se. E é dessa maneira que Rousseau reconstrói um paradigma naturalista e irá reconhecer no homem uma propensão ao bem, o que somente é exercitável na sociedade civil, pois o homem selvagem não é bom, nem mau, senão simplesmente indiferente; do ponto de vista ético ele é amoral. Mas há nele uma natural tendência a fazer o bem fundada na piedade ou compaixão instintiva que ele sente com relação aos outros animais, inclusive aos de sua própria espécie. É sobre essa natural inclinação que deverá exercer forte influência a pedagogia rousseauniana, como arte de desenvolver o conjunto das potencialidades da criança a quem a ignorância iguala ao ingênuo selvagem.

                   Portanto, ao nosso entender, Rousseau encararia a proposição de Ferguson como acertada e não há outra alternativa, senão esta, pois se a história para Rousseau fosse produto das intenções das ações humanas e delas tendo resultado a decadência que o progresso trouxe, a corrupção do espírito humano e seu aprisionamento, então o homem não seria bom originalmente, ou melhor dizendo, não apresentaria de fato tal propensão para a bondade. Para Rousseau a degradação que o homem provocou ao dividir as tarefas, ao estabelecer a propriedade sobre o que produzia e ao aderir a um contrato que protegia tais desvios da igualdade original, foi acidental, fruto de uma evolução natural, posto "que na minha opinião a sociedade é tão natural para a espécie humana como a decrepitude para o indivíduo e de que aos poucos são necessárias as artes, as leis e os governos, como as muletas o são para os velhos. A diferença toda está em que o estado de velhice decorre unicamente da natureza do homem e o da sociedade decorre da natureza do gênero humano, não imediatamente como quereis, mas unicamente, como o provei, graças ao auxílio de certas circunstâncias exteriores que podem acontecer ou não, ou, pelo menos, acontecer mais cedo ou mais tarde e, consequentemente, apressar ou retardar o progresso"[1].

                   Então, se deve entender que a intenção da ação do homem não dá conta do que realmente importa na evolução histórica, mas as razões centradas no gênero humano, i.e., a humanidade, é que têm o condão de provocar este ou aquele dado caminho para a história. No caso de Rousseau, a humanidade depravou-se por conta das circunstâncias históricas que ele reconstrói por ficção, mas não por isso menos plausível, em que a necessidade e a imprevisibilidade do homem primitivo engendram, tal como citamos anteriormente.

2 comentários:

  1. Professor,

    considero esta obra de Rousseau cheia de vitalidade. Leva-nos a pensar quantos sujeitos anônimos contribuiram para o desenrolar da história (ou pré-história)humana, com atos aparentemente insignificantes, sem sequer saber o que viria após eles.

    Ernest Renan, no "Vida de Jesus", falou: "Os antigos se guiavam, na grande parte dos seus atos, pelos sonhos que tinham tido na noite anterior, por induções tiradas do primeiro objeto fortuito que lhes chamasse a atenção, por sons que pensava ouvir. Houve vôos de pássaro, dores de cabeça que decidiram o destino do mundo." Apesar de que acho que o Ernest Renan se guia por uma visão de história pautada nas personalidades, mas não tenho certeza...

    Acho interessante a ingenuidade (ou senso crítico?) de Rousseau em advogar a hipótese de que os orangotangos da ásia poderiam ser humanos no estado de natureza.

    Só uma dúvida remanesce: Rousseau acreditava na narrativa que elaborou, ou na história do Gênesis que ele mesmo fala ser revelada sobrenaturalmente?

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  2. Caro Valdenor,

    Agradecendo sempre a oportunidade de conversar com vc, digo-lhe que a narrativa do contratualismo acerca do estado de natureza e da origem da sociedade civil/Estado, não é uma perspectiva histórica propriamente, mas uma assertiva lógica sobre a razão humana. De outro modo, tomadas em conta as premissas estabelecidas na narrativa, a escolha do contrato seria a melhor opção racional. Dentro da perspectiva de Rousseau, considerando que não podemos retornar ao estado de natureza do qual saímos sem a consciência das dimensões daquela escolha, há a possibilidade de preservarmos algumas virtudes derivadas da assunção consciente da nossa real situação. Podemos optar pelo bem e essa seria a opção para a qual a razão humana tenderia, sendo capaz de compreendê-la longe do erro. E não é, afinal, uma tarefa idônea para a razão afastar o erro?

    O que mais me desperta atenção em Rousseau é que a razão humana, em primeiro lugar, não é nosso distintivo em relação aos demais animais, mas a linguagem e a educação; em segundo, ela não está associada de maneira necessária à virtude, como demonstra sua narrativa de corrupção, mas ela é o instrumento ao qual estamos aprisionados e o qual pode nos libertar se optarmos pela virtude.

    Abs,

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