segunda-feira, 21 de março de 2011

Considerações acerca de uma história preterintencional.

(PARTE UM DE TRÊS)

                   O iluminismo como realidade presente e atual no mundo ocidental por certo não deve essa posição a um despropósito. Uma parte considerável dos conceitos que hoje possui o homem ocidental, sua visão da ciência e da história, a relação entre ciência  e fé, sentimento e racionalidade, a sua idéia de progresso, citados enumerativamente apenas dentre outras coisas, são se não criados pelo movimento do setecentos ao menos por ele profundamente influenciados.

                   O iluminismo ou ilustração (enlightenment, aufklärung, lumière), conforme a preferência, foi um movimento cuja tônica era a secularização de dogmas, a assunção do homem a uma posição de sujeito no processo de criação. Era uma audácia - Sapere Aude! - que importava na ruptura com uma série de preconceitos de ordem religiosa ou sentimental. Cabe observar nessa altura, que longe de ser um movimento uniforme e compacto, como uma maré, ou tendo acontecido no meio de uma "terra de ninguém", o iluminismo teve sua preparação, em deve também ser entendido como a culminação de um processo que possuiu suas raízes, dentre outras, no seio da própria intelligentsia da Igreja. A esse respeito cumpre citar FRANCISCO CALAZANS em esclarecedor trabalho: "Do século XVI ao século XVIII, desenvolveram-se duas linhas de reflexão tendentes em ambos os casos, a reconhecer a realidade secular. A primeira, no plano da política, tem seus marcos mais significativos em Maquiavel, Bodin, Hobbes e Locke, mas é preciso não esquecer a importância de certos textos de Tomás de Aquino (sec.XIII) e, sobretudo, de Roberto Belarmino (sec.XVI), nos quais desponta uma visão cristã da secularização cuja essência é o reconhecimento da autonomia e da legitimidade da esfera própria do entendimento humano, assim como da realidade intramundana do homem e da vida, ou seja, do natural (...) A segunda linha, muito vinculada  às vicissitudes inglesas do seicentos, tem em Herbert de Cherbury (1588-1648) e nos platônicos de Cambridge como Henry More, os expoentes de uma tendência que busca conciliar a ciência com os valores espirituais, pois, para eles e muitos outros, 'a razão é a luz, o candelabro do senhor'. Pensavam,  assim, que era possível conciliar razão e revelação, fazendo da Revelação presente na Bíblia apenas o começo histórico de uma revelação a ser adquirida por intermédio da razão" [1].

                   Mas importa notar que a noção de historicidade foi obra dos iluministas, partindo do suposto sentido da evolução histórica criou-se o problema da história. É assim que Voltaire se refere então a uma "filosofia da história", crendo na possibilidade de analisá-la por sobre a sucessão cronológica dos fatos e identificar um sentido para sua evolução na cultura dos homens, no "caldo comum da civilização". Deve-se compreender daí que se há um sentido para os fatos encadeados no tempo esse mesmo sentido não pode escapar da razão humana, pela simples constatação de que a história é um dado humano. A recuperação do devir do plano transcendente para a imanência obrigatoriamente o preenche de uma nova lógica, assentada desta feita na própria razão dos homens.

                   Essa perspectiva imanente e racional confere à história no contexto da maioria dos pensadores iluministas uma idéia otimista quanto ao porvir. Os progressos da técnica, da medicina e das demais ciências e a noção estabelecida de que o homem pode dar conta de sua própria evolução pelo primado racional, concedem ao filósofo iluminista a impressão segura de que tudo o que haja de miséria no mundo pode ser extirpado, contanto que seja descoberta a sua razão. Isso porque nada é injustificável no mundo, pois o mal é fruto do erro. O mundo ainda que possua todas as misérias que se conhecem é para o iluminista o "melhor dos mundos possíveis", feito justamente para ocupar o lugar que ocupa. Mas ao contrário da objeção equivocada do anônimo Philópolis a Rousseau, essa não é uma constatação que tenda à resignação, mas precisamente à intervenção da razão humana sobre os erros para que os corrija. Esse é o melhor dos mundos possíveis, mas nem tudo está bem; uma coisa não exclui a outra.

                   É na problematização da história que o iluminista reconhece que se o homem pode ser seu sujeito ao mesmo tempo é seu objeto. Que a história mesmo que possa ser influenciada, e efetivamente o é, pela intenção dos atos humanos não é por eles produzida. A história para o iluminismo possui sua própria racionalidade que cabe ao homem descobrir e a ela adequar-se na medida em que sua inteligência a isso conduza. E aí está um dos aspectos da "iluminação": ser o filósofo aquele que através da razão pode lobrigar a essência racional do devir histórico e com isso esclarecer os governantes e os povos. A ausência dessa concepção racional é que permitiu aos iluministas lançar os tempos pretéritos nas trevas, juntamente com a ascensão de uma ideologia ( com a licença da expressão) pragmática da filosofia, com o qual se armaram mormente os novos cientistas da época.

                   Dentro de uma compreensão preterintencional da história no iluminismo deve-se mencionar também que as análises historiográficas da época passaram a assumir um caráter sincrônico, em oposição às leituras da história por através de um único elemento ou fator. Aí tem-se um Montesquieu, que talvez seja o exemplo mais ilustrativo de uma tentativa de construção de um método globalizante de estudo histórico e cultural. Assim, sendo a evolução histórica resultado de um conjunto múltiplo de fatores, complexificando o seu estudo, o homem isoladamente considerado apenas pode influir pontualmente na sua evolução, sendo desprezível a consideração da intenção nessa avaliação. Por mais que as ações humanas sejam movidas por intenções que devem ser, na medida do possível, avaliadas, a razão histórica delas não faz caso, coordenando as ações de acordo com a sua própria lógica. Cabe, entretanto, advertir que essa lógica não está, obviamente, contida num ente a que denominar-se-ia história. O iluminista não cria essa perspectiva de uma outra transcendência a partir do fruto de sua própria elaboração. A razão histórica está assentada na natureza humana, que como tal revela-se pela suas ações. É assim que ADAM SMITH adverte n'A Riqueza das Nações, ao tratar da divisão do tabalho, tema que retomaremos adiante: "Essa divisão do trabalho, da qual derivam tantas vantagens, não é, em sua origem, o efeito de uma sabedoria humana qualquer, que preveria e visaria esta riqueza geral à qual dá origem . Ela é uma consequência necessária, embora muito lenta e gradual, de uma certa tendência ou propensão existente na natureza humana que não tem em vista esta utilidade extensa, ou seja: a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra" [1]

                   Assim, seria perfeitamente aceitável uma tal idéia de descobrir-se uma teleologia ou sentido da história se para tanto pudesse-se compreender os princípios da natureza humana, já que é ela quem dita a racionalidade histórica. O homem passa dessa maneira a não representar importância tão somente um indivíduo, mas a transpor-se para um plano de humanidade, pois para o filósofo iluminista o que importa verdadeiramente é a compreensão da natureza humana que para eles é una e igual em todos os homens. O homem é mortal, mas não o é a humanidade. A história é, portanto preterintencional na proporção em que descura das intenções individuais e resulta de uma "intenção maior", que lhe suplante e vá além, qual seja a da própria humanidade, inscrita nos papiros da natureza humana, cujos hieróglifos somente os filósofos iluminados podem decifrar.

4 comentários:

  1. Professor, percebo um interessante desenvolvimento dessa idéia de "lógica histórica" na obra de Alexis de Tocqueville, em seu "Democracia na América" (dois volumes), de 1835. Apesar de ter vivido após o iluminismo, percebi com a leitura de sua obra um destaque a tal ponto da razão aplicada à história que chega ao exercício de uma "futurologia". Assim ele se pronuncia na conclusão do volume I: "Há hoje na Terra dois grandes povos que, partindo de pontos diferentes, parecem avançar rumo ao mesmo objetivo: os russos e os anglo-americanos." "O americano luta contra os obstáculos que a natureza lhe opõe; o russo está às voltas com os homens. Um combate o deserto e a barbárie; o outro a civilização revestida de todas as suas armas. (...) Um tem por principal meio de ação a liberdade; o outro a servidão." "O ponto de partida de ambos é diferente, diversos são seus caminhos; no entando cada um deles parece chamado, por um desígnio secreto da Providência, a ter um dia em suas mãos o destino de metade do mundo." Impressionante.

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  2. Caro Valdenor,

    Ainda que eu seja defensor da inexistência de mecanismos prognósticos na história, ou seja, não há uma "história do futuro", nem metodologia na ciência histórica que nos permita saber para onde estamos indo, como foi uma certa prática da filosofia da história dos novecentos, é inegável a sensibilidade sociológica e antropológica de Tocqueville e, digo-lhe, o faz um dos meus autores mais queridos. No "Lembranças de 1848" essa sensibilidade é até mais intensa que no "democracia...". O importante, contudo, é perceberes que a história independe da vontade individual e dos grandes homens, isoladamente. Essa fineza está em Tocqueville que concentra sua atenção em um movimento muito mais contextual de convergências e divergências de fatores sociais.

    Agradeço-lhe o comentário.

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  3. Caro professor, a busca por uma História preterintencional fundada no centralismo da razão imediatamente me remete a Pierre Legendre: ‘abricar o homem é dizer-lhe seus limites, ensinar-lhe um ‘além’ de sua pessoa; separar o homem de si mesmo. [...]Cada civilização produz seu estilo de educação e estilo de educação considerando essa separação’. O distanciamento nirvânico do método soa assim, espero que numa leitura não influenciada pela venalidade da sensibilidade, como uma angústia por enraizamento num meio social progressista sem coesão. A questão é, em tempos neoliberais - dessimbolização generalizada, auto-reflexividade permanente e desengajamento da pessoa - onde Deus e Marx estão mortos, até quando será possível discutir uma alteridade histórica e torná-la indissociável de sentido, ou melhor, um humanismo de (tenebrosa pragmática) relevância? Seriam auroras propícias à assumir um niilismo esvaziador, à sincronização com um egocentrismo pós-moderno(?) ou combater nas trincheiras do conhecimento as últimas fundações da Memória - o (último) bastião que nos reúne?

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  4. Professor,

    encontrei na internet um texto interessante, comparando o pensamento de Tocqueville ao de Gobineau. Este é o link: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0011-52582006000300005&script=sci_arttext

    Em Gobineau, também encontra-se a lógica histórica, porém, reduzida a uma causalidade única: racial. A dinâmica é fatalista: para existir a civilização, é preciso a miscigenação racial, porém, esta leva, por fim, à decadência. O pensamento de Tocqueville é mais rico, como o senhor mesmo destacou.

    Porém, saindo um pouco da proposta do seu texto, acho interessante avaliar os prognóticos temerosos em relação ao futuro da civilização de Gobineau (com seu "fatalismo racialista") e de Tocqueville (com sua análise dos "perigos da democracia e de um novo despotismo"") comparando-os aquilo que ocorreu no chamado "Estado de bem-estar social" europeu, e as consequências dessa "providência-ingerência" estatal sobre o espírito humano.

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