Adorei os comentários e na intenção de avançar um pouco mais no texto, ainda que brevemente, vou procurar cuidar de alguns dos temas levantados.
Antes de mais nada, tenho considerado cada vez mais a compreensão mais válida para a Montanha Mágica a de que ela ocupa-se da própria atividade de compreender e decifrar. É, portanto, tal como entendo, uma chave de leitura do romance a minha proposta exposta nos textos anteriores e não uma instrumentalização dele que me ajuda a servir-me de outro propósito teórico. O que ocorre com Castorp em Berghof não é uma descoberta do mundo da planície em contraposição ao "de cima", a descoberta da saúde em contraposição à doença, da pedagogia de Settembrini e Nafta em contraposição ao seu comportamento alienado em Hamburgo anteriormente. Castorp deverá compreender essas diversidade, que é a diversidade de espaços distintos (planície e montanha) e de tempos igualmente distintos (sua juventude na lembrança de Hippe e seu futuro com Chauchat; o progresso e a retórica, a ciência e a teologia, a indústria e a especulação, representadas em seus "pedagogos"; os dias que se repetem -a sopa-e os que instilam vida pelo deslumbramento -a nevasca, o baile), mas também DESCOBRIR-SE diante dessa leitura. Uma coisa não se dará sem a outra. As partes não revelarão o todo e nem o todos, as partes, se não houver o estabelecimento de uma circularidade que definirá a forma do esforço compreensivo. É por isso que não raro a leitura da Montanha Mágica parece avançar e retroceder e parar no mesmo ponto. Não poucos são os que a consideram invencível, como os romances posteriores de Kazantzákis. Mas isso eu retenho como um equívoco, pois ao retornar há sempre uma nova percepção e um novo olhar sobre algo. É assim que, aos poucos, com idas e vindas acompanhando seu primo Joachim, Castorp revisitará suas lembranças de Hippe, vai descobrindo-se a partir da doença do primo, também doente. Depois da nevasca, referida pelo Gilberto na sua postagem, o que o atinge não é uma crítica à autoridade ou às instituições, mas o início de uma percepção que vai ser trabalhada aos poucos, em outros momentos, de que a Montanha não está livre da fúria e da destruição. Se ela é um refúgio, o é apenas precariamente. A força da natureza é também a força do tempo que alcança tudo e todos. E o tempo da planície, aquele do momento de vida de Castorp, vem com a nevasca para o seu delírio sonolento como a quebra de tudo o que parecia sólido, mais do que os prédios, as mulheres dilaceram os seus filhos. Não há mais nada em que se segurar. As referências estão se esvaindo na europa. A europa são as mulheres do sonho de Castorp. Quando ele retorna, seu estado de saúde se agrava e aquilo que parece se repetir, na realidade do texto, é sua consciência se aprofundando. E será assim em todo romance, André, "princípio genial da doença", como Castorp mesmo refere, é o seu bildung em Berghof e nele se dará sua formação. Há os que resistem e querem curar-se para voltar, como Joachim, e esses são os tolos. Há os que ignoram a doença intencionalmente e procuram viver em Berghof como vivem "lá embaixo", ou como se estivessem de férias, e esses passam sem marcas no texto. É o exemplo dos jovens barulhentos ou o do casal que ocupa, num período, quarto próximo ao de Castorp como se estivessem em lua-de-mel. Estão deslocados e provocam em Castorp um sentimento de inadequação social mesmo. Também, dentre os doentes, há os que não podem recuperar-se, aqueles cuja consciência já distanciou-se demais -espacial e temporalmente- da planície. O mundo é outro e não lhes cabe mais. Esses são Settembrini e Nafta. Aqui não há mais descoberta de si e compreensão, pois são discursos para si próprios. Quando ensinam, falam para si mesmos, não para Castorp. Esse não participa e quando é instado a falar, é apenas para refletir a imagem do orador para ele próprio, como um espelho. Os "pedagogos" gostam que se enroscam nas suas vaidades, para me valer do que disse Darcy Ribeiro certa feita sobre Gilberto Freyre. Eles não podem sair da Montanha, ao passo que Castorp sairá de lá para as trincheiras da I guerra Mundial. A doença é um guia de leitura que permite situar os personagens do romance.
Por ora fico por aqui mesmo, mas amanhã procurarei falar mais um tanto sobre a música e a pluralidade de tempos possíveis e seguiremos em frente.
Diriam os americanos: "Now we're talking". Era exatamente isso que eu esperava da discussão. Obrigado. Agora, não sei se entendi bem esse ponto, mas você lê Der Zauberberg como um Bildungsroman sobre o vazio, como descoberta progressiva, por meio da doença, da limitação, da exaustão e do mutismo de todos os discursos que haviam formado a Velha Europa? Por que a experiência da doença é central? Por que a doença, e não outra coisa? Durante o romance, vi a doença como interrupção do fluxo normal do tempo (da planície) e sentido de proximidade com a morte, ambas coisas que, no entreguerras, eram reputadas como marcos da profundidade da existência. Concordo com você sobre a clausura e a exaustão dos velhos discursos, também interpretei dessa forma esta parte. Mas acho que há algo mais que Mann quer comunicar, que há alguma "grande lição" para além da percepção, em si quase kafkiana, de que a era das "grandes lições" está encerrada. O que é, na mensagem de Mann, essa coisa, grandiosa mais oculta, que apenas a experiência da doença consegue dar-nos a perceber?
ResponderExcluirCaríssimo André,
ResponderExcluirSim, entendo a Montanha Mágica, a seu modo, como um romance de formação. Não nos mesmos moldes do pioneiro Wilhelm Meister, de Goethe, mas induvidosamente, um romance de formação. Para sua primeira questão de por que a doença como central, eu me explico dizendo que a Montanha Mágica, afinal, é um Sanatório e tudo se dá a partir de uma metáfora da doença entre os personagens. A doença é hierática porque permite que sejam destacados os cenários ilusórios face aos quais atuamos no mundo. No cenário da guerra e da força, o Castorp adoentado vai descobrindo a fragilidade dos pactos, da razão e das crenças. Vai deslindando as contradições e a ironia, nem sempre fina, de destinos que acreditamos controlar por supormos a força de nossa razão e vontade, afinal será ele e não Joachim a ir para a guerra...O algo mais,a que vc se refere e intui não é a doença, como já percebeu, mas eu importaria a expressão de Terry Eagleton, "o fracasso da alta teoria", ou de uma visão de mundo para o que é grande e extraordinário. A reflexão de Castorp sobre o tempo aprofunda-se a partir da sopa servida aos pacientes. Ele pensa sobre sopa! Uma mera refeição de hospital! O tempo, o perdão, a memória, os afetos, o olhar e a religião, temas que não pertencem à alta teoria e invadiram sem cerimônias o pensamento no pós-guerra, são elementos da nossa fragilidade, nervuras do real, do cotidiano e não dos grandes eventos, das guerras, dos generais e da filosofia do iluminismo ou da ciência. não se trata, portanto, apenas do fim das grandes lições ou de um vazio em que isso nos colocaria, mas de desviar a atenção do olhar para o lugar mais alto, onde não conseguíamos ver porque estava envolto em nuvens. E o lugar mais alto na Montanha é o da fragilidade humana e sua confusa e improvável compreensão.