Caríssimos,
Gostaria de retomar nesta postagem, por vez, um tema que ainda ficou inacabado sobre “A Montanha Mágica”. E espero não ser a última oportunidade de fazê-lo, porque ainda há bastantes elementos que precisam ser tratados a partir daquele texto vastíssimo.
Ao reler as postagens anteriores não poderia deixar de dar a chance para alguns esclarecimentos sobre Castorp. Ao referir-me a ele como “medíocre”, pois assim o faz o próprio Mann, seria necessário ajustar a definição ao contexto geral da obra do autor. A “Montanha Mágica”, como as demais obras do autor, são marcadas, como já afirmei anteriormente, por uma fina ironia. A “singeleza” ou “mediocridade” de Castorp devem ser entendidas, nesse diapasão, como a sua indisposição inicial para assuntos mais elevados ou espirituais, mas, de outro, por uma intensa disposição para o aprendizado, para a alta formação. Harold Bloom, que é, confessadamente, o crítico literário cujo estilo mais me atrai, observa adequadamente que “Castorp é o aluno ideal outrora proclamado pelas universidades (antes da autodegradação a que tais instituições ora se submetem), e jamais encontrado. Castorp tem imenso interesse em tudo, em tudo o que é conhecimento, mas no conhecimento como um bem em si mesmo. Para Castorp, conhecimento não significa absolutamente, poder, seja sobre terceiros ou sobre ele próprio; conhecimento nada tem de faustiano. Hans Castorp é extremamente valioso para leitores no ano 2000 (e posteriormente), por encarnar um ideal hoje arcaico, mas sempre relevante: o cultivo do desenvolvimento pessoal, de modo a possibilitar a completa realização do potencial do indivíduo” (BLOOM, Harold. Como e por que ler? Rio de Janeiro:objetiva. 2000, 183).
Bloom ainda chama a atenção para que a elevação espiritual de Castorp decorre, como diz Mann ao final do livro, de seu “sonho de amor”. A doença é a metáfora ampliada da fragilidade humana, toda ela, nossos pecados, nossos defeitos, mas nossa virtude também. É dessa fragilidade que nasce a jornada de elevação do herói. É do medo diante da montanha. O amor é associado à doença, acredita Bloom, como uma representação quase óbvia da homossexualidade reprimida de Mann. Eu prefiro ficar com a proposta da fragilidade que expus, o que permite manter a distância mais apropriada entre a obra e a intencionalidade psicológica do autor e do contexto específico da primeira metade do século XX. Ademais, algo que diz respeito diretamente à fragilidade é essa ânsia de conhecimento que nos impulsiona para sabe-se lá onde. Uma busca solitária, ainda que não solipsista. Um desejo tremeluzente, incerto e presente que se realiza na atividade da leitura como sua maior representação. Bloom vai oferecer como uma das respostas à pergunta do “por que ler?” precisamente essa solidão, na qual podemos conhecer a nós próprios melhor que conheceríamos qualquer um, mas daí teremos algo mais valioso a oferecer a todos. “Se eu não for a favor de mim mesmo, quem o será?E se eu for apenas a favor de mim mesmo, então o que serei eu? E se não for agora, quando?”
Ora, essa sabedoria rabínica não define gentilmente o valor de Castorp? Sua jornada não o eleva acima da mediocridade inicial? O arcaico humanismo dos livros, que aponta para trás, mais do que para frente, que contrapõe a superficialidade da nossa sociedade do espetáculo, não sugere um outro caminho, uma alternativa real ao mundinho de repetições, vaidades e fases feitas que vemos por todos os lados, mesmo nas universidades?
Devo a Mann e por ele, Castorp, me deixarem mais à vontade, inteiramente à vontade, com o fato de ser cada vez mais arcaico, dia após dia.
Até mais,
Uma das grandes ironias é que Settembrini, depois de tantas páginas de autoafirmação como humanista e pedagogo, não injetou o humanismo em Castorp; este, compreendeu o humanismo através de tudo que aconteceu no sanatório. E Castorp, livre de orgulho e aberto a tudo, supera neste aspecto o fechado e ideológico Settembrini - que agia de modo solipsista na montanha, encontrando no engenheiro apenas uma pessoa adequada a ouvir e elogiar seus ensinamentos.
ResponderExcluirÓtima postagem!
Obrigado pelo comentário Gilberto. Bloom chega a comentar no "Como e por que ler?" que Castorp aprende por ouvir com a mesma atenção Settembrini e Naphta, mas também o hedonista Peeperkorn. Entretanto, sua transformação dá-se pela autoescuta, a tal ponto que a decisão de descer será sua apenas. Devemos lembrar também que ainda que Settembrini seja melhor orador -e mais simpático- é Naphta que profetizará que o legado do nosso tempo, da modernidade, não será o progresso e a liberdade preconizados pelo italiano, mas o terror. Ele estava errado?
ResponderExcluirAbs,