terça-feira, 29 de março de 2011

Nota a respeito do julgamento "Ficha limpa"

O julgamento da denominada "Lei da ficha limpa" foi histórico no STF e o resultado é por todos conhecido após o esperado voto do Min. Fux. Não vou, neste momento pelo menos, detalhar comentários sobre os argumentos dos ministros, mas ressaltar apenas dois pontos que tenho visto pouco nos debates e me parecem obrigatórios por revelarem aspectos de nossa má-prática republicana e democrática:

1. O voto do Min. Fux em nenhum momento poderia ser aceito como surpresa, ao menos pelos instituições políticas ou pela sociedade civil organizada. Por circunstâncias históricas, após o empate da votação no ano passado, o 11º ministro a ser escolhido ainda, é quem deveria dar o voto decisivo. Não lhes soa razoável que a indicação, portanto, tenha sido centrada na posição do indicado sobre o seu primeiro e, talvez, mais importante voto? E a sabatina no Senado que, tradicionalmente entre nós consiste em um protocolo de saudação e discursos laudatórios, demonstrando uma subserviência ao executivo comparável apenas ao dominato romano? Não deveria este ter sido o tema principal e mais polêmico da arguição? Não deveria ter consumido mais tempo que a leitura do currículo do indicado ou sua comovente percepção sobre o mister do judiciário em uma sociedade democrática?

Caganifâncias, isso sim, luas novas e solenidades, na fortíssima e intimorata acusação do profeta Isaías. Tratou-se de uma celebração de uma decisão já dada desde a escolha e não de surpresa. E se houvesse, de fato, alguma polêmica política a respeito, ela deveria ter-se mostrado no Senado onde essa indicação poderia ter sido uma das mais questionadas e combatidas da nossa história recente, mas como todas as outras, atravessou sem provocar nenhuma marola...Quero deixar claro o ponto: não estou fazendo qualquer juízo sobre o caráter, as intenções ou a competência do novo Min. Fux. A bem da verdade, creio mesmo que ele possui mais credenciais para o cargo que o penúltimo ministro a ter assumido, o Min.Toffoli. Minha questão é de que essa indicação, diversamente das demais da nossa história mais recente, deu-se diretamente em razão de um voto pendente, mas ainda assim a sociedade civil não se envolveu partindo do pressuposto, talvez, de que a garantia da autonomia do magistrado e seu livre convencimento deixariam o jogo ainda por decidir, ao passo de que ele já estava decidido antes da sabatina iniciar.

2. O processo do "ficha limpa" revelou-se, desde a votação do ano passado, como mais um desdobramento do fenômeno maior da judicialização da política, que é a judicialização da própria judicialização. Ou seja, se os processos judiciais contra os mandatários políticos fluíssem com regularidade e houvesse condenações contra eles neste país, a exigência do "Ficha limpa" não faria sentido algum, ao revés, nos pareceria nociva e mal-intencionada. Ela somente nos representa uma possibilidade real de maior lisura no processo eleitoral em face de políticos já marcados por acusações graves e repletas de provas, mas que correm pelos tribunais há décadas aguardando as prescrições, como ocorreu recentemente com o Sr.Paulo Maluf. Há os processos, mas não as decisões. O processo não significa uma limitação, um prejuízo, um julgamento. Por isso o "ficha limpa", portanto, para obter alguma restrição, para impor um limite que o judiciário brasileiro não tem sido capaz de fazer valer. A nossa necessidade da "Lei da ficha limpa" é uma demonstração dos vícios antirepublicanos e antidemocráticos do próprio judiciário, pois se permite utilizar não para julgar, mas para proteger outros de julgamento. A sociedade, portanto, buscou legitimamente encontrar outro caminho. O julgamento no STF é também uma avaliação dessa contradição provocada na tensão do jogo político regular e a ineficiência do judiciário como instância de controle dos elementos de legalidade desse mesmo jogo. O que conclui o Min. Fux não é, em si próprio, inadmissível -longe disso. O que nos é inadmissível são as consequências, quando a decisão reabilita o agora Sen.Jader Barbalho, por exemplo.

Pois bem, o julgamento concluiu pela validade da referida lei para 2012 e, entre mortos e feridos, tudo acabará bem, afinal, na linguagem shakespeareana bom é o que bem acaba?

Não. O problema central que mencionei agora é que se revelará com mais intensidade e poderá invalidá-la por inteiro. Enquanto a polêmica estava concentrada em toda sua atenção na validade da lei para agora ou para depois, resumindo-se a um problema de direito intertemporal, aprofundou-se pouco a questão das condenações em segundo grau ou transitadas em julgado.

Esse, no meu juízo, é o problema real e que revela nossa verdadeira mazela antirepublicana. Essa é a razão de judicializar-se a própria judicialização da política e acredito que sua conclusão acabará por inviabilizar a eficácia da "Lei da ficha limpa" mesmo para 2012. Isso porque a Lei procura dar conta de problemas que não se iniciam, nem se desenvolvem no seu âmbito de aplicação social, mas por dentro dos canais do poder que é responsável por dizer se ela valerá ou não.

A "Lei da ficha limpa" acusa um problema histórico do judiciário brasileiro e ele a deixará falar ou a calará por definitivo?

2 comentários:

  1. Abstraindo o tema da postagem, preciso dizer que desta vez tu te superaste: "caganifâncias" eu, definitivamente, jamais tinha escutado ou lido. Levei até um susto, considerada a tua habitual polidez. Mas tal qual aquela personagem da Zezé Macêdo, na antiga "Escolinha do Professor Raimundo", depois de me instruir, observei que nada havia a temer no termo, que está desde logo inserido no meu vocabulário, para utilização cotidiana.
    Fico te devendo essa.

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  2. Caríssimo Yúdice,

    A palavra é nossa, então. Eis as fontes:

    CAGANIFÂNCIA

    "s.f. insignificância, coisa de nenhum valor" (DICIONÁRIO CALDAS AULETE, v.I)

    Ou de acordo com aquele célebre dicionário do Francisco Azevedo, tornado mais famigerado ainda pelo prefácio visceral do Chico Buarque:

    "inutilidade, tudo-nada, és não és, objeto de indiferença, coisa de pouca monta, figo passado, caju chupado, bananeira que já deu cacho, piolhice" (essa é a minha predileta!)

    FRANCISCO FERREIRA DOS SANTOS AZEVEDO - Dicionário analógico da língua portuguesa. 2º ed. Rio de Janeiro:Lexikon. 2010:286.

    Abs,

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