domingo, 6 de março de 2011

“TODO ENTENDIMENTO É HISTÓRICO”


A chamada hermenêutica da faticidade de Heidegger influenciará definitivamente a assunção da hermenêutica filosófica a um lugar de destaque no pensamento contemporâneo, a partir da obra definitiva de seu aluno Hans-Georg Gadamer, “Verdade e Método”.
Em Gadamer, é importante notar que há uma investida estruturada contra a ciência e o método científico como única forma de experiência de verdade. Para tanto, a estética, a história e a linguagem possuem formas distintas, mas igualmente válidas de experimentação da verdade e que não são mediadas pelo método e pela dúvida metódica cartesiana. Já de Dilthey advinha a investida contra as ciências do espírito e o idealismo alemão com a compreensão de que a história está inserida em uma razão universal objetiva, ao saber racional puro, mas desde um saber objetivado derivado da própria vida que reflete sobre si.
Isso faz lembrar a trajetória de Castorp na doença, que será a sua imersão na realidade. A doença em Mann assume o símbolo da vida experimentada, para além das ilusões do ethos burguês no qual Castorp nada era senão uma figura formal, herdeiro, emprego garantido em uma empresa de navegação, cuja única manifestação de gosto restringia-se à degustação de uma marca de charuto que muito prezava. A experiência da doença supera a atividade de aprendizado mais formal com que Castorp também se envolve com um literato italiano e um professor jesuíta em Davos. Segundo MISKOLCI:
“A doença, como característica do gênio, consiste num desenvolvimento superior da capacidade de conhecimento, o qual ultrapassa os interesses mesquinhos da vontade e se consagra ao serviço da humanidade como um todo. As descobertas do ingênuo protagonista ocorrem mais através da vivência da doença e pela fascinação que sente pela morte do que pelos pretensos “pedagogos” representados pelos personagens de Settembrini e Naphta.”

A partir da ruptura metafísica representada pela obra de Heidegger, serão aprofundadas em Gadamer as implicações da presença do ser na atividade hermenêutica. Isso porque o ser-aí, o ser-lançado, o pro-jeto são sujeitos necessariamente históricos não há outro lugar desde o qual possam interpretar e compreender o mundo senão do próprio mundo. Essa é uma proposta fundamental da hermenêutica gadameriana e são centrais nessa compreensão os conceitos de tradição e preconceito.
Ambos os conceitos adquirem contornos mais precisos na obra de Gadamer que sugerem seus significados coloquiais e estão diretamente ligados à dinâmica do círculo hermenêutico, pois são possibilidades e potencialidades da compreensão a partir do sujeito.
Todos estamos ligados à alguma tradição, inevitavelmente. A tradição é definida a partir do nosso lugar no mundo e estabelece para nós um horizonte ao qual nos incorporamos e que, de fato, assumimos como nosso, afetiva e culturalmente, não como estranhos. Ao revés, estranho é tudo o que não pertence à tradição e que, a partir dela, poder-se-á definir como não-pertencente. É a tradição que funda a distinção estranho/familiar, tão cara para a compreensão, dado que é entende-se de regra o que nos é próximo, comum, familiar e esse olhar de identificação não é dirigido ao texto, mas a partir do texto, para o próprio intérprete. Doutra forma, mas pelos mesmos mecanismos, o não-entendimento é um sintoma do estranhamento também. O exemplo que, usualmente, dá-se é o que deriva das traduções e dos desafios que elas implicam. É inegável o valor hermenêutico, por exemplo, das correspondências entre Guimarães Rosa e seu tradutor para o alemão, mas seria hoje de um reducionismo imperdoável que circunscrevêssemos a questão nesse ponto. Já afirmamos acima que dentro de uma  mesma língua há transições de sentido, metamorfoses e mimetização. Além disso, em Gadamer o problema hermenêutico, e aí o conceito de tradição assume relevo, é um problema de compreensão do lugar e do tempo do intérprete no acontecer que a atividade interpretativa desencadeia. Não antes, nem depois.
A verdade em Gadamer não é um resultado da aplicação de um método, nem um a priori formal, mas perpassa toda a tradição e deve ser encontrada nela e a partir dela.  CHRIS LAWN conceitua tradição, a partir da obra de Gadamer, da seguinte forma:
A palavra tradição vem do latim traditio, derivada do verbo tradere, que significa literalmente ceder ou dar alguma coisa. Portanto, a tradição é literalmente aquilo que é cedido ou dado-ou o processo de ceder ou passar-, de geração a geração. As tradições podem ser intelectuais ou práticas. Com relação à anterior podemos estar falando da ‘tradição intelectual ocidental’ ou da ‘tradição da filosofia analítica’. Se nos referimos à posterior, podemos estar falando do método tradicional de fabricar cestas, por exemplo. No caso de ambas, a intelectual e a prática –e alguns filósofos podem ter problemas separando uma da outra-, existe um legado através das gerações”.
            A tradição revela que na hermenêutica de Gadamer não há um ponto externo, estranho à consciência histórica, que é o lugar de onde se fala. A linguagem mesma em Gadamer está prenhe de história, dado que através dela configura-se um determinado horizonte. Os horizontes que vemos são dados pelas possibilidades históricas da linguagem que utilizamos.
            Esse é um ponto de grande relevância, pois busca superar uma aspereza do historicismo anterior com o qual Gadamer estabelece um recorrente diálogo. Em Dilthey existe um espírito objetivo da história, uma razão superior que o permite classificar as “concepções de mundo” em uma teoria que contemple uma consciência histórica universal, na intenção de estabelecer uma solução para as contradições entre os diferentes modelos de mundo e de história ao longo da própria história, ao que ele chama de mundividências. DILTHEY, dessa maneira, descreve o projeto:
A solução reside em encontrar, com maior amplitude ainda do que em Kant, um pressuposto por detrás da luta entre as mundividências. Estas devem objectivar-se e compreender-se segundo a sua referência à vida em que se encontram radicadas”.
            Mas em Gadamer, mesmo mantendo a firmeza na possibilidade da universalidade, a relação com o passado não se estabelecerá a partir de uma razão objetiva com a qual se possa entender, dentro do contexto da época estudada, o que passou. O historicismo crê, dando continuidade a premissa da Escola Histórica defendida por Leopold Ranke, em uma alienação pessoal do historiador que permitiria a análise dos dados do passado e a sua reconstituição dentro da época, estando o intérprete supostamente livre das amarras do período histórico de onde observa. Para a hermenêutica filosófica, entretanto, a história é constituída pela experiência histórica o que não permite separar o saber histórico do ser histórico. Em outras palavras, o historiador narra a história a partir da própria história e é esse precisamente pertencimento que lhe permite construir sua narrações. Em Gadamer, portanto, uma outra noção exsurge na relação entre o passado e presente, qual seja, a de fusão de horizontes.
            A fusão de horizontes, como o termo indica, admite que há uma linha de continuidade entre passado e presente, mas não aquela passível da acusação de sacralização do passado para a legitimação do presente, o que iria pressupor “intencionalidades” ou aquilo que Heidegger já prevenia acima como “feliz idéia” anterior à interpretação. A continuidade aqui não significa a ausência de rupturas ou linearidade progressiva ou evolutiva, questões vivamente combatidas na Escola de Frankfurt. O que a fusão de horizontes indica de maneira verticalizada é que a história somente pode ser descrita de dentro da própria história, e os horizontes da linguagem serão sempre os horizontes possíveis a partir da tradição. Essa é uma premissa teórica firmemente fincada em uma perspectiva ontológica e hermenêutica que remonta à noção de dasein. A revolução do “Ser e Tempo” está precisamente nessa virada em relação à metafísica especulativa, situando o lugar do ente. Nesse sentido, diz BENEDITO NUNES:
Ser-no-mundo assinala a transcendência do dasein e, como tal, constitui a estrutura da subjetividade. Não há sujeito sem mundo, não há homem sem dasein. A idéia de sujeito leva ao subjectum (hypohéimenon), à substância. Porém, o dasein desatrela-se do primado do sujeito enquanto a investigação chega ao fenômeno, focalizado na mediania banal e indiferente do cotidiano, extraindo hermeneuticamente das aparências o fundo original, pré-ontológico, do dasein nele liberado. Trata-se da ação analítica: ela desce, em seu esforço interpretativo ao modo de ser do cotidiano, estabilizado na mediania da conduta tanto numa sociedade primitiva quanto numa sociedade civilizada”.
            Assumindo o conceito de fusão de horizontes a interpretação do texto e a interpretação da história como conjunto de acontecimentos humanos no tempo pressupõem e implicam em desafios muito semelhantes e tem como ponto de partida a tomada de consciência do lugar do homem no mundo. A interpretação é uma atividade reflexiva, o que significa dizer que a compreensão do texto – e assim também da história- é um compreender-se diante do texto. Esse esforço analítico impõe um certo distanciamento, uma “suspensão fenomenológica” que nos permita distinguir entre o familiar e o estranho, operação hermenêutica preliminar e que é indispensável para tornar possível a definição do trajeto da interpretação a partir do que se queira interpretar. Essa distância, que não é a da alienação ou da indiferença, é o “mundo daqui de cima” a que refere de maneira recorrente Castorp, ele que se eleva para conseguir descer ao cotidiano “estabilizado na mediania da conduta”, como citou BENEDITO NUNES acima, e começar a entender o mundo e ver-se como jamais dantes.
            Porém, vale a pena destacar que afirmar com Gadamer que “todo entendimento é histórico” não significa que estejamos nos referindo a uma idéia historiográfica. A noção é hermenêutica em todas as suas dimensões e refere, portanto a uma perspectiva de possibilidades de compreensão e não a um método historiográfico. Toda interpretação é um encontro, é um lidar com o outro além de si, o qual, no caso, pode ser o texto. O passado dos eventos pode ser lido também como texto, pois demanda decifração. Ambas as situações oferecem as dificuldades da refiguração, pois distintamente da comunicação oral, do diálogo com um interlocutor, seu sentido não pode ser elucidado por quem enunciou a mensagem. Contudo, a atividade interpretativa não se dará em um outro mundo, nem em um outro horizonte diverso daquele onde nos encontramos na tradição e a possibilidade da compreensão deriva do encontro entre distintos horizontes, mas que possam ver-se refigurados pelas suas similitudes,  a partir da percepção de suas diferenças.


Sandro Alex

2 comentários:

  1. Ótima postagem, meu caro. Gostaria muito - muito mesmo - de ler uma postagem sua dedicada apenas à sua interpretação e reflexão sobre A Montanha Mágica. Ah, claro, também gostaria de ler aquela sua consideração sobre o final de LOST.

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  2. Muito boa postagem. Considerei esclarecedora! Acrescentando as sugestões do André, acredito indisénsável alguns ensaios sobre Dostoiévski. For sure.

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