domingo, 27 de março de 2011

Considerações acerca de uma história preterintencional (3)

PARTE FINAL
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3. Preterintencionalidade em Immanuel Kant.

                   Kant é um iluminista bastante representativo daquele movimento cultural. Encontram-se em sua obra os traços tão caros aos historiadores ao caracterizarem tal momento histórico, como as idéias de civilização e progresso, a problematização da historicidade, a assunção do um mundo da cultura e do homo faber, e a audácia do pensamento crítico que Kant afirma com precisão ao responder à pergunta "Was ist Aufklärung?": "Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem"[1] .

                   Assim, Kant assume um elemento característico do pensamento iluminista que consiste na conversão dos dilemas que anteriormente eram tratados no plano da transcendência para o da imanência.

                   Também a razão pragmática de que fala CALAZANS : "A razão é instrumento de mudança: o primeiro passo é mudar o próprio modo de pensar"[1] , é elemento presente na concepção de razão que Kant propõe. Agora, no entanto, a principal preocupação desse notável pensador tenha sido talvez a de sistematizar uma doutrina para compreensão do modo pelo qual se deva dar a atuação dessa razão no mundo, seja numa dimensão epistemológica - como podemos conhecer? - seja numa dimensão ética - como o homem deve atuar no mundo de forma que sua ação possua um conteúdo moral?.

                   O paradigma naturalista do iluminismo encontra em Kant um pouso seguro. No tratamento que seu raciocínio sistematizador confere à história está presente a profunda convicção de que sendo         a natureza humana uma só em cada qual, onde o velho dístico sofista "o homem é a medida de todas as coisas" assume outro significado, qual seja o de que a mente humana possui a mesma essencialidade estrutural, a história sendo humana deve assumir essa racionalidade de espécie. Assim, por mais que individualmente considerado o valor de uma boa vontade seja absoluto -"Nem no mundo, nem, em geral, tampouco fora do mundo, é possível pensar algo que possa considerar-se como bom sem restrição, a menos que seja tão somente uma boa vontade"[1]- as ações humanas consideradas na espécie parecem seguir uma racionalidade própria independente da intenção dos sujeitos tratados de per si. Aí é que reside precisamente a razão natural, i.e., no plano da imanência centrada no espírito humano genérico.

                   Não será outra a motivação de Kant ao iniciar a Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita pela consideração de que sob uma ótica metafísica, qualquer que seja "o conceito que se faça de liberdade da vontade, as suas manifestações (Erscheinungen) - as ações humanas -, como todo outro acontecimento natural, são determinadas por leis naturais universais"[1].

                   Esse é o princípio que o avanço da ciência estatística permite inferir com clareza hoje em dia e já apontado por Kant àquela época: de que por mais que individualmente os acontecimentos sejam-nos sempre singulares, eles repetem-se com uma certa margem de regularidade na sociedade considerada com um todo orgânico. Assim os números de casamentos, a taxa de mortalidade e natalidade, os quadros endêmicos e epidêmicos nos quais se baseiam as companhias de seguro e os planos de saúde etc., quando se está diante de um painel estável de evolução social. Para Kant, essas seriam as pistas definitivas de que os indivíduos ainda que persigam um seu particular propósito seguem inconscientemente uma destinação superior da natureza, inscrita na própria espécie e subliminarmente em cada qual. Daí fácil é a ilação de que, se identificada essa destinação, o fio condutor da história inscrito na natureza na forma de suas leis, o homem teria um critério imbatível de verificação de progresso ou regresso na sua evolução histórica. É a que se propõe o texto sob análise.

                   Kant elenca a partir desse ponto uma série de proposições que revelam nitidamente a direção otimista do progresso humano fundada na racionalidade da natureza. Dessa maneira: "Todas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas a se desenvolver completamente e conforme um fim"[1], sendo que a principal conclusão desta proposição é que o que haja de física ou organicamente inútil no homem é contra a natureza e tende, por isso a desaparecer         .

                   Na segunda proposição Kant revela a criação primordial talvez do século das "luzes", que é a consciência paroxística de que o homo faber construiu o seu lugar natural, seu locus, que é o mundo da cultura. Os homens transmitem-se conhecimentos através das gerações e elevam progressivamente, portanto a compreensão do próprio homem e da sua sociedade. Essa é uma decorrência necessária da idéia de que a racionalidade natural não se destina a criar coisas inúteis e de que os esforços humanos inseridos nessa racionalidade igualmente não podem ser inúteis, caso contrário não passariam de "um jogo infantil".

                   Na terceira proposição Kant funda na razão e liberdade da vontade (lembre-se de que foi leitor entusiasta de Rousseau - o que distingue o homem do animal é mais a vontade livre), a sabedoria da natureza para com o homem, do qual ela parece querer extrair o lavor e o aprimoramento, como se a ele quisesse dizer que "se ele se elevasse um dia por meio de seu trabalho da máxima rudeza à máxima destreza e à perfeição interna do modo de pensar e (tanto quanto é possível na terra), mediante disso, à felicidade, ter o mérito exclusivo disso e fosse grato somente a si mesmo - como se ela apontasse mais para a auto-estima racional do que para o bem-estar"[1], o que soa muitíssimo semelhante ao belíssimo e surpreendentemente ilustrativo texto de Pico Della Mirandolla à época, de todos conhecido, chamado Oratio de hominis dignitate.

                   Na quarta proposição encontra-se a idéia de Kant que, no texto em epígrafe possui ao nosso entender, um caráter de enorme sensibilidade intelectual, no que Kant supera sem dificuldades a percepção preconceituosa mesmo de um Rousseau quanto às diferenças que a sociedade introduz entre os homens, ao comércio e à livre circulação de bens. Para Kant, o homem segrega um forte paradoxo: ao mesmo tempo que possui uma inclinação para associar-se, possui na mesma proporção um ímpeto para separar-se, tendências que já eram classicamente apontadas pelos autores iluministas ou pré-iluministas. A novidade está em que Kant não vê nisso qualquer disfunção, ao contrário, faz destacar que é essa oposição que permite ao homem o progresso social. Por ele mesmo: "Esta oposição é a que, despertando todas as forças do homem, o leva a superar sua tendência à preguiça e, movido pela busca de projeção (Ehrsucht), pela ânsia de dominação (Herrschucht) ou pela cobiça (Habsucht), a proporcionar-se uma posição entre companheiros que ele não atura, mas dos quais não pode prescindir. Dão-se então os primeiros verdadeiros  passos que levarão da rudeza à cultura, que consiste propriamente no valor social do homem(...) os homens, de tão boa índole quanto às ovelhas que apascentam, mal proporcionam à sua existência um valor mais alto do que o de seus animais; eles não preencheriam o vazio da criação em vista de seu fim como natureza racional"[1].

                   Saltando as outras proposições intermediárias, por prestarem-se mais a outras discussões que não essa presente, citaremos por fim a oitava que diz respeito ao fim da história como Kant a entende. Assim, é que a idéia de progresso e racionalidade da história centrada na racionalidade da natureza humana, que por isso mesmo torna as intenções individualmente consideradas preterintencionais, acabam por cumprir com a caminho ou trilha que a natureza a espécie humana destinou. É na investigação intelectual do curso até então percorrido pela humanidade que Kant identifica "o plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição política". E por mais que a história do homem não tenha tido o condão da indicar com precisão qual esse arcano natural, algumas pistas são verdadeiramente palpáveis para Kant, e uma delas é que a liberdade civil não mais poderia ser desrespeitada nos Estados da época sem que todo o mais fosse irreparavelmente afetado. A cultura absorveu de tal maneira a idéia e o costume da liberdade que não seria possível a vida social sem ela, a não ser a duros custos para os Estados e os cidadãos. E é essa a grande descoberta de evolução cultural: algumas conquistas civis são irreversíveis de tal maneira que os custos para um Estado que descure desses avanços determinam como que um seu nec plus ultra . Essa é a idéia de um progresso e o sentido do otimismo que está em Kant: as coisas evoluíram e nada indica que deixarão de evoluir cada vez mais e com substanciais melhoras para a vida social. Para o nosso ponto cabe destacar insistentemente que essas evoluções são avaliáveis historicamente, num plano em que não é considerada a intenção individual, mas tão somente os resultados fatuais instalados no devir da humanidade.


Referências bibliográficas:

[1] CALAZANS FALCON, Francisco J. Iluminismo, Ed.Ática, São Paulo, 1986: pg.35.
[1] SMITH, Adam. A riqueza das Nações. Ed.Nova Cultural -Os economistas-, São Paulo, 1996:73.
[1] Discurso sobre a origem da desigualdade..., Ed.Nova Cultural, col.Os pensadores, pg.218.
[1] id.ibidem, pg.247.
[1] id.ibidem, pg.249.
[1] id.ibidem, pg.272.
[1] Carta de J.J.Rousseau ao Sr.Philopolis, ob.cit., pg.321.
[1] KANT, I. in TEXTOS SELETOS, 2 ed., Vozes, Petrópolis, 1985, pg.100.
[1] ob.cit., pg.37.
[1] Fundamentos da Metafísica dos costumes. Ed.Tecnoprint, trad.Lourival Henkel: pg.37.
[1] Idéia..., Ed.brasiliense, trad. Ricardo Terra: 09.
[1] Ob.cit., pg.11.
[1] ob.cit., pg.12.
[1] ob.cit., pg.14/ grifo nosso.

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