terça-feira, 8 de março de 2011

A Montanha mágica de Thomas Mann


Especialmente, para o amigo André Coelho, que sugeriu o tema.


O livro de Thomas Mann foi publicado em 1924, eivado das preocupações já perceptíveis com a instabilidade política do período pós-guerra (a primeira) e, para nós, entre-guerras.
Entretanto, ainda que o cenário dessas perturbações esteja no plano de fundo da obra, o romance está longe de ser datado. Ao contrário, pertence a uma categoria restrita de obras que transcendem o seu momento e devem ser lidas como vívidas para bem além disso.
O estilo de Mann lembra, não raro, a elegância de Tolstói e seu distanciamento quase aristocrático da fase mais famosa de Anna Kariênina e Guerra e Paz, bem como partilha do gosto desse autor pelas narrativas longas e construídas sem nenhuma frouxidão de ritmo, a partir de um conjunto bem medido de personagens submetidos ao crivo de um narrador-personagem. O estilo cuidadosamente cultivado e a ironia suave e sagaz, que foi muito apreciado entre os escritores alemães, russos e franceses do denominado “epígono europeu” no sec.XIX, rendeu a Mann uma boa dose de má vontade da crítica que o considerava tradicionalista e “internacionalista” em uma época de eclosão dos nacionalismos...
Trata-se de um livro rico e admite uma miríade de interpretações diversas. A crítica literária do sec. XX bem o demonstrou, seja para considerá-lo secundário e Mann, um autor que não estaria a altura da alta literatura do século anterior, especialmente de sua segunda metade, seja para ver nele a sobrevivência do grande romance. Contudo, minha perspectiva aqui não será a de esgrimir com tais opiniões, pois a obra de Mann é infinitamente mais complexa que elas. Fico, por todos, com Otto Maria CARPEAUX: “...alcançara Thomas Mann uma altura para a qual nenhum dos contemporâneos foi capaz de acompanhá-lo” (in História da literatura universal, tomo IV, Brasília:Senado Federal, 2297).
As análises da viagem de Hans Castorp ao Sanatório Berghof, na hoje bem conhecida Davos, Suíça, acumulou um certo padrão interpretativo ao longo da segunda metade do sec.XX. Em regra, avalia-se o personagem Hans Castorp como um sujeito medíocre incapaz de reconhecer a transcendência da vida, imerso em um mundo burguês, individualista e esfacelado, para o qual não há perspectiva de unidade. Para Castorp, o único sucedâneo da religião será a música que ele descobrirá no alto da Montanha. Mann o descreve quando chega uma vitrola ao Sanatório e é apresentada aos pacientes, dentre eles Castorp:
Enquanto o conselheiro apresentava a nova aquisição, o jovem mantivera-se silenciosamente no fundo da sala; não se rira, não batera palmas, mas prestara imensa atenção às peças oferecidas, torcendo uma sobrancelha entre dois dedos, como às vezes tinha por hábito. Tomado de certa inquietação, de quando em quando mudara de lugar, sem que o público o notasse. Entrara na biblioteca, a fim de escutar ali. Mais tarde plantara-se ao lado de Behrens, com as mãos nas costas e com a cara fechada. Examinara a arca, para lhe aprender o fácil manejo. Uma voz dizia nele: ‘Alto!Alerta! Começa uma época! Isso veio para mim!’ estava cheio do infalível pressentimento de mais uma paixão, de outro encantamento, do peso de um novo amor. Um jovem da planície, que ao primeiro olhar lançado a uma garota sente-se ferido pela flecha farpada do amor, não experiemnta sensações diferentes” (MANN, Thomas. A montanha mágica. 2º Ed. Trad.. Herbert Caro. São Paulo:Nova Fronteira, 879).
Não é despropositado que seja assim, afinal esse é um ideal romântico que estará presente em outras obras de Mann, com mais intensidade, por exemplo, no “Doutor Fausto” e no “Morte em Veneza”. A arte, em especial a música como “arte ideal” (Wagner), é maior que a vida.
A viagem de Castorp para o alto, a descoberta de seu “talento para a doença”, é entendido como a metáfora do fracasso das promessas da modernidade. O embate entre o progressista italiano Settembrini e o jesuíta Nafta não tem solução no romance. Eles são duas promessas falidas, banidos da planície que deixaram órfã. Isso permitiria a estrutura narrativa da defesa do humanismo, da condenação da guerra pela sua falta de sentido, da alienação do homem em que consiste o projeto do individualismo burguês.
Esse é um padrão de interpretação do romance, como disse, e me parece correto e explicativo, mas datado.
Richard MISKOLCI, por sua vez,  vai propor em texto interessante, uma outra variável interpretativa ao sugerir que a Montanha Mágica trata de uma jornada de revelação alquímica (ver Itinerários - Revista de Literatura. UNESP/Araraquara,Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2000. Número 15/16), pois a doença de Castorp é a condição que o permitirá ingressar em um mundo longe do mundo –oposição no romance entre os “daqui de cima” e a planície- e assim, acessar aos poucos os mistérios iniciáticos. Sua gradativa aceitação de sua condição, não raro assumida como  uma “iluminação”, dá-se através da doença que observa desenvolver-se nos outros, com estranheza, de depois em si mesmo e isso permitirá a transformação da natureza das coisas.
Mais próximo, talvez, de MISKOLCI, gostaria de propor uma linha alternativa de análise. Disse em outro texto que:
“Ao longo da narrativa do romance, personagens que interagem com Castorp permitem-nos assinalar elementos relevantes para o debate hermenêutico atual, bem como caracterizam o ambiente dentro do qual tais discussões estabelecem-se, seja ao pautar a desconfiança cultural em relação ao domínio da ciência e aos limites da verdade, seja quanto ao papel da razão e a filosofia da consciência diante de um mundo desorientado e confuso às vésperas do ciclo das duas grandes guerras mundiais” (SIMÕES, Sandro in DIAS, Jean & KLAUTAU (orgs.). Direitos fundamentais, teoria do direito e sustentabilidade. São Paulo, Belém:Ed.Método/Cesupa. 2009, 58).
Nesse sentido, a Montanha Mágica aproxima-se de outro romance do início do século, o instigante “A Consciência de Zeno”, de Italo Svevo. São textos que ambientam personagens às vezes com as dores de parto da suas próprias consciências. Ao seu redor, ao revés, o mundo cai em profunda inconsciência e confusão. Entretanto, a escolha narrativa não é a do chiaro-scuro impressionista com personagens altivos e distantes que observam a fragmentação do horizonte. Zeno e Castorp, de formas distintas, confrontam-se consigo mesmos desarmados, despreparados e sem intencionalidade. E não é porque o mundo treme que o fazem, mas motivados por algum outro propósito que acaba por lhes revelar que não há mais referências sólidas em que se possam amparar. A queda é para dentro de si.
Entendo a Montanha Mágica como uma jornada hermenêutica que, se de um lado pode incorporar no seu início a descoberta iniciática sugerida por MISKOLCI, de outro lhe transcende, ultrapassa-lhe.
Os personagens que jamais serão curados, aqueles que morrem e sucumbem, dentre os quais o próprio primo de Castorp, são os mesmos que resistirão a admitir até o final o “princípio genial da doença”, como denomina o herói. A doença será aqui o lugar da arte iniciática capaz de revelar os mistérios da vida. A trajetória de Hans Castorp é uma trajetória hermenêutica, no primeiro dos sentidos do termo e inicia-se mesmo a partir de uma forte congestão nasal em que o herói de Mann lembra-se de um jovem eslavo pelo qual foi apaixonado na sua juventude, Pribislav Hippe, cujos traços e fleuma reencontrou no Sanatório na figura da enigmática Mme. Chauchat e seus olhos de quirguiz. Seu retorno à planície, ao final dos sete anos, será um reencontro com a realidade que havia abandonado conscientemente para abraçar seu talento para a doença, e irá se deparar com o mundo envolto nos combates da primeira grande guerra.
Mas a hermenêutica sofrerá também suas transformações, especialmente entre os séculos XVII e XIX, como já mencionado, em função, basicamente, dos desdobramentos dos impactos culturais da Reforma Protestante e, posteriormente, do romantismo alemão.
Será com a hermenêutica alemã, no influxo do romantismo alemão que já possui sua repercussão no romance, como visto acima, que haverá a inversão das antípodas. A compreensão passa a ser entendida como um esforço proposital e orientado pela técnica. Compreender é uma exceção e não a regra, o que é aplicável não apenas ao texto ou escritura, como prefere Derrida, mas à linguagem. Uma teoria da compreensão –hermenêutica- deve ser uma teoria aplicável à linguagem e aos signos da linguagem, portanto.
Em Berghof, Castorp viverá também uma experiência diferente não apenas de espaço, mas de tempo também. O tempo em na Montanha não será o tempo unívoco e opressivo de Kronos, o tempo da planície, o tempo mensurável. O tempo em Berghof é o da experiência. Na Montanha é que surge para Castorp a idéia de um tempo de pluralidades simultâneas. Ele diz: “o que se chama tédio é, portanto, na realidade, antes uma brevidade mórbida do tempo, provocada pela monotonia: em casos de igualdade contínua, os grandes lapsos de tempo chegam a encolher-se a tal ponto, que causam ao coração um susto mortal; quando um dia é como todos, todos são como um só; passada numa uniformidade perfeita, a mais longa vida seria sentida como brevíssima e decorreria num abrir e fechar de olhos” (ob.cit.:144). Em outras passagens, refere ao que é o aevum medieval de Sto. Agostinho, como ao perguntar: “Ora, estabelecer o postulado do eterno e do infinito não significa, porventura, o aniquilamento lógico e matemático de tudo quanto é limitado e finito, e sua redução aproximada a zero?” (ob.cit.:470).
O tempo do movimento, o que traz em si a transformação, existe simultaneamente, em pluralidade com o da planície, com o da inércia dos tratamentos no Sanatório, o que lembra o Duração e Simultaneidade, de Bergson. Porém, vou procurar, intencionalmente, não digredir aqui, pois o que me interessa para os propósitos desse texto são as relações com o argumento hermenêutico. O tempo na Montanha Mágica é elemento do entendimento e o seu desvendamento, a compreensão de sua diversidade e de sua atuação simultânea, é a condição para a descoberta de si que empreende Castorp. Apenas quando isso acontece que ele retornará ao mundo da planície e a Europa já estará em guerra. Essa é uma conclusão quase solene quando se aproxima o final da narrativa:
“O tempo, mas não aquele que marcam os relógios de gare, cujo ponteiro grande dá saltos bruscos, de cinco em cinco minutos, senão o indicado por relógios pequeninos, cujo movimento de agulhas permanece imperceptível, ou o tempo que a relva leva para crescer, sem que nenhum olho o perceba, apesar de fazê-lo constantemente, o que um belo dia se torna um fato inegável; o tempo, uma linha composta de um sem-número de pontos de extensão (...), o tempo, à sua maneira silenciosa, imperceptível, secreta e contudo ativa, havia continuado a trazer consigo transformações” (ob.cit.:974).
Minha conclusão e a de que a viagem hermenêutica de Castorp o conduz à percepção de que o entendimento é histórico, e ao final será o tempo reintroduzido na vida do herói. Essa será uma hermenêutica ampliada, transformada, assumida não mais como uma tarefa de iniciados, uma atividade mágico-mística, e também um esforço de leitura de texto, mas sim como decifração do mundo. O mundo confuso que se estende ao longo do horizonte da planície e para o qual retorna Castorp, não é claro. É o mesmo, mas revela-se obscuro, fragmentado, fracassado. A reinserção de Castorp dá-se pela assunção da consciência de que a compreensão implica em responsabilidade, que “compreender o texto (o mundo) é compreender-se diante dele”, na proposta de Ricouer.

4 comentários:

  1. Muito obrigado, meu amigo! Vou ler com toda atenção e tentar partilhar da sua maior experiência na leitura desse tipo de obra. Li-a ano passado e estava à busca de um interlocutor sobre o texto.

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  2. Cara, li e achei bem interessante a nexo que você estabeleceu entre a viagem de autocompreensão da personagem e as discussões da hermenêutica contemporânea. Mas acho que isso vale mais como, digamos, um diálogo interessante que a obra pode travar com uma discussão externa a ela do que como interpretação da obra. Ou estou enganado? Gostaria de ler a sua posição sobre essa coisa da "doença" como condição privilegiada, a suspensão do sentido normal do tempo, da música como religião acima das religiões. Pode escrever um texto solto mesmo, apenas uma conversa virtual, não precisa ser um texto tão bem escrito e estruturado quanto este. Estou em busca dessa experiência de comunhão com alguém do sentido mais profundo do texto de Mann.

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  3. Talvez soe simplista, mas meu real interesse em estudar filosofia, literatura e afins veio deste livro. Castorp leva o leitor à montanha - entendendo a montanha como, em resumo, uma elevação do Ethos burguês; ele nos tira da planície para depois nos recolocar nela, agora modificados.
    Fico muito feliz por poder ler coisas interessantes aqui, inclusive sobre o livro em questão, principalmente pela expectativa de que vocês dois - Sandro e André - tenham uma boa discussão. Como foi o livro que consolidou o meu despertar de um “Sono dogmático”, digamos assim, a leitura foi algo prematuro – me via apenas como Castorp: um bom curioso; entretanto, no que for possível - se algo for -, tentarei colaborar na análise.
    Tentando sugerir um ponto de importante interpretação - baseando-me na minha má memória – acho interesse quando ele estava andando na montanha em plena nevasca e, de repente, se vê em uma praia. Certamente a praia fica na planície. Este lugar é bonito, alegre, com pessoas felizes e despreocupadas... e isto é uma maravilha, segundo Castorp; porém, enquanto ele contemplava um menino com a mesma inocência de todos deste lugar, o menino o olha com seriedade e vira os olhos para uma construção, um templo com grandes colunas, uma enorme escadaria e, de fora até o local onde ele chega neste templo, a descrição se resume a longos corredores e outras ostentações de poder, respeito... Ao caminhar Castorp vê algumas pessoas em situação que lhe agrada, porém, ao avançar ainda mais ele vê o sacrifício humano, mulheres esquartejando crianças e etc.
    Eu não tenho o livro – peguei emprestado para ler, pois não achei à venda -, mas, a partir desta memória, compreendi basicamente isto como a revelação para Castorp do mal das instituições, que erigem algo belo, imponente, dando-nos diversos atrativos, fingem mostrar algo bom – as primeiras pessoas que ele vê -, mas no fundo, após Castorp caminhar por dentro dela, não passa de uma barbárie – relacionando o livro com o “Ressurreição” de Tolstói que trata deste tema.
    Decerto vocês podem dar uma interpretação mais consistente disto; apenas tentei instigar mais um aspecto interpretativo.

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  4. Não li a Montanha Mágica, e este é um lapso a ser corrigido!
    Mas conheço um pouco da história e há algo na sua simbologia que desde o princípio me chamou a atenção: a montanha. Ela costuma colocar-se como o local privilegiado para a descoberta da consciência e revelação das verdades, como local de morada sagrada ou de contato com o elevado e o especial, em quase toda mitologia de que temos conhecimento.
    Ambientar a história em torno da montanha, e ainda em contraposição à planice, pode indicar a intenção textual de expor um sentido ou uma consciência acerca do mundo e do homem... e que eu não sei qual é, porque ainda não li (haha).
    Espero correções se estiver enganada!

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