segunda-feira, 14 de março de 2011

A hermenêutica do vazio

Para amiga Bárbara, com quem conversei pela primeira vez sobre esse assunto.
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Assim, os gregos clássicos, da mesma forma que os gregos do período arcaico, na sua maioria entendiam as formas e estruturas de suas comunidades como exemplos da ordem de diké; e o que deu expressão literária a essa compreensão foi, acima de tudo, a recitação, a escuta e a leitura dos poemas homéricos. Na Atenas dos séculos V e IV, esses poemas tiveram um lugar importante nas estruturas da normalidade; não só eram sistematicamente ensinados aos meninos atenienses, mas sua recitação no festival das Panatenéias reforçava a identidade entre a Atena que segura a mão de Aquiles no começo da Ilíada e que traz a paz e reconciliação no final da Odisséia, e a Atena cujo culto é o cerne da religião ateniense e cuja estátua mostra de quem é o Partenão” (MACINTYRE, Alasdair. Justiça de quem? Qual racionalidade? 2º Ed. São Paulo:Loyola. 2001, 37).

                Ao me referir a essa passagem de MaCintyre aos meus alunos na aula de hoje, como um argumento para servir de fundamento à afirmação de François Ost (“Ex fabula oritur ius” ou “o direito nasce das narrativas”), dei-me conta de uma inquietação que acompanhou-me como uma sombra pelo restante do dia e resolvo agora compartilhá-la. Quais são as nossas narrativas de formação? Digo de nós, brasileiros, ou mais proximamente, de nós, amazônidas, o que quer que isso signifique?
                O incômodo prossegue numa pulsação ritmada, num pensamento lasso, mas presente, que vai e volta como esperando numa rede. Mas se aprofunda quando da lembrança inevitável, que me ocorre quase que ao mesmo passo com a leitura de MacIntyre: o discurso de Péricles aos mortos de Atenas. No momento agônico da Guerra do Peloponeso, será aos valores de formação que as narrativas homéricas estabelecem, que o general recorrerá:
“II, 40. Our Love of what is beautiful does not lead to extravagance; our Love of the things of the mind does not makes us soft. We regard wealth as something to be properly used, rather than as something to boast about. As for poverty, no one need be ashamed to admit it: the real shame is in not taking practical measures to escape from it. Here each individual is interested nor only in his own affairs but in the affairs oh the state as well: even those who are mostly occupied with their own business are extremely well-informed on general politics – this is a peculiarity of ours: we do not say that a man who takes no interest in politics is a man who minds his own business; we say that he has no business here at all. We Athenians, in our own persons, take our decisions on policy or submit them to proper discussions: for we do not think that there is an incompatibility between words and deeds; the worst thing is to rush into action before the consequences have been properly debated. And this is another point where we differ from other people. We are capable at the same time of taking risks and of estimating them beforehand. Others are brave out of ignorance; and, when they stop to think, they began to fear. But the man who can most truly be accounted brave is he who best knows the meaning of what is sweet in life and of what is terrible, and then goes out undeterred to meet what is to come” (THUCYDIDES. History of the Peloponnesian war. London:Penguin books, s/d, 147).

                É uma oração de inegável plástica, mas que além disso, alia as imagens que surgem no discurso a uma referência comum, conhecida entre os gregos. Lá estão virtudes cívicas de deliberação, de respeito a lei (aidós) e uma idéia de justiça diretamente ligada ao mérito. A homenagem é prestada aos mortos da cidade porque eles merecem. Péricles dirá adiante que se todos estão ali para pranteá-los é porque devem a eles o sacrifício pelo qual a cidade ainda está de pé.
                Quais são as nossas narrativas de formação? Como nos vemos? Quais as virtudes nas quais identificamos a possibilidade mesma da cidade enquanto comunidade?
                Via de regra, enquanto colonizados, nossas histórias são vistas por nós como “des-histórias” ou, mais precisamente, como narrativas de desconstrução das histórias clássicas. Nelas não vemos – e não nos foram contados- os feitos valorosos, os heróis assinalados, os desafios superados. Ao revés, são os bandidos e desterrados, as prostitutas e as desenganadas, os nobres duvidosos e sem nobreza que nos dão origem e cavam nosso leito seminal. Na colonização amazônica, como se fora coisa pior ainda, nossa “des-história” é a autofagia daquela outra a partir dos ciclos econômicos que não conseguimos sustentar. Nem o café, que daqui saiu, sem que quase ninguém se lembre como, se é que isso interessa realmente.
                Em Belém, no meio disso tudo, vemo-nos como habitantes de uma fantasmagoria como descrito com habilidade no belo livro do Fábio Castro que me foi apresentado pelo querido aluno Bráulio Marques. Nossos palacetes evocam um tempo nostálgico não de grandeza, mas de delírio europeizante. Por isso que, muitas vezes ao invés de orgulhecer-nos (no português do velho Rui...), acabam por acabrunhar-nos.
                Ocorre que nenhuma história é vazia. Não se interpreta o vazio, mas é possível fazê-lo com as representações do vazio. Quando dei uma palestra a respeito em 2010, (“A hermenêutica do vazio”) era sobre isso que intencionei falar, sobre essa idéia em esboço, a partir do formidável “Safra”, do Abguar Bastos, livro do nosso modernismo alternativo da primeira metade do sec.XX, no Pará. Quase que totalmente esquecido, cabe dizer.
                Quando falamos sobre nós, as nossas histórias, elas representam esse vazio na medida em que constróem-se como negações das narrativas européias e norte-americanas. Bem que se tentou o modelo virtuoso, épico no Brasil do sec.XIX, seja com o Império –na política- seja com o indígena, na literatura. E não me refiro aos mais conhecidos “O Guarani” ou “Iracema”, de Alencar, mas ao “Caramuru”, de Santa Rita Durão ou ao ambicioso “Prosopopéia”, de Bento Teixeira. Recentemente, em 2008, a EDUSP e a Imprensa Oficial de São Paulo lançaram uma bela coletânea desses poemas com estudos introdutórios e edição apurada, mas que ando duvidando se saiu dos círculos mais fechados de literatos...Quem os lê hoje? Eles convencem? Eu fiz esse esforço curioso e, talvez missionário, mas sem sucesso.
                A bem da verdade, creio que nossa “formação de almas” (José Murilo de Carvalho) pela representação da arte veio mesmo com o modernismo. Foi no anti-herói Macunaíma, nas figuras duras do sertão de Guimarães Rosa e com a história recontada da nossa colonização por Freyre.  A década de 1990, particularmente, foi profícua na releitura de eventos históricos decisivos como a vinda da corte para o Brasil e nossa independência, já entendida a partir de matizes distintos da resignação pusilânime e continuista da historiografia anterior. Hoje, as novas pesquisas revelam personagens valiosos da história nacional sob prismas bem diferentes, os quais denotam uma atitude menos biliar na interpretação e construção das nossas representações. Exemplo, por todos, é José Bonifácio de Andrada e Silva na sua comparação com Th. Jefferson.
                Quero deixar claro o argumento, a essa altura: não se trata de “dourar a pílula” e construir nossas representações nos moldes da educação moral e cívica. Vá-te retro! Falo da perspectiva hoje proposta pelos estudos neocoloniais, os quais se originam na obra de Edward Said, crítico literário. Em resumo grosseiro, trata-se de dizer que enquanto buscarmos elaborar nossas representações enquanto povos colonizados pela mesma perspectiva dos colonizadores, seremos sempre o fracasso daquelas representações. Ou seja, não tivemos Péricles e isso quer dizer que não temos nada?
                A representação do “Safra” a que me referi acima é tão bela quanto desencantadora. É uma representação do desencanto e da imobilidade em que estamos na Amazônia. É como Euclides da Cunha que afirma que todos os grandes rios do mundo serviram às suas nações como um caminho através do qual elas puderam erguer-se e prosperar. Assim, o Tigre, o Eufrates, o Nilo, o Huang-Tsé fertilizaram a favoreceram a prosperidade de seus povos. Eles constroem. O Amazonas, por sua vez, destrói. Sua grandeza arrasa as margens, arrasta constantemente seus pedaços, muda sua forma e arremessa os sedimentos no mar. Para Euclides, ao longo dele nada prospera. O Amazonas não é civilizatório.
                Quando contamos nossa história, o fazemos como o fracasso em face das outras histórias. Será por isso que somos em Belém, para falar do que conheço, tão predatórios em relação à cidade? Todos, eu digo, dos que jogam detritos na rua, que emporcalham as feiras, prostituem as crianças, aos que fazem as filas duplas e fecham –sem solenidades-os cruzamentos e ajudam o nosso caos diário a aumentar, até os que sonham diariamente com o momento de escaparem daqui.
                A polis grega assentava-se num pacto tecido finamente pela idéia de justiça e em Péricles essa já aparece claramente como uma noção coletiva, política, a ponto de estabelecer categoricamente que aqueles que não se importam com a política nada tem a fazer na cidade.
                E nós, representamos nosso pacto como?

Um comentário:

  1. Antiguidade clássica, época em que Direito, Moral, Política e Justiça se entendiam perfeitamente.

    Hoje, a Justiça se tornou Moral e o Direito virou Política. Fica até difícil uma virtude excencialmente verdadeira.

    Que incorporemos Antígona e rumo a desobediência civil, como assinala Thoreau. Vamos pensar nossos valores e caso não se adapte aos instituídos quase que verticalmente, então será a hora de mudar.

    Abraços professor Sandro

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